SAÚDE

Química da morte

Por Valéria Ochôa / Publicado em 8 de julho de 1997

O mundo tem hoje quase 200 milhões de drogados. Grande parte deles é vulnerável ao vírus da Aids. Outra parcela significativa está exposta às ações do crime organizado no tráfico. Uma população quase igual ao número de habitantes do Brasil, virtualmente, está condenada à morte pela dependência química. Há pouco mais de 20 anos, quando o médico gaúcho Cássio Castellarin era estudante de Medicina, o consumo de drogas e a dependência química não estavam em nenhuma disciplina do currículo do curso. Na residência em psiquiatria, concluída em 1980, também não. “Nenhuma faculdade tratava do assunto,” depõe Castellarin, 47 anos, integrante do Conselho Estadual de Entorpecentes (Conen) e do Conselho Municipal de Entorpecentes (Comen), de Porto Alegre. “No máximo, a gente chegou a ver alguma coisa sobre alcoolismo. Nem o tabagismo era considerado doença”. Para a psiquiatria, consumo de drogas era distúrbio de conduta. Hoje consta no currículo dos cursos de Medicina e o Código Internacional de Doenças, da Organização Mundial da Saúde (OMS), tem pelo menos um capítulo extenso dedicado à drogadição – dos tipos de drogas à dependência, com destaque para as doenças secundárias provocadas pelo uso de entorpecentes. “Agora a droga é considerada um problema de saúde pública e multiprofissional”, expõe Castellarin.

Relatórios da ONU, divulgados no Dia Internacional Contra o Abuso e Tráfico Ilícito de Drogas (26 de junho), revelam que cerca de 10% da população consome drogas. A mais difundida é a maconha, consumida por cerca de 140 milhões de pessoas. A mais perigosa é a heroína, que tem oito milhões de consumidores. O uso da cocaína é estimado entre 13 milhões de pessoas. Cerca de 30 milhões usam drogas sintéticas, como a anfetamina.

As consequências disso são drásticas. A literatura especializada aponta que entre 9% e 32% dos leitos dos hospitalares são ocupados por pacientes com moléstias relacionados ao uso do álcool – varizes, gastrite, úlcera, hemorroidas e distúrbios neurológicos. Das ocorrências policiais relativas a conflitos familiares, 39% estão relacionadas ao uso inadequado de bebidas alcoólicas. Mais de 60% da população fuma ou já foi fumante. O narcotráfico movimenta de US$ 500 bilhões a US$ 700 bilhões – é o terceiro negócio mais lucrativo do mundo.

CULTURA – Castellarin adverte que o cenário do problema no Rio Grande do Sul não é diferente. “Há 20 anos, as drogas eram consumidas por grupos pequenos, hoje existe a chamada cultura da droga. Dificilmente encontra-se um colégio, uma atividade social onde não haja o consumo de substâncias psicoativas e o tráfico. Ela está em muitos lares”, assina Castellarin, acrescentando: “a própria sociedade tem uma certa tolerância. Não marginaliza mais tanto os usuários, aceita o convívio, mas não sabe como abordar a questão na área da prevenção.”

Não existe pesquisa recente sobre o consumo de drogas pela população gaúcha, mas trabalhos em ambientes específicos, desenvolvidos entre o final dos anos 80 e início dos 90, apontam um crescimento do consumo. “O que temos de dados já dá para ter uma idéia da situação. É preocupante”, assevera a presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes (Conen), Carmem Freitas.

O uso da maconha cresceu em média 77,7%, de 1987 a 1993, entre estudantes de 1º e 2º graus da rede estadual de ensino, em Porto Alegre, segundo levantamentos epidemiológicos realizados pelo Departamento de Psicobiologia da Escola Paulista de Medicina e pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid). Em 1992, a pesquisa foi realizada pelo Programa Valorização da Vida/RS. Dos 1.146 alunos entrevistados em 1987, 4,5% consumiam maconha. Seis anos mais tarde, a mesma droga era usada por 8,0% dos 1.878 estudantes questionados. O uso da cocaína, por sua vez, cresceu em média 400% neste mesmo período. O consumo pulou de 0,3% no primeiro ano para 1,5% no último ano da pesquisa. No início de 1997, o Cebrid fez o mesmo levantamento em escolas de capitais brasileiras, mas os números ainda estão sendo cadastrados e serão divulgados em 1998. “As escolas estão desesperadas. O problema é muito grande”, afirma Carmem Freitas.

