SAÚDE

Quando a cidade se transforma em pista de obstáculos

É raro caminhar pelas ruas de uma cidade no Brasil sem tropeçar em um buraco, ter de desviar de uma pedra na calçada, uma placa ou uma banca de revistas. Se este é um problema para quem enxerga, é pior par
Por Clarinha Glock / Publicado em 17 de abril de 2009

Vinte anos depois da primeira legislação que reconheceu e garantiu o direito de acessibilidade – a Lei nº 7853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração das Pessoas com Deficiência – , há muitos obstáculos. Em 2004, o Decreto nº 5296 regulamentou as Leis nº 10.048 e 10.098 que estabeleceram a prioridade de atendimento e as normas gerais e critérios básicos de promoção da acessibilidade. Estipulava, por exemplo, um prazo de 24 meses para a adaptação do transporte público. O período máximo seria de 12 meses para a acessibilidade em portais e sítios eletrônicos de administração pública na Internet para pessoas com deficiência visual.

Novas leis, portarias e decretos vieram depois, em nível municipal, aperfeiçoando as diretrizes, estipulando novas datas para o cumprimento e, no entanto, o Brasil está visivelmente atrasado em relação a outros países. Como o prazo da lei federal já expirou, os municípios fazem termos de ajustamento de conduta conforme a situação.

Porto Alegre devia servir de exemplo para as cidades menores, já que existe até um órgão executivo – a Secretaria Especial de Acessibilidade e Inclusão Social. Mas o secretário Tarcízio Teixeira Cardoso, ele próprio uma pessoa com deficiência, reconhece que a mudança é lenta porque inclui um processo de inovação conceitual sobre as questões estruturais – urbanística, arquitetônica, de transporte e comunicação – , e, principalmente, cultural.

“Conta a história que os índios deixavam para morrer seus filhos com deficiência”, lembra o secretário. Sofismas e mitos ajudaram a perpetuar o preconceito e a impedir avanços – ou a pessoa é vista como um super herói, que sem pernas e sem braços ultrapassa qualquer barreira, ou como um coitadinho que está com um cobertor em cima das pernas e com a boca entreaberta, esperando a hora do comprimido. Muitos antes não exigiam seus direitos porque ficavam em casa – era tão difícil circular pelas ruas, entrar nos lugares e se sentirem efetivamente cidadãos, que preferiam evitar o confronto. Agora que saíram, não há desculpa para ignorá-los.

O custo ainda é uma barreira

Um problema constatado pelo secretário Tarcízio Cardoso é a falta de apropriação dos custos para aplicar a acessibilidade. Por desconhecimento, e com um orçamento em geral apertado, na hora da construção muitas obras não contemplam recursos para fazer as adequações necessárias. Quando existe a verba, não consideram o custo-benefício. O gasto a mais com o concreto de uma rampa construída conforme orientações técnicas, por exemplo, pode ser compensado pelo uso inteligente do novo espaço – abaixo dela pode ser instalado um bebedouro, um quiosque, um depósito. Além disso, economiza o preço de refazer o projeto para adaptá-lo conforme a lei depois que a obra é concluída.

“Todo mundo diz que custa caro, mas uma pessoa com deficiência não é mais alguém dependente do assistencialismo, ela produz”, acrescenta Cardoso. “Revistas pagam a sua publicação com anúncios para pessoas com deficiência, o que comprova que é um consumidor em potencial”.

A lei exige que pelo menos 10% da frota de ônibus tenha elevadores para o ingresso de cadeirantes. “Mas falta manutenção nos ô nibus de Porto Alegre e algumas vezes os elevadores não funcionam”, reclama Dilceu dos Santos Flores Júnior, chefe da Unidade de Deficientes Físicos da Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas Portadoras de Deficiência e Pessoas Portadoras de Altas Habilidades no Rio Grande do Sul (Faders). Outra reclamação são ônibus com lugar para apenas um cadeirante – se esta pessoa estiver acompanhada de outra em cadeira de rodas, uma delas terá esperar pelo veículo seguinte, o que pode durar até 40 minutos, dependendo da linha e do itinerário.

Mesmo um cadeirante experiente como Flores Júnior já caiu em buracos duas vezes, furou um pneu de sua cadeira e quebrou uma roda em calçadas irregulares. Outra vez quase foi atropelado por um ônibus porque a calçada era muito alta – teve de andar pelo meio da rua até encontrar um rebaixamento.
Fora da capital é ainda pior

No interior do estado, a situação é mais preocupante. A realização de fóruns locais organizados pela Faders tem estimulado discussões e mudanças. “As pessoas vêm nos agradecer porque não sabiam do direito a passe livre e outros benefícios”, conta Flores Júnior. Donos de hotéis de Caçapava do Sul e Montenegro adequaram seus estabelecimentos para receber os visitantes. Em Caxias do Sul, depois da realização dos fóruns, foram instalados elevadores nos ônibus. Em Bento Gonçalves, as escolas começaram a se adaptar e os professores estão se qualificando. Em Tapera, a administração municipal construiu um cordão da calçada alto demais e foi alertada para que fizesse um rebaixamento.

