POLÍTICA

CLT completa 80 anos, apesar dos ataques constantes

Direitos do trabalho contemplados na CLT e que refletem conquistas das últimas oito décadas resistem às investidas do capital
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 11 de julho de 2023

Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Alvo de uma reforma trabalhista aprovada pelo Congresso durante o governo Temer, a CLT se mantém como marco na defesa dos direitos dos trabalhadores

Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

A Consolidação das Leis do Trabalho veio para estruturar e compilar uma série de direitos que têm a Carteira Azul como símbolo e que, diante do avanço neoliberal, hoje está distante de milhões de brasileiros alijados do trabalho, sem emprego ou atuando na informalidade. Se antes, já na primeira República, havia exemplos de regulação, como as leis de Acidentes de Trabalho e de Férias e até estabilidade no emprego, a CLT – mesmo dentro da ambiguidade do Estado Novo – criou um efeito simbólico que fortaleceu a identidade de classe e a luta dos trabalhadores

Há 80 anos, no período em que a humanidade ainda buscava respostas ao colapso do capitalismo e do liberalismo econômico que se manifestou fortemente em 1929, com a Grande Depressão, Getulio Vargas assinava o Decreto-Lei 5.452. O presidente que assumiu os rumos do Brasil após o processo revolucionário de 1930, então com poderes ditatoriais no chamado Estado Novo, anuncia a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1° de maio de 1943. De lá para cá, atacada por setores patronais, a CLT – mesmo enfrentando pressões, alterações e até propostas para sua revogação – sobrevive e, na opinião de estudiosos, ainda continua indispensável.

NESTA REPORTAGEM
“Neste momento de demolição, para os sindicatos é inaceitável a extinção, a demolição da CLT, porque o empresariado quer, em nome da ‘modernidade’, recuperar o arcaico, que é a intensificação da exploração do trabalho”, afirma o sociólogo Ricardo Antunes.

Professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do Grupo de Pesquisa Metamorfoses do Mundo do Trabalho da mesma instituição e um dos principais nomes da Sociologia do Trabalho, Antunes é categórico ao interpretar o processo contemporâneo de precarização do trabalho.

“O que se passa com a CLT hoje é que estamos vivendo um processo de devastação do trabalho em escala global. É a mistificação de que o trabalho agora não é mais feito pela classe trabalhadora, mas pelo empreendedorismo, por trabalhadores e trabalhadoras sem direitos via trabalho intermitente. Trabalha, recebe; não trabalha, não recebe”, resume.

Simbolismos

Imagem: Agência Senado/ Reprodução

Vargas e a primeira carteira de trabalho do país

Imagem: Agência Senado/ Reprodução

Clarice Speranza, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), entende que a importância da CLT foi se tornando maior à medida que ela adquiriu um efeito simbólico.

“Claro que ela já nasce importante, mas a CLT, digamos assim, se torna uma carta de direitos do trabalhador brasileiro, historicamente a parcela mais numerosa da população brasileira, sempre a mais submetida a humilhações, a um processo muito forte de desvalorização”, aponta.

Líder do Grupo de Pesquisa Trabalho, Resistência e Cultura do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Clarice também destaca o caráter escravista embutido nesse debate. “A história do trabalho no Brasil é a história da desorganização do trabalho. Em um país escravista, o trabalho sempre foi visto como algo desonroso. Muda um pouquinho na primeira República, mas ele passa a ser algo, também, que precisa ser imposto às classes trabalhadoras, que são vistas como perigosas. Um pouco mais. Já era no período da escravidão”, destaca a professora. Cabe lembrar que a CLT foi apresentada por Vargas poucos dias antes da Abolição da Escravatura no Brasil completar 55 anos.

Por um Brasil moderno

Foto: Antonio Scarpinetti/ Unicamp

Antunes, da Unicamp: “Vivemos um processo de devastação do trabalho em escala global”

Foto: Antonio Scarpinetti/ Unicamp

Alisson Droppa, Doutor em História Social pela Unicamp e pesquisador do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), registra que a trajetória de construção da CLT “está profundamente ligada ao processo de industrialização e modernização do Brasil”.

Eram promessas da Aliança Liberal, articulação política que se deu no início de 1929 para apoiar as candidaturas de Vargas e João Pessoa à presidência e vice-presidência da República, respectivamente, nas eleições de 1° de março de 1930, mas que, derrotadas por Júlio Prestes e Vital Soares, culminaram com a Revolução de 1930 e o fim da República Velha.