CONSUMO – Em 1991, a Fundação Universidade do Rio Grande (Furg) aplicou 9.954 questionários com 16 perguntas em 45 escolas de 1º e 2º graus do município. O estudo mostrou o consumo específico das substâncias: maconha, 37,2%; solventes, 13%, loló, 11,6%, hipnoanalgésicos, 52%, anorexígenos, 5,6%, cocaína, 4,3%, cigarro 3%, álcool, 2%, outros, 17,4%. A pesquisa revelou ainda que a população estudantil de Rio Grande não identifica o álcool e o tabaco como drogas.

Além de um programa de prevenção, há três anos a universidade criou um serviço de atendimento e orientação por telefone. O Televida funciona pelo número (0532) 32.9433, atendendo 24 horas por dia por meio de uma secretária eletrônica. Desde 94, já atendeu a mais de duas mil ligações, fornecendo informações sobre centros de recuperação de drogados e de auxílio ao dependente. As universidades federais do Sul do país também estão adotando programas contra o uso de drogas na comunidade. Entre as sete instituições federais de ensino da região, somente a Furg desenvolvia um programa educativo na área da prevenção ao uso de drogas.

O Serviço Social da Indústria (Sesi) e a Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs) realizaram um estudo, em 1994, dentro de 40 empresas de 25 municípios gaúchos. Dos 834 trabalhadores entrevistados, 30% eram fumantes, 57% usaram ou usavam maconha, 34,4% tinham ou tiveram contato com os inaláveis e 8,6%, com cocaína. Do total de entrevistados, 90,3% já usaram bebidas alcóolicas pelo menos uma vez na vida, 45,5% responderam que eram bebedores sistemáticos, 39% eram bebedores ocasionais e 6,2% bebiam durante os intervalos de trabalho. A pesquisa foi publicada no livro Trabalho e Drogas – Uso de Substâncias no Trabalho, Edipucrs, Fiergs, Sesi, 1995.

Legislação tem de ser respeitada

Segundo médicos, educadores e especialistas, a prevenção é fundamental para enfrentar a drogadição. A ONU sugere que as campanhas contra o uso de drogas não exaltem suas propriedades perigosas. Isso poderá diminuir a credibilidade da mensagem, e o receptor pode pensar que está sendo enganado. “É um trabalho que tem de envolver todos os setores da sociedade”, diz o psiquiatra Manoel Garcia Júnior, 32 anos, presidente do Conselho Municipal de Entorpecentes (Comen), de Porto Alegre. “Se quisermos, pelo menos controlar o uso e conseqüentemente a dependência química, temos de criar uma rede de prevenção, unindo a família, a escola, os governos num discurso único”.

O Executivo, o Legislativo, a mídia e a própria população têm de estar em sintonia na campanha. “Não pode haver dupla mensagem como tem acontecido”, observa Garcia. “No ano passado, poucos meses depois de assinar um protocolo de prevenção às substâncias psicoativas, o governo do estado estimulou a Souza Cruz a se instalar em duas cidades do estado”, lembra. “Foi um ganho imediatista. O que seria poupado em saúde, se não existisse cigarro, seria infinitamente superior ao ganho em impostos das indústrias de cigarro”. O psiquiatra também defende o cumprimento da legislação federal existente. “É proibida a venda de bebidas, solventes e cigarros para menores de idade e isso tem de ser cumprido”, destaca. É importante que as pessoas denunciem ao Ministério Público o descumprimento desta lei, assim como o descumprimento da lei que proíbe a propaganda de substâncias psicoativas acima de 13 graus, vinculada a qualquer forma de esporte olímpico.”

Para o toxicologista Ricardo Feix, 45 anos, o desemprego tem sido a grande dificuldade para qualquer tipo de prevenção ao uso de drogas. “O Brasil tem uma espetacular explosão do consumo de álcool e drogas, especialmente de drogas ilícitas, por causa do desemprego”, garante. “O pequeno narcotráfico em vilas populares tem sido um meio de vida”. Ele defende uma política que reprima a oferta de drogas e que, ao mesmo tempo, faça um trabalho de conscientização da população.

Feix entende que enquanto não houver leis que protejam a população da exposição contínua à propaganda de álcool, de tabaco, que são as drogas mais consumidas, nada vai funcionar. “E se não garantirmos espaço de educação pública na mídia contra o uso da droga e de seus efeitos, nós também não temos chance”. Para ele, a propaganda anti-droga tem de ser divulgada por personalidades públicas, como Xuxa, Gustavo Kuerten, Nelson Fitipaldi, Roberto Carlos.

