SAÚDE

Cessam as campanhas, cessam as doações

Nós não temos ritmo quando o assunto é doação e ritmo deve ser uma constante. Aqui, no Brasil, de­pendemos de campanhas espasmódicas e generosas, desencadeadas pela mídia, diz JJ Camargo
Publicado em 12 de setembro de 2014
José Camargo é palestrante do projeto Cultura Doadora da Fundação Ecarta

Foto: Leonardo Savaris

José Camargo é palestrante do projeto Cultura Doadora da Fundação Ecarta

Foto: Leonardo Savaris

“Todo mundo pode ser doador, porque algo sempre pode ser aproveitado, independente da ida­de”. Quem ensina é o diretor-médico do Centro de Transplantes da Santa Casa, o cirurgião torácico José Camargo, referência em transplante pulmonar na América Latina. Ele afirma que a base para uma cultura doadora de órgãos e tecidos está na educação. “Nós não temos ritmo quando o assunto é doação e ritmo deve ser uma constante. Aqui, no Brasil, de­pendemos de campanhas espasmódicas e generosas, desencadeadas pela mídia, uma conduta errática e que não tem durabilidade. Cessam as campanhas, cessam também as doações”.

Camargo sentencia que a doação de órgãos e te­cidos é algo muito sério para depender de processos episódicos. “Para se ter uma ideia, em abril foram fei­tos cinco transplantes pulmonares, mais de um por se­mana. Em seguida, não foi feito mais nenhum. E que ocorre, então? Começam a morrer pessoas na fila”. O médico observa que a sociedade gaúcha tem um desempenho “bastante razoável” quando solicitada a doação e diz que 72% das famílias se mostram sensíveis à causa.

Explica que o sistema de doação possui dois pontos fun­damentais: um é a sociedade, que deve ser sensibilizada, e o outro é a estrutura pública, responsável pela solicitação de doações. “Mas há aí um problema muito grave, não há sistematiza­ção da busca por órgãos. Em países mais desenvol­vidos há uma busca ativa constante”. Ele critica o fato de se apostar demais nas condições das famílias para tomar a decisão. “É exigir muito de quem está traumatizado pela perda. No momento de derrota e de sofrimento, muitas famílias nem têm condições de lembrar que existe a possibilidade”.

José Camargo lembra que doação de órgãos e tecidos é uma solicitação de generosidade em um momento em que a situação é de revolta, ou seja, é necessário mediar dois sentimentos opostos. “É co­movente o esforço que as famílias fazem para cum­prir a vontade de uma pessoa em vida”. E critica o fato de que ainda não haja uma estrutura para que to­dos os casos de morte encefálica sejam comunicados.

Apesar das dificuldades, o médico acredita que o desenvolvimento de uma cultura doadora pode-se dar nos ambientes escolares, ensinando as crianças a conviver com esta necessidade social. Vale lembrar que todo tipo de órgãos e tecidos podem ser doados, como coração, pulmão, fígado, pâncreas, rim, cór­neas, ossos, músculos e pele. Camargo noticia ainda que uma equipe da Santa Casa está se preparando para efetuar um transplante chamado multivisceral, onde está incluído o intestino, até o momento feito somente em São Paulo.

Mitos comuns que prejudicam

Rosana Nothen, coordenadora da Central de Transplantes do RS, observa que a conta de que cada doador pode salvar oito vidas é apenas um ex­pediente publicitário. “Dificilmente encontraremos um doador tão completo, até por razões logísticas e de manutenção do órgão. Não é comum. Pode acon­tecer, mas não é exato”. Ela explica que, na Europa, a taxa não chega a três órgãos por doador. Nos Es­tados Unidos, é em torno de cinco por doador e, no Brasil, a média é de 2,5 por doador.

Para que haja doação de órgãos, no Brasil, é necessária a constatação de morte encefálica, que é algo bastante sedimentado na literatura médica. A morte do cérebro faz com que a pessoa pare de respirar. Ausência de respiração provoca parada cardíaca. O coração segue batendo mais um tem­po mas, aos poucos, há a falência. “A necrose vai se instalando na medida em que a circulação não chega mais”.

A estatística médica aponta que a morte en­cefálica ocorre em 60 de cada um milhão de ha­bitantes. No Rio Grande do Sul esta estatística é comprovada pois, em 2013, foram 579 notificações por morte encefálica em um território com cerca de 10 milhões de habitantes. “Isto significa 32,5% do total. Não é um índice ruim, estamos entre os melhores do país, mas podemos melhorar muito. Há países que chegam a 60 ou 70% das doações”. Rosana informa que, em 2014, os níveis de doações caíram bastante. Ela ainda não pode dizer ao cer­to porque isto ocorreu, mas acredita que eventos como a Copa do Mundo e as ondas de calor podem ter interferido no processo. “O que posso afirmar é que nossa equipe segue seu trabalho obstinado pela captura”.

Em 2013, havia 2 mil pessoas na lista de espera por um órgão e foram computados apenas 200 do­adores. Para a médica, o principal empecilho para se chegar a níveis mais altos de doações é a recu­sa das famílias E o motivo é cultural. “As pessoas falam muito pouco da morte, é como se ela não existisse. Para viver mais feliz é necessário que se confronte, que se perceba que a vida é finita, que vamos perder quem amamos, que a morte é o fim de um processo”.

E ela faz questão de lembrar que a morte ence­fálica é um dos diagnósticos mais bem estabelecidos da Medicina. “A Universidade de Harvard, uma das mais conceituadas do mundo, publicou uma diretriz sobre o assunto, quer dizer, são quase 50 anos de vigência deste conceito”. Esta diretriz aponta que a morte encefálica é irreversível, o desgaste dos ór­gãos é só uma questão de tempo.

Morte encefálica é uma forma muito rara de morrer. Em torno de 2% a 4% ocorrem em ambien­tes hospitalares, que é onde o provável doador esta­rá. Para diagnosticá-la são feitos dois exames clíni­cos mais um exame de imagem ou ainda um exame funcional do cérebro. Pelo menos três médicos es­tarão envolvidos neste processo. “Nunca se certifica a morte encefálica antes de 6 horas e é muito clara, tecnicamente, a diferença entre ela e o coma. Tudo é certificado e assinado.

A médica faz um lembrete: a vida atribulada que se leva hoje, com o crescimento de casos de obesidade, poluição, diabetes, má alimentação/nu­trição, sedentarismo… é mais provável que estejamos dentro da lista para transplantes do que fora dela. O problema pode estar mais perto do que se pensa.

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