SAÚDE

Exclusão e preconceito que adoecem

Por Adriana Lampert / Publicado em 9 de dezembro de 2016

Parâmetros que regem políticas de saúde no Brasil são estabelecidos por pesquisas que desconsideram dados sobre a população negra

Durante o Simpósio Internacional de Saúde da População Negra, realizado em novembro na Ufrgs, a diretora do Departamento de Estado de Raça, Etnia e Inclusão Social dos EUA, Zakiya Affairs, destacou o legado do colonialismo: ““formas horríveis de discriminação de raças e etnias”

Foto: Cristine Rochol/ PMPA Divulgação

Durante o Simpósio Internacional de Saúde da População Negra, realizado em novembro na Ufrgs, a diretora do Departamento de Estado de Raça, Etnia e Inclusão Social dos EUA, Zakiya Affairs, destacou o legado do colonialismo: ““formas horríveis de discriminação de raças e etnias”

Foto: Cristine Rochol/ PMPA Divulgação

A exclusão social que afeta a população negra no Brasil também é caso de saúde pública. Nem mesmo as doenças específicas da genética de afrodescendentes são consideradas pelos parâmetros que regem as políticas implementadas no Brasil, uma vez que boa parte desses critérios é estabelecida por pesquisas europeias e norte-americanas, focadas na população branca. Para piorar, apesar da intensa realização de pesquisa científica em nível nacional, há carência de estudos destinados à saúde dos negros brasileiros. A falta de interesse e conhecimento neste sentido não somente prejudica milhares de pessoas dependentes do sistema público, como pode até matar, além de gerar muito sofrimento.

Falecida há três anos, a gaúcha Elisabete Carvalho Gonçalves foi vítima da Anemia Falciforme, uma doença hereditária que até hoje tem sintomas que confundem os médicos. “O primeiro alerta surgiu aos 17 anos. Meus pais percorreram diversos hospitais, mas ninguém acertava o diagnóstico”, conta a irmã gêmea, Elisete Gonçalves Nieto, 54 anos. Segundo ela, quando Elisabete conseguiu iniciar o tratamento correto, já havia sofrido complicações, como o comprometimento de 20% de um dos rins. “Ela passou 32 anos doente.

O medicamento recomendado causou um AVC, depois ela perdeu os movimentos nas pernas e também a visão. Foi uma vida de muito sofrimento”, lamenta Elisete, que também é portadora da doença. “Comigo foi mais tranquilo, porque quando me surgiram os primeiros sintomas já havia um tratamento específico”, revela. Levando uma vida controlada, Elisete ainda assim não escapa – em alguns momentos – das consequências da falta de informação de equipes de saúde em emergências de hospitais. “Já aconteceu de sofrer crises de dor horríveis nas pernas e de me aplicarem remédios que meu organismo não aceita, mesmo que eu tenha informado sobre isso – certa vez ouvi de um técnico que o trabalho do hospital não é de acordo com o gosto do paciente, mas sim conforme a orientação médica.”

Mirele aponta dificuldades para acessar medicamentos e desdém por parte de servidores

Foto: Igor Sperotto

Mirele aponta dificuldades para acessar medicamentos e desdém por parte de servidores

Foto: Igor Sperotto

O desdém de enfermeiros e médicos em emergências é uma prática comum, segundo a manicure Mirele Juci Rosa dos Santos, 40 anos. “Sempre sou mal atendida em emergências. Costumam dizer que paciente de Anemia Falciforme simula dor para ganhar morfina”, comenta Mirele, completando que outra dificuldade é ter acesso a exames e remédios para a doença nos postos públicos de saúde.

O diretor da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP) do Ministério da Saúde, Esdras Daniel Pereira, admite que, passados dez anos da existência de uma Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, ainda há muito que avançar. “Para que o SUS incorpore de forma real esta política, há uma série de desafios técnicos, além da necessidade de voltarmos o olhar para o impacto do racismo nas condições de saúde desta população”, observa.

Nem mesmo o atendimento pré-natal e maternidade das mulheres negras vem obtendo desempenho favorável, ainda que estejamos em pleno ano de 2016. De acordo com dados da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, a taxa de mortalidade materna, em 2011 era de 68,8 para mulheres negras e de 50,6 para mulheres brancas (por 100 mil habitantes). As principais causas de morte materna entre mulheres negras são hipertensão, hemorragia e infecção puerperal. Além disso, a proporção de mães que declararam fazer sete ou mais consultas médicas pré-natal – considerando o mínimo recomendado (seis) – foi de 74,5% em mulheres brancas, enquanto em mulheres negras foi de 55,7%.

A maioria das medicações específicas não serve de parâmetro para a genética negra, afirma a gerente de Política de Equidade Étnico-racial da SMS, Elaine Soares

Foto: Igor Sperotto

A maioria das medicações específicas não serve de parâmetro para a genética negra, afirma a gerente de Política de Equidade Étnico-racial da SMS, Elaine Soares

Foto: Igor Sperotto

Os cuidados destinados aos portadores da anemia falciforme (mais comum em pacientes negros) são outro aspecto que merece mais atenção das pesquisas desenvolvidas no país, aponta Pereira. “Temos que ampliar o acesso, tanto ao diagnóstico, quanto aos medicamentos específicos desta doença, que muitas vezes leva à morte. Por isso é tão importante o fomento à produção de conhecimento direcionada a essa e outras patologias negligenciadas pela área de saúde ainda hoje”, reforça o gestor. Pereira diz destaca que a condição racial da população precisa ser considerada no desenvolvimento de pesquisas, “não com o objetivo de privilegiar determinados grupos, mas pelo fato de se tratar de um direito universal à saúde”.