Feix aponta a escola como peça fundamental no processo prevenção. “Mas nossa escola não está formando cidadãos para o mundo, indivíduos empreendedores, e a sociedade está completamente esmagada”, critica. “Nossa escola está formando pessoas pacíficas, que aceitam o mundo externo como ele é, não coloca o esporte como valor e não introduz nenhum valor espiritual, humano em seus estudantes”.

O Rio Grande do Sul, segundo Feix, tem algumas particularidades em relação a outros estados. Apesar de apresentar um aumento no consumo de drogas lícitas e ilícitas, a sociedade tem uma consciência um pouco maior. “É uma população mais escolarizada, mais estável em termos de migrações, e que tem uma agregação familiar um pouco mais intensa”. Ele aposta no trabalho do Conen e na disseminação de Comens pelo interior do estado, mas reclama: “a lei que criou os conselhos municipais de entorpecentes não identifica o custeio financeiro do próprio conselho”.

Descriminalização do usuário

Aprovado pela Câmara dos Deputados, o projeto de lei com uma nova política para prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão ao tráfico e ao uso indevido de entorpecentes está no Senado. O projeto do deputado federal Elias Murad (PSDB/ MG) preconiza a descriminação do usuário de drogas. “A nova lei vai nos dar uma nova luz”, acredita o toxicologista Ricardo Feix. No lugar da detenção de seis meses a dois anos e pagamento de 20 a 50 dias-multa (artigo 16 da Lei 6.368, de 1976), o projeto de lei penaliza o consumidor de droga sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, a cumprir medidas educativas: da prestação de serviços à comunidade ao tratamento em regime ambulatorial ou em estabelecimento hospitalar adequado e pagamento de 30 a 60 dias-multa. O projeto deverá ser analisado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em agosto, mas não há prazo para sua votação.

A Semana Gaúcha Contra o Uso Indevido de Drogas – de 28 de setembro a 5 de outubro – com a participação de mais de 350 instituições, é uma das principais ações do Conselho Estadual de Entorpecentes (Conen/RS) e, desde 1995, faz parte do calendário oficial de eventos do estado, através do Decreto 36.082. “É uma forma de mobilizar, provocar e trazer o assunto a tona”, observa a presidente do Conen, Carmem Freitas. Entre as atividades previstas estão palestras, encontros, seminários, concursos de redações, cartazes e frase, shows de arte, teatro, distribuição de mudas de plantas, confecção e distribuição de panfletos, folders, adesivos, botons, distintivos, publicações em jornais e revistas locais, participação em programas da mídia, apresentação de filmes, vídeos, atividades esportivas, gincanas, bailes do “refri”. “Tivemos uma resposta muito grande nas edições anteriores. As pessoas estavam querendo saber sobre o tema”. A idéia é envolver diferentes segmentos da sociedade no trabalho. Neste ano, o tema da semana será o uso de drogas nas escola e na família. Temos de substituir a ideologia pela ciência para implementar estratégias de prevenção e tratamento dos usuários de drogas”, assinala Carmem.

O Conen tem à disposição um kit com 11 folders (cada um falando sobre um tipo de droga), além de materiais institucionais informativos e educativos sobre o assunto. “Quem quiser alguma informação, pode entrar em contato conosco”, convida. O representante do Sinpro/RS e da Apaepergs junto ao Conen, Bartolo Perez chama os sindicatos a participarem das atividades: “é importante que o trabalhador esteja presente nas discussões”.

FORMAÇÃO – A secção de Saúde Mental da Secretaria Estadual de Saúde, desde o ano passado, está implantando o Programa de Controle do Alcoolismo e de Outras Dependências Químicas. Técnicos da secretaria viajam para as 18 delegacias regionais de saúde, treinando funcionários dos municípios, do estado e da União, para o atendimento dos pacientes com dependência química. “Nosso enfoque é extra hospitalar”, ressalta Mary Nunes, 30 anos, médica geral comunitária e psiquiatra da secretaria.

Cada delegacia agrupa de 40 a 50 municípios. O programa pretende envolver no mínimo 900 técnicos (do nível mais simples ao superior). “São pelo menos dois técnicos por município”, diz Mary. “Mas o trabalho é multiplicador e acaba envolvendo mais gente – a família, escola, local de trabalho, o próprio posto de saúde e legisladores”. Os profissionais estão sendo instruídos a identificar e a abordar os pacientes, encaminhá-los ao atendimento individual e em grupo, fazerem grupos de familiares de dependentes, usarem medicação e encaminhá-lo para ambulatório especializado ou internação quando necessário.