“A CLT nasce no contexto do getulismo com um sentido muito claro: incorporar a força de trabalho urbano em um processo de formação do capitalismo industrial e estabelecer um patamar mínimo de direitos que pudessem estruturar um mercado interno consumidor, sem o qual não existe industrialização”, explica Antunes.

O sociólogo pondera que a iniciativa também foi uma tentativa de manter a liderança de Vargas. “Tinha um caráter dúplice, bifronte, de um lado atendia às reivindicações que nasciam na luta operária desde as greves de 1917, por exemplo, e da longa onda de greves que foram vistas de 1930 até 1935”, demonstra.

“Além da própria luta dos trabalhadores brasileiros por melhores condições de trabalho”, diz Droppa, o governo Vargas buscou a iniciativa de constituir “um arcabouço jurídico que incluiu a legislação social do trabalho, a criação da Justiça do Trabalho e do sistema de fiscalização do cumprimento dessa nova tela de proteção social, ainda em construção”.

De acordo com o pesquisador do Dieese, mesmo com a necessidade de ter suas questões internas equacionadas, o Brasil não se descolou do contexto internacional e, de uma forma ou de outra, dialogou com as experiências de intervenção do Estado nas relações econômicas e sociais para responder à crise do capitalismo, que acabou se evidenciando em 1929.

Em especial, Droppa elenca a Revolução Russa de 1917 e a possibilidade de expansão da União Soviética, o pioneirismo da social-democracia sueca, a experiência fascista italiana, o New Deal dos Estados Unidos, o nazismo da Alemanha. “A humanidade respondia à crise de forma antiliberal, seja democraticamente, seja pela via autoritária”, sintetiza.

Avanços na mobilização

Foto: Igor Sperotto

Mobilização de trabalhadores contra as reformas trabalhista e da Previdência

Foto: Igor Sperotto

Na implementação do arcabouço jurídico que culminou na CLT, além de um projeto civilizatório e desenvolvimentista, também estão presentes os objetivos de Vargas em se manter no poder. Isso é praticamente um consenso entre historiadores e estudiosos do mundo do trabalho.

Porém, se, de um lado, a CLT é um projeto getulista de conciliação de classes que Clarice chama de incorporação do trabalhador a uma política de Estado, por outro, há inegáveis evidências de que ela contribuiu muito nos avanços em termos de mobilização sindical.

“Se fala muito que o movimento sindical antes de Vargas era mais autêntico. Era, mas era mais fraco também. Muito mais fraco”, evidencia a professora. Para ela, a visão getulista de sindicatos como uma parte importante da estrutura social, pensados como órgãos de colaboração do Estado, não quer dizer que isso funcionou exatamente assim.

“A CLT foi uma criação de um governo ditatorial, mas que fez isso se apropriando da própria experiência tida pelos trabalhadores nas décadas anteriores, que foi de extrema luta social”, lembra Clarice, ao sublinhar que vários direitos que figuram no decreto foram resultado de “disputas e lutas”.

Novo espaço

Obviamente, relata a professora, tudo na história é muito mais complexo do que se imagina. Contudo, a lei foi uma tentativa de dar uma resposta para as reivindicações da classe trabalhadora.

“‘Ah, vamos ficar todo mundo legal, numa boa, e os trabalhadores sendo obedientes.’ Só que não foi assim que isso foi apropriado pela sociedade. A CLT, cada vez mais, foi se tornando um espaço de embates e de lutas pela ampliação de direitos.” Agora, também, nas esferas judiciais, registra.

Antunes, na mesma linha, entende que, ao mesmo tempo que nascia, então, o sindicalismo de estado, com sindicatos atrelados via financiamento do Imposto Sindical, algo forte começara a germinar.

“Ao longo de 80 anos, tiveram muitas mutações. O sindicalismo se estruturou nacionalmente, vale lembrar que a CLT, inicialmente, excluía a classe trabalhadora ligada ao campo. O proletariado rural não tinha direito nenhum. As trabalhadoras domésticas também estavam excluídas. No entanto, o desenho estruturado para os trabalhadores urbanos contribuiu para que outros movimentos se desenvolvessem. Esse foi o maior avanço. As lutas das classes trabalhadoras por seus direitos também avançaram”, enumera.

O retrocesso e a necessidade de reconstrução

Foto: Igor Sperotto

CLT se tornou carta de direitos da maior parcela da população, aquela dos humilhados e ofendidos, diz Clarice Speranza, da Ufrgs

Foto: Igor Sperotto

O movimento de ebulição social perdurou até o golpe de Estado civil-militar de 1º de abril de 1964.

