Líderes religiosos defendem doação de órgãos
Foto: Igor Sperotto
O aumento no índice de negativa das famílias para doação de órgãos e tecidos que, pulou, em 2015, dos constantes 30% para 40%, conforme dados da Central de Transplantes do Estado, está preocupando autoridades do assunto, bem como quem está na fila de espera por uma doação e entidades ligadas ao tema. No Brasil, conforme a legislação, apenas com autorização familiar pode haver a captação.
Segundo o coordenador da Central de Transplantes do Rio Grande do Sul, Cristiano Franke, foi detectada uma tendência à ampliação da negativa familiar e, no Brasil, o percentual é ainda maior. Foi constatado que 11% das famílias que negam a doação o fazem por motivos religiosos. Em janeiro deste ano, o percentual de negativa familiar no Estado era de 37%, o mesmo índice se mantendo em fevereiro. No mês de março, entretanto, chegou a 52%. Em janeiro foram contabilizados 25 doadores efetivos. O número subiu para 28 em fevereiro, mas caiu para 18 em março.
“Isso acontece embora praticamente todas as religiões sejam favoráveis, pois elas tem em comum princípios de solidariedade e amor ao próximo”, argumenta Lucia Elbern, presidente voluntária da organização Não Governamental Viavida. Preocupados com o fato, representantes da entidade, junto com instituições religiosas que formam o Grupo de Diálogo Inter-Religioso de Porto Alegre, promoveram, em 9 de maio, um encontro no Palácio do Ministério Público do estado, aberto à população, para debater questões sobre a religiosidade e a doação de órgãos e tecidos.
Dados do Censo e 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que em torno de 92% dos brasileiros definem-se como adeptos de alguma vertente religiosa. Porém, os próprios representantes das religiões presentes ao encontro admitem que o tema é muito pouco debatido em suas comunidades, por ser relativamente novo.
“Apesar de haver religiões milenares, como a minha, esta é uma matéria recente, até poucos anos atrás, nada constava, nem se sabia o que era isto”, informa Ahmad Ali, do Centro Cultural Islâmico. Mas ele reconhece que, com o avanço da ciência, das tecnologias e do conhecimento, trata-se de um assunto que merece aprofundamento. “A religião islâmica se coloca ao lado dos avanços, das conquistas do ser humano e a doação de órgãos e tecidos é uma destas conquistas para tornar a vida permanente”.
O rabino Guershon Kwasniawski, coordenador do Grupo de Diálogo Inter-Religioso, revela que, ao contrário do que possa parecer, no judaísmo há diversas linhas de pensamento. “Na sua maioria, todos concordam com a necessidade de doação de órgãos e tecidos, pois o judaísmo diz que devemos escolher a vida, este é o valor supremo”. Mas ele reconhece que há setores ultra ortodoxos que não concordam porque a filosofia judaica prega a chegada de um Messias e, quando isto acontecer, haverá a ressurreição dos mortos. “Muitos acreditam que o corpo tem que estar completo e isto gera polêmica em relação à doação. Alguns creem que o fato de mexer no corpo é uma forma de profanação”.
Segundo o rabino, “lamentavelmente, não se fala muito sobre o tema. Existem assuntos que abordamos quando bate na nossa porta e, só aí começamos a pensar, o que é um grande erro. Nós, religiosos, temos nossa responsabilidade de difundir em nossas comunidades o debate sobre a doação de órgãos e tecidos”. Ele destacou que a maioria das linhas judaicas defendem tudo que seja a favor da vida e do estudo. “O importante é salvar a vida, sem olhar a quem”.
Pela fé católica, o padre Luís Carlos de Almeida concorda que há necessidade de avançar no diálogo. “Ampliar a conscientização sobre a necessidade de doar passa a ser fundamental”. Ele prega que as lideranças ajam mais nas suas localidades buscando a sensibilização para o tema da doação. A igreja considera o transplante um ato meritório e se baseia nos princípios da defesa da vida do doador e receptor, na salvaguarda da identidade da pessoa e no consentimento esclarecido, ou seja, a difusão de uma cultura doadora.
Durante o encontro, uma participante afirmou que muitos familiares dizem seguir o espiritismo para negar a doação dos órgãos e tecidos da pessoa que morreu. A representante da Federação Espírita do Rio Grande do Sul, Lea Boss, explica que isto é desconhecimento da doutrina, que se baseia no tripé ciência, filosofia e religião. “O tema é amplo e suscita reflexões, não podemos ignorá-las”.