Escolas se mobilizam para prevenir

Pelo menos uma vez por mês, representantes de cerca de 25 escolas da rede particular de ensino de Porto Alegre e região metropolitana se reúnem para trocar experiências sobre programas de prevenção ao uso de drogas desenvolvidos dentro das próprias instituições de ensino. “Em cada mês, o encontro é realizado em uma das instituições de ensino envolvidas, numa tentativa de unir forças e informações sobre o assunto”, conta Adriana Menelli de Oliveira, 35 anos, uma das coordenadoras da Educação Infantil do Colégio Americano, um dos participantes.

Desde o início de 1996, o Colégio Americano vem desenvolvendo o projeto Valorização da Vida, um programa de prevenção ao uso de drogas. Integrando os 1.500 alunos, da pré-escola ao 2º grau, pais, professores e funcionários, o trabalho resulta em campanhas de esclarecimentos, estudos e debates sobre drogas, saúde e prevenção. “Percebemos que nosso trabalho não poderia ficar restrito aos alunos. As dificuldades familiares acabam refletindo no interesse do aluno pelo estudo e pela própria vida”, esclarece.

A equipe do colégio, formada por cerca de 30 educadores, funcionários e representantes da direção, buscou orientação junto a profissionais da área e ao Conselho Estadual de Entorpecentes (Conen). “Foi preciso conhecer os estudos científicos das drogas, a identificação das mesmas, seus efeitos e conseqüências para podermos entender o que acontece”, pondera Adriana. Segundo ela, a iniciativa agradou aos professores.

Neste ano, o colégio vem desenvolvendo fóruns junto às famílias sobre limites, o papel da escola e da própria família, direitos humanos, afeto, autoridade.

Seringa nova contra a Aids

L.A., 54 anos, assistiu muitos vizinhos, usuários de drogas injetáveis (UDIs), tombarem vitimados pelo vírus da Aids. Mas a epidemia a atingiu mais de perto, há três anos, com a morte do irmão. Ele era um UDI. A filha de 27 anos, também usuária de drogas, e o neto de dois anos estão com o vírus HIV. Aposentada, com problemas cardíacos, morando com a filha mais nova, de 15 anos, que a ajuda a cuidar de três netos (abandonados pela mãe), L.A. está trabalhando para diminuir a contaminação do vírus da Aids na vila onde mora, na periferia de Porto Alegre.

Ela é um dos 16 agentes comunitários (voluntários) integrados ao programa Redução de Danos, implantado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMSS), em fevereiro do ano passado, em parceria com o Ministério da Saúde. Em cima da geladeira de sua casa de três peças, repousa uma caixa coletora de seringas usadas. Em outro recipiente, as seringas limpas. Muitos dependentes da vila já sabem que ali é um dos pontos de troca de seringas. Basta levar as usadas para sair com as limpas. Tam-bém está a disposição camisinhas e materiais informativos sobre o uso correto destes “equipamentos”. “Uns dez usuários de drogas já trocam as seringas comigo”, festeja. “Aqui, tem crianças com menos de dez anos de idade já usando maconha, cigarro, crack (chamado aqui de macaquinho) e álcool”, descreve o uso de drogas na vila onde mora.

Coordenado por Domiciano Ribeiro Siqueira, 38, consultor em dependência química, o programa Redução de Danos é uma das estratégias da SMSS e do Ministério da Saúde para diminuir a proliferação do vírus da Aids, bem como, outras doenças, como a Tuberculose, Malária, Hepatite B e C. “Partimos do fato de que muitas pessoas usam drogas injetáveis, não querem ou não podem parar, mas que podem pelo menos diminuir os prejuízos”, explica Domiciano. “E a troca de seringas é uma das medidas para evitar que os usuários da droga compartilhem uma mesma seringa e corram o risco de contrair Aids e outras doenças, além de infectar outras pessoas.” O Ministério da Saúde vai repassar R$ 100 mil para o programa desenvolvido em Porto Alegre, um dos únicos do país em funcionamento com ligação governamental e o que está num estágio mais avançado. Até o momento, a prefeitura já recebeu um terço do total de recursos previstos.

