SAÚDE

Despejo paralisa o Gapa/RS

Referência na prevenção e acolhimento a pessoas soropositivas, ONG está sem sede, enquanto o estado é o segundo em notificações e Porto Alegre tem cinco vezes mais contaminações que a média nacional
Por Vitor Necchi / Publicado em 18 de agosto de 2017
Sede da ONG desde 1991, sobrado na rua Luiz Afonso, na Cidade Baixa, sofreu intervenção judicial no dia 11

Foto: Edimar Blazina

Sede da ONG desde 1991, sobrado na rua Luiz Afonso, na Cidade Baixa, sofreu intervenção judicial

Foto: Edimar Blazina

A ação de reintegração de posse do imóvel que sediava o Grupo de Apoio à Prevenção da Aids no Rio Grande do Sul (Gapa/RS) foi recebida com espanto e indignação por boa parte dos porto-alegrenses e representa um retrocesso sem precedentes na luta histórica contra a aids no estado. O sobrado que era a sede da organização não governamental (ONG) desde 1991, na rua Luiz Afonso, 214, no bairro Cidade Baixa, foi tomado na sexta-feira, 11, por um oficial de Justiça que mandou arrombar as fechaduras da porta e isolar a casa. No local, ficou trancado o acervo sobre a atuação da ONG fundada em 1989. O despejo ocorreu por falta de pagamento do aluguel. O governo do estado era responsável pela locação do imóvel, mas não pagava o aluguel havia oito anos. Integrantes do grupo sabiam que estava e curso uma ação de reintegração de posse, mas não imaginavam que o desfecho ocorreria sem nenhum aviso. “É importante discutir o que tem de simbólico no despejo do Gapa”, propõe a presidente da entidade, Carla Almeida.

Para a presidente da entidade, investida contra o Gapa/RS é simbólico do esvaziamento das políticas públicas de saúde

Foto: Edimar Blazina

Para a presidente da entidade, investida contra o Gapa/RS é simbólico do esvaziamento das políticas públicas de saúde

Foto: Edimar Blazina

Nos dias que antecederam o cumprimento da ordem judicial, integrantes do Gapa desconfiaram que algo grave estava para acontecer. De posse da decisão que lhe permitia retomar o sobrado, o proprietário do imóvel acompanhado do oficial de Justiça acionou um chaveiro para entrar na sede, que em seguida foi lacrada. A movimentação despertou a atenção da vizinhança, que fez fotografias. No sábado, as imagens chegaram ao celular da presidente do Gapa. Uma delas mostrava um caminhão na frente do imóvel. Houve mais apreensão porque, na noite daquela sexta-feira, um gestor da Secretaria Estadual da Saúde (SES) enviou mensagem para o celular de Carla, informando extraoficialmente que a Justiça autorizara o despejo. A combinação dessa mensagem com a imagem deixou a equipe em estado de alerta.

O episódio é mais do que um golpe contra a trajetória da ONG, pioneira e referência no enfrentamento da epidemia, pois escancara a negligência do poder público em relação aos movimentos sociais que tentam reduzir estatísticas graves. De acordo com o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, o estado é o segundo da Federação com o maior índice de notificações, e Porto Alegre lidera o ranking das capitais brasileiras onde mais pessoas morrem em consequência do HIV. No país, o vírus é detectado em 19,7 pessoas a cada 100 mil habitantes. Em Porto Alegre, a média salta para 94,2. Além disso, faltam medicamentos antirretrovirais na rede pública de saúde, o que instaura uma situação grave para quem necessita de tratamento.

Para o jornalista Gabriel Galli, coordenador-geral da ONG Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade, a situação do despejo do Gapa reflete o descaso dos governos com populações mais vulneráveis. “Não apenas quem vive com HIV/aids está desamparado, mas também LGBTs e pessoas em situação de rua”, exemplifica.

Reintegração do prédio pela Justiça impediu o acesso documentação sigilosa referente à condição sorológica de mais de 10 mil pessoas

Foto: Edimar Blazina

Reintegração do prédio pela Justiça impediu o acesso documentação sigilosa referente à condição sorológica de mais de 10 mil pessoas

Foto: Edimar Blazina

No momento da intervenção por ordem judicial, a sede se encontrava vazia. Nos últimos anos, o Gapa reduziu consideravelmente sua atuação. Se no início dos anos 2000 contava com cerca de 120 voluntários e dispunha de dinheiro para ações e projetos, atualmente, cinco pessoas compõem o grupo. A penúria refletiu também na sede, deteriorada pela falta de manutenção. No ano passado, os atendimentos foram suspensos – embora o telefone não pare, porque o Gapa segue sendo uma referência no imaginário da população. Mantiveram somente o trabalho de incidência política e ações pontuais.