Para ela, transplante significa uma bênção de oportunidade e fraternidade. “Estamos tratando de abnegação e desprendimento do corpo físico”. Lea argumenta que o corpo humano é veículo a ser cuidado enquanto está aqui . “Mas, quando da desencarnação, temos de trabalhar nosso desapego. E, se nossos órgãos puderem beneficiar outros, em nada fere a doutrina”. Considera que todo ato de doação, feito de forma tranquila e pacífica, ocasiona uma melhor aceitação do receptor. “De um ato de vontade e abnegação resultará bastante sintonia”. A representante do espiritismo considera, contudo, ser fundamental que, em vida, a pessoa deixe bem claro o desejo de ser doador junto a seus familiares.
O monge Fernando Ryushin Sedano informa que o zen budismo se pauta pela compaixão e colaboração entre os seres, razão porque é defensor de transplantes. “No budismo, não há regra fixa ou estática, tudo depende do momento. Mas, na morte, este corpo já não serve mais. Na nossa doutrina a doação é perfeitamente aceita para que a vida possa continuar em outra pessoa”. Sedano diz que, no budismo, não importa se a pessoa quer ou não, o essencial é que a vida seja mantida.
“Se este órgão não for doado, servirá de comida para outros seres. Então, por que não dar continuidade à vida de outro ser humano?” Ele detecta o medo da mutilação para algumas negativas, mas considera a necessidade de conscientização. “É justamente neste momento que temos de respirar e ver o mais apropriado a ser feito”.
Negativas vêm da falta de informação
Para a presidente da Viavida, Lucia Elbern, as negativas das pessoas em se colocarem como doadoras de órgãos e tecidos é reflexo da falta de informação e de conhecimento sobre os diversos temas envolvidos e a complexidade do assunto deixam as pessoas com muitas dúvidas e receosas de doar. “Nosso encontro tem a finalidade de fornecer fundamentos para que as famílias possam agir, respeitando suas crenças e a do possível doador, buscando reduzir o número de negativas à doação por motivos religiosos”.
Foto: Igor Sperotto
Os voluntários da ONG defendem ser preciso educar a população, com o apoio das diversas religiões, visando a estimular uma reflexão sobre o que significa doação de órgãos e tecidos. Segundo Lucia, há que se considerar a realidade médica, como os três diagnósticos de morte encefálica – que é a morte irreversível – a integridade do corpo post-mortem ao enfrentar mitos e fantasias das pessoas, “em acordo com as leis vigentes e seguidas de forma muito séria no Brasil sobre todo o processo de doação/transplantes”.
Ao final do encontro, todas as lideranças religiosas concordaram ser necessário ampliar o debate em suas comunidades. “Falamos muito pouco sobre o assunto. Não quer dizer que não seja relevante. Cabe a nós aprofundar a discussão, já que temos uma população muito ligada às religiões. Não podemos ter estatísticas tão baixas em função de desconhecimento. São criados muitos mitos e precisamos derrubá-los”, defende Guershon Kwasniawski. Fundado em 1994, o Grupo Diálogo Inter-Religioso surgiu para derrubar barreiras e preconceitos, diz o rabino. “Existem várias formas de se levar a espiritualidade e todas são válidas. Não existe uma realidade única”.
Lucia lembra que, pela legislação brasileira, cada cidadão tem direito a receber transplante pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Mas acredito que este cidadão também tem o dever de avisar sua família sobre a decisão de ser um doador, de salvar vidas”.
Doações no primeiro trimestre de 2016
Rim: 54 em janeiro, 62 em fevereiro, 44 em março
Fígado: 18 em janeiro, 5 em fevereiro, 13 em março
Pulmão: 2 em janeiro, 5 em fevereiro, 4 em março
Coração: 1 em janeiro, 1 em fevereiro, 3 em março
Fígado/rim: 2 em janeiro, 0 em fevereiro, 0 em março
Número de transplantes de tecidos (jan/mar 2016)
Córnea: 48 em janeiro, 56 em fevereiro, 68 em março
Esclera: 19 em janeiro, 8 em fevereiro, 9 em março
Osso: 47 em janeiro, 27 em fevereiro, 26 em março
Pele: 3 em janeiro, 4 em fevereiro, 8 em março
Lista de Espera em março de 2016:
Rim: 855
Fígado: 161
Medula óssea: 147
Pulmão: 73