PERIFERIA – Seis vilas da periferia, onde vivem cerca de 60 mil pessoas, compõem a área de abrangência do trabalho. A região foi definida a partir do alto índice de miséria, do tráfico, do número de usuários de drogas e de casos notificados de Aids. A distribuição de seringas foi efetivada em outubro do ano passado, depois da preparação dos monitores para o trabalho e do reconhecimento dos locais de abrangência.

O programa conta com um grupo de dez monitores que recebem um salário de R$ 150,00. Divididos em duplas, visitam as vilas duas vezes por semana. Uma, no cair da tarde, para abastecer os agentes comunitários com seringas limpas e camisinhas. Já na madrugada, os monitores passam pelos pontos de encontro ou locais onde os usuários se injetam as drogas para entregar kits (estojos), contendo duas seringas, agulha, lenço com álcool, água destilada para o preparo da droga e materiais institucionais que fazem recomendações de saúde, limpeza e dão informações sobre o tratamento da drogadição e da Aids.

“O pessoal ainda tem resistência com os kits com medo de que eles possam servir para identificá-los”, conta Domiciano. “Por usarem drogas, eles já são discriminados, mas o preconceito é maior ainda com os UDIs”. O uso da camisinha também está recebendo resistência. “A gente houve comentários do tipo: é a mesma coisa que comer bala com papel. Mas a informação de que é importante manter sexo seguro está sempre presente”. Domiciano garante, no entanto, que o uso de seringas limpas já foi bem assimilado pelos UDIs e comunidade em geral. “Quase não encontramos mais seringas sujas jogadas em bueiros ou camufladas para serem usadas novamente”. Os monitores têm ainda a tarefa de encaminhar os usuários para fazer o teste de Aids e para tratamento. O resgate da cidadania é outro ponto desenvolvido pelo programa. “Mostramos que não é por usar drogas que o indivíduo perdeu seus direitos e deveres. Assim, tiramos as pessoas dos guetos e as trazemos de volta à sociedade”.

A média é de 750 seringas limpas trocadas ao mês dentro da área de abrangência do projeto. “Atingimos hoje mais ou menos 100 usuários de drogas injetáveis”, expõe Domiciano. Em nove meses de implantação do Redução de Danos, foram distribuídos 15 mil preservativos. O programa conta atualmente com o auxílio de 600 pessoas da comunidade que ajudam a viabilizá-lo. São donos de bares, donas-de-casa, adolescentes e os próprios dependentes de drogas, que participam voluntariamente de palestras e encontros para conversarem sobre sexo, drogas, Aids, contaminação e saúde pública.

P.S., 29 anos, cinco filhos, é UDI e soropositivo (tem o vírus HIV). Depois de implantado o Redução de Danos, garante que não tem compartilhado mais seringas. Ele é um dos UDIs da vila em que mora, que mais tem trocado seringas. “Eu sempre disse, se tivessem começado a troca antes, teriam evitado a morte de muitos amigos meus. Aids aqui parece que está na moda. Muita gente tem. O pessoal quando está na vontade da droga, injeta de qualquer forma, com o que tiver por perto. Hoje pelo menos eles têm a chance de usar a coisa de forma correta, sem complicar a vida de ninguém,” conta. Atualmente, ele gasta uma média de dez “arpões” (seringa na giria local) por dia para o uso de cocaína. Mas já chegou a usar quase o triplo.

Começou a se drogar com 15 anos de idade. “Tenho claro na cabeça de que está acabando comigo, mas ela está aqui perto e meu tempo sem fazer nada acaba me levando pra este caminho. Tive várias oportunidades, só que a cabeça não pensa e o corpo padece”, explica-se o rapaz que já foi aluno da escolinha de futebol de um dos times da cidade. Desempregado, P.S. presta favoreces para conseguir cocaína e acredita que se tivesse a possibilidade de sair da vila e conseguir um emprego poderia sair da rotina de uso de drogas. “A gente conversa muito com os monitores sobre isso”.

LINGUAGEM – Denise Benevenuto, 31 anos, e Fátima Berenice Machado, 37, são monitoras do Redução de Danos. Estão há cerca de dois meses visitando as vilas de abrangência do programa. Elas têm um trunfo para garantir a receptividade da comunidade da região. Denise cresceu numa das vilas de abrangência do programa. Também já usou cocaína e maconha, esporadicamente. “Isso abriu as portas para a gente fazer o trabalho porque sabemos como chegar neles”, garante. Fátima foi uma UDI e é soropositivo. Compartilhava a seringa com o marido, que morreu no início deste ano, vitimado pela Aids, e outros usuários de droga. Hoje ela está em recuperação, com sete meses de abstinência. “A gente fala na lin-guagem dos usuários de drogas porque a gente já foi do meio e sabe como tratar do assunto. Nos ouvem mais porque não chegamos impondo nada, mas mostrando as possibilidades de evitar o contágio, de não abusar”, garante.