Para o psicólogo e professor da PUCRS Angelo Brandelli Costa, em diferentes contextos onde a resposta à epidemia de HIV/aids e a outras ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) se mostrou bem-sucedida, as interfaces entre academia, gestão pública e movimentos sociais se deu de maneira constante e sólida. Isso aconteceu no Brasil, no surgimento da epidemia. “Não é mais o caso do Rio Grande do Sul”, avalia. “A explicação para o agravamento das estatísticas no estado e na Região Metropolitana passa pelo enfraquecimento deliberado das ONGs aids.”

Rompimento ético

Carla: “As pessoas ainda buscam invisibilidade por causa do preconceito, por isso entidades como o Gapa são importantes, porque dão voz para quem quer ficar invisível”

Foto: Gapa/RS | Divulgação

Carla: “As pessoas ainda buscam invisibilidade por causa do preconceito, por isso entidades como o Gapa são importantes, porque dão voz para quem quer ficar invisível”

Foto: Gapa/RS | Divulgação

Carla pretendia elucidar os fatos, mas não telefonou para o gestor da Secretaria Estadual da Saúde que lhe avisara sobre o episódio, pois considera que a condução do processo deveria seguir um protocolo mais formal e oficial. “Há questões éticas que foram rompidas”, aponta. No domingo, recebeu do advogado a informação de que nada fora recolhido.

Especulava-se que na manhã de segunda-feira um caminhão buscaria o material. Isso mobilizou a equipe do Gapa e de outras ONGs, entre elas Somos, Nuances e Igualdade. A coordenadora-técnica do Somos, Cláudia Penalvo, salienta que essas entidades e outras surgiram a partir de pessoas que integraram o Gapa. Entre 1993 e 2003, Cláudia trabalhou no grupo, chegando a presidi-lo.

Antes das 8h da segunda-feira, cerca de 40 pessoas se concentraram na frente do sobrado, mas nada aconteceu. Em novo contato com o advogado, Carla soube que o governo pretendia levar o acervo da ONG para o Hospital Psiquiátrico São Pedro. O proprietário do imóvel, sensível à situação, disse que negociaria diretamente com o Gapa a retirada do material. Foi uma decisão acertada. O Gapa guarda documentação sigilosa referente à condição sorológica de mais de 10 mil pessoas.

Carla recebeu a informação de que alguém da Secretaria Estadual da Saúde ofereceu a biblioteca do Gapa para a Escola de Saúde Pública, à revelia da ONG. Em razão do despejo, os integrantes do grupo até cogitam essa possibilidade, mas não aceitam que o estado tenha tomado a iniciativa de prospectar o destino do mais importante acervo sobre HIV e aids da Região Sul sem consultar os responsáveis pelo material.

Nota mentirosa

A fim de se posicionar em relação ao despejo, o governo limitou-se a divulgar uma nota de três parágrafos que termina assim: “O objetivo inicial que motivou a realização do convênio à época com o Gapa não mais se justifica, uma vez que hoje existem inúmeras organizações sociais que trabalham em ações de apoio aos portadores do vírus HIV. A última atividade convenial entre o Gapa e a SES encerrou em 2013”.

Carla é taxativa: “Mentira, não há inúmeras organizações fazendo este papel. Não existe mais espaço de acolhimento. Esta nota é desrespeitosa”. Indignada, prossegue: “Em um estado que tem a maior incidência de HIV, em uma capital onde mais gente morre em decorrência da aids, não se pode dispensar um serviço como o do Gapa”. Galli classifica o texto de vergonhoso. “É uma novela para uma pessoa que vive com HIV/aids iniciar o tratamento, chegando ao ponto de ter que mentir o endereço, caso não queira ser atendida no posto de saúde perto de casa por medo do preconceito”.

Ainda perplexa com os acontecimentos, a presidente do grupo vislumbra um fato positivo que decorre do despejo: as temáticas relacionadas a HIV/aids voltaram a ser pautadas pela imprensa. Outra consequência é a realização de audiências públicas para tratar do assunto.

Carla acredita que o Gapa precisa sair fortalecido desta tormenta. “A resposta à epidemia de aids não se constrói apenas no plano biomédico. Há fatores como questões de gênero, exclusão, estigma social, preconceito, e o estado não tem como lidar com isso”, garante. O serviço público de atenção está sucateado, portanto, os espaços da sociedade civil se tornam estratégicos. “As pessoas ainda buscam invisibilidade por causa do preconceito, por isso entidades como o Gapa são importantes, porque dão voz para quem quer ficar invisível”, explica. “O Gapa é a cara de quem não quer aparecer”.

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