Na lista de doenças para as quais a população negra está mais pré-disposta, além de hipertensão arterial, diabetes e anemia falciforme, também as miomatoses uterinas colocam mulheres da raça negra em risco. “Faltam estudos sobre medicações específicas, a maioria é destinada para o corpo branco, mas não serve de parâmetro para a genética negra”, explica a gerente de Política de Equidade Étnico-racial da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Porto Alegre, Elaine Oliveira Soares. “E existem aquelas medicações que não estão no catálogo do Ministério da Saúde, o que acaba limitando o acesso”, acrescenta.

 Preparo das equipes deixa a desejar

O racismo no sistema público de atendimento de saúde potencializa a falta de acolhimento e de políticas direcionadas para os afrodescendentes brasileiros. “Quando se estuda mortalidade infantil, no caso de crianças brancas, entre as causas mais comuns estão a neoplasia e deformação congênita, que não podem ser evitadas. Mas no caso das negras, um dos problemas mais frequentes são as infecções respiratórias e por parasitas, que são totalmente preveníveis, basta maior atenção aos fatos”, compara Elaine.

De acordo com a coordenadora da Ong Criola, Lúcia Maria Xavier, o nível de atendimento das equipes de saúde no país está aquém do desejado, por falta de preparo, principalmente para lidar com casos específicos como o da anemia falciforme. “Quando as pessoas entram nas unidades, sofrem dores indescritíveis, que não são do conhecimento dos técnicos. Falta compreensão de que esta é uma doença grave, que causa transtornos físicos”, observa Lúcia. Somando mais de cem anos de diagnóstico, a anemia falciforme é causada por um problema nas hemácias, deixando o paciente sem capacidade para absorver ferro. “A pessoa fica muito doente, magra, com dor no corpo e nos ossos”, resume Lúcia.

Somente este ano foi disponibilizada no catálogo do Ministério da Saúde uma medicação de suma importância, o Pen-ve-oral, que crianças de zero a cinco anos de idade portadoras da doença falciforme precisam tomar para aumentar sua chance de vida. A faixa etária é a mais difícil para quem tem a doença falciforme, observa a Elaine: a medicação evita a infecção que leva ao óbito 50% das crianças negras em todo o mundo devido ao tratamento inadequado da doença.

A cientista social e mestranda em Saúde Coletiva pela Unisinos, Carolina Montiel chama atenção para estudos que afirmam que crianças negras portadoras de anemia falciforme peregrinam mais pela rede de atendimento pública porque não são bem atendidas. “Enquanto uma ida ao posto poderia dar conta do problema, esses pacientes precisam ir mais vezes em busca de ajuda, pois há uma roda que gira diferente quando se trata de atendimento da população negra, ainda muito discriminada no sistema de saúde”, alerta.

Para Carolina, o racismo ocorre de forma estrutural, condicionando esta parcela da população a diversas negligências. “Uma mulher negra em trabalho de parto demora mais para achar uma maternidade que aceite atendê-la, isso é comprovado inclusive em pesquisas”. Ela afirma que há diferenças no tratamento e nos cuidados à saúde. “Em uma ida ao ginecologista, a mulher negra é menos tocada do que a branca; no atendimento pré-natal, ela é menos escutada e as informações não são completas”, denuncia.


Crianças negras portadoras de anemia falciforme peregrinam mais pela rede de atendimento pública porque não são bem atendidas, diz a cientista social Carolina Montiel

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

DISCRIMINAÇÃO – A atriz e professora de teatro Dedy Ricardo, que faz oficinas para crianças, adolescentes e adultos da periferia de Porto Alegre, associa problemas fonoaudiológicos que acometem boa parte dos seus alunos com o preconceito que eles enfrentam diariamente. “A discriminação atinge a autoestima dessas pessoas”. Ela relata que, por ser negra, já foi negligenciada ao buscar ajuda no serviço de saúde pública. “Fui discriminada duas vezes por uma técnica de enfermagem em um posto de saúde. Ela me fez ir para o último lugar na fila, após constatar que a ficha que eu estava utilizando havia sido buscada pela minha irmã. Depois, a mesma funcionária tentou impedir que eu falasse com a médica que me atendera uma semana antes para relatar a reação a um medicamento”.


Racismo institucional

A Portaria do Ministério da Saúde 922/2009, que estabelece a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra reconhece o racismo institucional como determinante social das condições de saúde da população negra. Em Porto Alegre, desde 2012, a Secretaria Municipal da Saúde tem buscado qualificar as políticas de saúde para esse público. Mais de 500 profissionais – entre agentes comunitários, médicos, enfermeiros, dentistas, psicólogos e administradores – realizaram curso de seis meses para entender como o racismo impacta na vida das pessoas. “Conseguimos vislumbrar avanços na atuação dos promotores de saúde da população negra nos territórios da cidade”, destaca Elaine Oliveira.

Em novembro, no mês da Consciência Negra, a SMS promoveu um simpósio internacional sobre saúde da população negra, durante três dias, no Salão de Atos da Ufrgs. Cerca de 1 mil pessoas acompanharam os debates realizados entre diversas autoridades e especialistas da área. Na ocasião, a diretora do Departamento de Estado de Raça, Etnia e Inclusão Social dos Estados Unidos, Zakiya Carr Johnson Affairs, destacou que a história e o legado de colonialismo deixaram um marco na cultura da humanidade, com a perpetuação de “formas horríveis de discriminação de raças e etnias”.

O acesso aos serviços e as políticas de saúde pública excluem as minorias e desconsideram as enfermidades características da população negra

Foto: Igor Sperotto

O acesso aos serviços e as políticas de saúde pública excluem as minorias e desconsideram as enfermidades características da população negra

Foto: Igor Sperotto

 

 

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