É possível parar de usar

“Estou em abstinência há seis anos, sete meses e dois dias”, declara. Kristine Gomes da Silva, 36 anos, entrevistada no dia 8 de julho. Ela é proprietária de um salão de beleza em Porto Alegre, começou a beber compul-sivamente depois da separação do primeiro casamento. Com um filho pequeno, diz que se sentia triste, deprimida. Além do cigarro e do álcool, o passo seguinte foi a cocaína, dado aos 24 anos. Foram cinco anos de uso de drogas quase ininterruptos. Tímida, atribuia ao álcool e à cocaína a “responsabilidade” para torná-la mais extrovertida, independente, segura.

Passou por diversas clínicas e hospitais. No Centro de Dependência Química (CDQUIM) do Hospital Belém Novo, o processo de recuperação ganhou um novo horizonte. “Aqui eles acertam em cheio. É inteligente. Uma escolha. Te ensina caminhos para evitar recaídas”, aponta.

Kristine afirma que é possível deixar de usar drogas. “Agora tem uma coisa. Tratamento só dá certo se a pessoa quer”, antecipa. Mesmo com todo o tempo de abstinência, ela continua em tratamento. “Sei que poderia deixar de vir aqui, mas é um trabalho diário, construído. Não é só parar. Para ter qualidade de vida, tem que haver reformulações dos valores, que são invertidos durante o uso da droga”, expõe. “Se minha vida estiver equilibrada, o perigo de recair é menor”.

Hoje Kristine está casada novamente (conheceu o marido num grupo de Alcóolicos Anônimos, também em recuperação), e tem mais um filho. “Todos estão ou passaram por tratamento. É muito importante a família se tratar junta. Resolver as culpas para que a vida corra saudável”.

Atendimento pelo SUS é polêmico

“Todos os hospitais conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS) estão capacitados a internar os dependentes químicos para tratamento”, garante Mary Nunes, médica geral e psiquiatra da Secção de Saúde Mental e Neurológica, da Secretaria Estadual de Saúde. Porém, o presidente do Conselho Municipal de Entorpecentes de Porto Alegre (Comen/POA), Manoel Garcia Júnior, sustenta que poucos possuem programa para tratar a dependência química. “O problema pegou todas as instituições despreparadas”, concorda Carmem Freitas, presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes (Conen). “A família não sabe como educar os filhos para prevenir. O SUS não tem recursos humanos capacitados”.

Em Porto Alegre, segundo Garcia, são apenas 120 leitos do SUS destinados à dependência química. Além da Cruz Vermelha e do Hospital Conceição, que oferecem um serviço gratuito, apenas o Centro de Dependência Química (CDQUIM), do Hospital Parque Belém, o Hospital Espírita e o Hospital Psiquiátrico São Pedro oferecem atendimento a população carente também pelo SUS. “Isso é pouco para a demanda”, garante Garcia. “Um garoto que está intoxicado numa escola não tem para onde ser encaminhado e receber atendimento pelo SUS porque os leitos são destinados a adultos,” ilustra. “Talvez isso explique a proliferação de centros e fazendas, com vínculo religioso, que tentam suprir a lacuna do poder público”. O catálogo de serviços de atenção às dependências químicas do Ministério de Saúde de 1996 indica que 70 entidades gaúchas estão trabalhando com algum tipo de assistência aos dependentes químicos.

Para a clientela com poder aquisitivo existem clínicas de reconhecimento internacional. O RS está entre os três estados do país com melhor qualidade técnica e de atendimento. “O estado é o primeiro do país em número de serviços oferecidos na área”, garante Arnaldo Woitowitz, consultor da Unidade de Dependência Química (UDQ), do Hospital Mãe de Deus. Em 1970, havia dois serviços de atendimento ao alcoolista em Porto Alegre. Agora são 23 locais que atendem também outras dependências químicas.