No período em que generais se revezavam para assumir a presidência do Brasil, rememora Droppa, “foi aprovado um conjunto de leis que atribuíram nova redação a dispositivos da CLT, correspondendo ao que alguns convencionaram chamar de ‘primeira onda liberal’”.

A criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), para substituir a estabilidade no emprego, e a lei de greve são exemplos cabais de que as elites nacionais operaram para impor um freio.

Após a reação do chamado Novo Sindicalismo dos anos 1980, as mesmas elites na década de 1990 buscaram desconstruir a rede de proteção social da CLT ao promover enfaticamente a terceirização.

O mais recente ataque, na visão de Antunes, Clarice e Droppa, foi iniciado na reforma trabalhista de Michel Temer, em 2017.

Desta vez, ao contrário de Vargas, o homem que conspirou para derrubar a então presidente Dilma Rousseff e assumir seu lugar jogou forte no processo para enfraquecer o movimento sindical via asfixia financeira.

O desafio, segundo os especialistas, é grande. “O saldo da reforma trabalhista é negativo para os trabalhadores, muitos direitos foram perdidos”, ressalta o pesquisador do Dieese.

Entre os exemplos, estão o direito à retroatividade nas negociações coletivas e a criação de mecanismos de precarização, como o trabalho intermitente.

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Movimento sindical

Foto: Igor Sperotto

Droppa do Dieese: “o pior momento, tanto para os direitos dos trabalhadores, quanto para o movimento sindical passou”

Foto: Igor Sperotto

Uma coisa é certa para Antunes: “Há uma onda muito pesada do grande capital brasileiro, a burguesia, os capitais industriais, agrícola e de serviços, para demolir os direitos do trabalho que estão contemplados na CLT que, se não são direitos do trabalho em um nível alto, refletem conquistas que foram se desenvolvendo ao longo dos anos 1930, 1940, 1950, 1960”.

O professor da Unicamp afirma que, para o movimento sindical, a questão crucial é a manutenção da lei, até que se estruture, “em um outro momento, um novo código protetor do trabalho que parta do mínimo garantido pela CLT, ao contrário do que quer o empresariado: afundar o mínimo, de tal modo que a classe trabalhadora não tenha mais direitos”.

Para Droppa, “o pior momento, tanto para os direitos dos trabalhadores, quanto para o movimento sindical passou”. Ele cita como exemplo recente um levantamento do próprio Dieese, demonstrando que, até junho de 2023, cerca de 88% das negociações nacionais tiveram aumento real acima da inflação.

“O sindicalismo teve que se readaptar ao novo cenário e, neste momento, os sindicatos estão fortalecendo suas negociações com os patrões”, avalia.

Uma tradição que se forja

Foto: Arquivo

Mobilização de operários da Chevrolet em São Paulo, na década de 1920

Foto: Arquivo

Coincidência ou não, se a Lei Áurea proibiu a escravidão no Brasil e libertou, em 13 de maio de 1888, as cerca de 700 mil pessoas que ainda eram escravizadas no país sem apresentar medidas para garantir direitos aos ex-cativos, na solenidade oficial do Dia do Trabalho de 1943, Vargas frisa no discurso em que anuncia a CLT: “O trabalhador brasileiro possui hoje o seu código de direitos, a sua carta de emancipação econômica. Ele sabe perfeitamente o que isto vale”.

O simbolismo visto por Clarice também está na ótica do professor Antunes. “Os trabalhadores, de certo modo, olham a CLT como a sua Constituição. Aquele sistema de regulamentação que, de um modo ou de outro, garantiu os direitos do trabalho no Brasil, ainda que em um patamar muito aquém do que a classe trabalhadora deveria e poderia ter conquistado”, considera a professora de História da Ufrgs.

Apesar de ter sido anunciada na Esplanada do Castelo, centro do Rio de Janeiro, nas proximidades do prédio do Ministério do Trabalho, a promulgação da CLT seguiu uma tradição criada por Vargas: a de fazer importantes acenos às classes trabalhadoras em grandes eventos no dia 1° de maio.

No estádio Vasco da Gama, o São Januário, no Dia do Trabalhador de 1940 foi apresentado o Decreto-Lei nº 2.162, o qual criou o salário mínimo. Um ano após, no mesmo local, o então presidente instalou, perante um público que ultrapassou 40 mil pessoas, a Justiça do Trabalho.

Até os dias de hoje, o 1° de maio é marcado como a data em que o governo federal anuncia os índices de reajuste para o mínimo nacional.

Mais que uma data-base, os grandes eventos cívicos realizados por Vargas para assinalar o Dia do Trabalhador entre as décadas de 1940 e 1950 forjaram uma tradição.

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