“A educação é a alma do negócio”, diz Flores Júnior. “Se os pais não encaminharem os filhos com deficiência para a escola, eles mesmos estarão discriminando. Isso é comum nas cidades menores, onde as crianças não vão ao colégio porque não têm transporte escolar adaptado”. A lista de constrangimentos é tão grande, que desanima. Como a do rapaz que passou em todos os testes para um emprego, mas não foi contratado porque sua cadeira de rodas não passava na porta da sala onde iria trabalhar, a frustração de alguém que usa um veículo especial e sua vaga no estacionamento é ocupada por quem não precisaria dela, ou uma pessoa com deficiência visual que bate a cabeça em um telefone público porque no chão, antes dele, não existe um sinalizador adequado.

Os preconceitos e as barreiras precisam ser superados com informação e denúncias. “Temos que buscar parcerias com o governo e a sociedade civil para orientar, informar, e para que as ações efetivamente se realizem”, enfatiza Adilso Luis Pimentel Corlassoli, presidente do Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência de Porto Alegre. Corlassoli, que é coordenador-adjunto de Educação Especial na Secretaria Municipal de Educação e tem deficiência visual, considera a legislação brasileira uma das cinco melhores do mundo. “Precisa tirála do papel”, explica.

Uma das medidas, por exemplo, visa a dar acesso aos caixas de autoatendimento dos bancos. “As redes bancárias foram notificadas para fazer as modificações exigidas”, adianta Corlassoli. As mudanças devem permitir a um deficiente visual consultar sua conta conectando um fone de ouvido. A tela se apaga, e ele passa a usar a voz, podendo fazer todas as operações. Nas cidades onde não existem os Conselhos de apoio às pessoas com deficiência, quem se sentir lesado pode denunciar diretamente ao Ministério Público, que tem obrigação de fazer valer as leis.

Oliveira luta pelo fim dos constrangimentos

“Não precisamos de ajuda, só do direito de ir e vir”, ressalta Carlos Roberto Oliveira, o Carlão, campeão nacional e internacional de maratonas em cadeiras de rodas. Apesar de ser um atleta reconhecido, Oliveira sofre no dia-a-dia ao ser barrado na entrada de banco para saber onde vai, só porque é cadeirante ou está de muletas. Quer poder ir a um cinema e não ter de sentar quase em cima da tela, e se divertir à noite em um bar sem precisar de ajuda para se deslocar.

Fala, brincando, que é um “animal em extinção”, porque tem sequelas de poliomielite e a doença foi erradicada no país. Nas últimas eleições, candidatouse a vereador em Porto Alegre. Não foi eleito, mas considera-se um vencedor. “Hoje tenho meu espaço na sociedade graças ao esporte. Ele me deu saúde, porque tenho a musculatura mais trabalhada, reflexos apurados, sem falar que conheci os quatro cantos do mundo”, conta. Venceu provas importantes, como a Maratona de Nova Iorque em 2001. Atualmente tem patrocínio, mas precisou fazer um empréstimo para viajar – já ouviu de uma empresa que não iria patrociná-lo porque ficava ruim associar sua imagem à de um “aleijado”.

Oliveira luta pelo fim das discriminações. Em fevereiro, junto com o Clube Gaúcho do Desporto em Cadeira de Rodas do qual é integrante, participou do encaminhamento de uma representação à Promotoria de Direitos Humanos de Porto Alegre para exigir a concretização de políticas públicas de desporto adaptadas no Município. E está articulando também reuniões com os representantes do Estado para garantir o acesso a centros de treinamento e a criação de uma escola paraolímpica para crianças.

Calçadas nota zero

A Secretaria Especial de Acessibilidade e Inclusão Social de Porto Alegre tem duas prioridades este ano: concluir o Plano Diretor de Acessibilidade e criar um grupo de fiscais que deverão percorrer a cidade para alertar e multar os infratores. A verba arrecadada com as multas deverá reverter para um fundo a ser administrado pelo Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência.

A primeira fase do Plano Diretor de Acessibilidade incluiu um levantamento criterioso das pavimentações e do regramento do mobiliário urbano (caixas de correio, orelhões, telefones públicos, bancas, cartazes) de Porto Alegre feito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em parceria com a Prefeitura. O resultado não foi bom. A nota média para as calçadas é 7, calcula o secretário Tarcízio Teixeira Cardoso – isso se levar em conta cada item separadamente. De forma coletiva, é zero. “Não adianta ter uma rua com pavimentação perfeita se há uma banca de revistas que impede a passagem de uma cadeira de rodas”, explica.

O pré-projeto do Plano Diretor será encaminhado para consulta popular em reuniões temáticas e audiências públicas. Outra etapa, a ser concluída em 2009, prevê a aplicação da lei na prática, em um projeto-piloto de acessibilidade em quatro ruas do Centro.

Onde buscar informações
– Secretaria Especial de Acessibilidade e Inclusão Social de Porto Alegre
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/seacis/
– Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa com Deficiência
http://www.mj.gov.br/corde/

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