Em funcionamento desde outubro de 1984, a UDQ já recebeu mais de 3.600 internações. São pacientes particulares que podem desembolsar R$ 3 mil, no mínimo, por uma média de 10 dias de internação. “O trabalho da unidade se dá em cima da prevenção e da recaída”, expõe Woitowitz. “O sucesso depende do que o paciente fizer depois da hospitalização.” A UDQ atende também por convênios com a CEEE, Banco do Brasil, Banrisul, CEF, Empresa Brasileira de Correios e Télegrafos, e através de Cartas de Crédito de empresas que possuem o programa de tratamento. “Dependência química é a doença mais democrática que conheço, atinge a todos”. Para ele, o consumo de drogas não aumentou nos últimos dez anos. “Ele se mantém, o que acontece é que se tornou público”.

População pobre busca tratamento alternativo

A bebida alcóolica consumiu quase 30 anos da vida de Adolfo Engelkes, hoje com 69 anos. Depois de muitas promessas de parar de usar bebida foi abandonado pela família. Passou a perambular pelas ruas de Porto Alegre alimentando o vício com os poucos trocados que alguém depositava em suas mãos. “Estava num estado deplorável”, conta o ex-marinheiro, natural de Pelotas. “Não podia mais nem caminhar, dormia embaixo de viadutos e só vivia para beber”. Em 1993, foi levado por uma assistente social ao Centro de Reabilitação Vita, na Lomba do Pinheiro, na divisa de Porto Alegre com Viamão. Está lá desde então e garante que nunca mais colocou um gole de álcool na boca. “Depois de muitas cabeçadas, encontrei Jesus”, explica apontando para a Bíblia e se dizendo convertido pela religião protestante. “Não sei quando vou sair daqui. Talvez, nem saia. Ir para onde?”. Adolfo é um dos 130 dependentes químicos em recuperação que estão no Centro Vita.

Criado em 1989, pelo chamado Zé das Drogas, um dependente químico em recuperação, o Centro Vita foi um dos locais para tratamento gratuito em dependência química que surgiu, no final dos anos 80, para atender a população carente. Sem um programa médico de recuperação, os dependentes preenchem o tempo trabalhando no local, buscando apoio entre si e nos cultos religiosos. Até o final do ano passado, moravam em barracas espalhadas nos 13,7 hectares de uma área particular emprestada, e se alimentavam com doações. Desde janeiro deste ano, já sob a direção de Sérgio Souza, 40 anos, mais conhecido como Capitão Sérgio (militar cedido para a Assembléia Legislativa), as barracas deram lugar a pequenas casinhas de 12 metros quadrados, construídas pelos internos, com madeiras recicladas de paletes (tábuas de aproximadamente 50 centímetros que protegem bobinas de papel). “Pretendemos regularizar o terreno”, antecipa o diretor.

O público alvo também foi ampliado e o Centro Vita passou a receber pessoas com problemas mentais, que hoje somam 129. “Quase todos saíram, depois da reforma, do Hospital São Pedro, e acabaram nas ruas”, explica Capitão Sérgio. “Chegam aqui em estado crítico. Não temos como rejeitar”. Muitos deles dependem da ajuda dos próprios internos para se alimentarem, tomarem banho e dos cuidados com a saúde. Um médico faz atendimento nas segundas e quintas-feira pela manhã.

“Tudo aqui é feito pelo pessoal em recuperação com doações da comunidade”, conta o Capitão. As tarefas são distribuídas e começam com o clarear do dia, num ritmo marcado minuto a minuto, com intervalos para o culto religioso numa capela improvisada e horário cívico. O capitão Sérgio garante que a religião não é imposta, mas admite que muitos se agarram a ela para ganhar forças para a recuperação. Um grupo fica encarregado da cozinha – são 27 mil refeições por mês, outro da construção das casas, outro cuida da limpeza, outro ainda dá atendimento para os moradores da “ala” dos doentes mentais. Quem recair ou acabar descumprindo as regras volta para um pavilhão onde ficam as pessoas recém chegadas ao Centro, e começa “tudo de novo” até receber a sua casinha de volta.

Além das doações, o Centro Vita engorda a receita com recursos repassados pela Associação Amigos do Centro Vita (que tem 550 sócios que contribuem de R$ 10,00 a R$ 100,00 mensais) com a venda de uma média de 300 cucas por dia, no valor de R$ 1,50 cada, preparadas pelos internos.

CDQUIM atende dependentes e seus familiares

O Centro do Dependente Químico (CDQUIM), do Hospital Parque Belém, foi criado há sete anos pelo médico toxicologista Ricardo Feix, com uma missão: oferecer atendimento integral aos abusadores e dependentes de álcool e outras drogas e a seus familiares. No ano passado, foram 1321 internações hospitalares. Dos 18 leitos, 79% são ocupados por pacientes do SUS. O restante serve aos pacientes conveniados (Governo do Estado, UFRGS, PUC/RS, FESC, Unimed, Ipergs, Fundação Banrisul, Fundação CEEE, Fucae, EBCT). As hospitalizações para os pacientes do SUS são entre sete a dez dias. Para os conveniados, o período de internação é de dez a 14 dias. O tratamento completo envolve três períodos de internação: desintoxicação, conscientização e ressocialização. O CDQUIM também atende pacientes particulares, na unidade privativa. A taxa de ocupação aproxima-se de 90% e há constante lista de espera de até seis semanas para internação e oito semanas para consultas.

“O abuso e dependência em álcool e outras drogas, incluindo o tabaco, é uma epidemia social”, avalia Feix. Mestre em saúde pública e Hipnoterapeuta, ele atribui esta ‘epidemia’ ao interesse econômico. “É o resultado de uma sociedade que está se decompondo, que não está conseguindo responder à felicidade humana e que busca a transcendência através de uma viagem nas drogas, da fantasia”, comenta Feix.

Notas

Dependência
De cada 100 pessoas que experimentam bebidas alcóolicas, 10 ficam dependentes ao longo da vida. De cada 100 pessoas que experimentam as drogas ilícitas, três acabam se tornando dependentes. (fonte: Fipad)

Programa
O Ministério da Saúde, por meio do Projeto de Drogas, financia seis linhas de trabalho, da pesquisa às atividades de prevenção de contaminação do HIV entre os UDIs, passando pelo treinamento de pessoal, tratamento e reinserção de dependentes. Os recursos somam R$ 10 milhões.

Índice
Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, de setembro a novembro de 1996, o número de casos de AIDS no Rio Grande do Sul atingia 5.243 notificações, numa proporção de 2,5 homens e 1 mulher.

Pesquisa
A Secretaria Municipal de Saúde e Serviço Social está iniciando um levantamento dos casos de AIDS notificados em Porto Alegre. Até o momento, foi constatado que 22% das pessoas que contraíram o vírus são usuários de drogas injetáveis. “É a ponta do iceberg”, diz Domiciano Siqueira, coordenador do programa Redução de Drogas. “Muitos têm o vírus e não sabem e outros não admitem que pegaram o vírus usando drogas, pela própria ilegalidade do uso”.

Comitê
Domiciano Siqueira faz parte de um comitê científico que está estudando a implantação de uma associação latino-americana de projetos de Redução de Danos. Uma das atribuições deste comitê será a realização da 9ª Conferência Mundial de Redução de Danos, que acontecerá em março de 1998, em São Paulo, reunindo especialistas do mundo todo. Será a primeira conferência do programa a ser realizada num país em desenvolvimento.

Nova Lei
O projeto de lei com uma nova política sobre drogas, aprovado pela Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado, poderá legalizar a troca de seringas. A lei atual leva à interpretação de que a troca ou distribuição de seringa incentiva o uso da droga. No projeto aprovado, do deputado Elias Murad (PSDB/MG), isso foi mudado. No 12º artigo está escrito que incorre na pena de 6 a 15 anos de prisão quem contribui para o uso de entorpecentes, “ressalvadas as ações de saúde empreendidas pela autoridade sanitária”.

Números
Metade dos usuários de drogas injetáveis estão contaminados pelo vírus que provoca AIDS e 71% deles costumam compartilhar seringas em grupo. Esse foi o resultado da pesquisa desenvolvida de 94 a 96, com o apoio do Ministério da Saúde, pelas psicólogas Regina Bueno nas cidades de Santos (SP), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), Itajaí (SC), Corumbá (MT), Cuiabá (MS) e Goiânia (GO). Estas são as oito cidades com maior índice de transmissão de AIDS por droga injetável no país. A pesquisa é a primeira a traçar um perfil dos UDIs, população estimada em 500 mil dependentes. A pesquisa ouviu 664 usuários de drogas injetáveis. Eles têm baixa renda, idade média de 28 anos, 80% são homens, 84% sabem ler, 67% já foram presos mais de uma vez e apenas 33% já procuraram tratamento. A contaminação pelo vírus HIV via seringas compartilhadas por UDIs ocupa o segundo lugar nas formas de transmissão da doença – 21,3% dos 103 mil casos notificados até março deste ano.

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