SAÚDE

Hospitais Clínicas e Conceição na mira das privatizações

No auge da maior crise sanitária da história do país, o governo federal anunciou que pretende incluir hospitais públicos na lista de estatais a serem privatizadas
Por Wálmaro Paz / Publicado em 15 de junho de 2020

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

No auge da maior crise sanitária da história do país, o governo federal anunciou que pretende incluir hospitais públicos na lista de estatais a serem privatizadas. No Rio Grande do Sul, dois hospitais de referência em atendimento pelo SUS estão entre as estatais a serem vendidas para a iniciativa privada, o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) e o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), além de uma rede 40 hospitais universitários

A inclusão de centros de referência em educação e serviços de saúde pública do estado na lista de estatais do cronograma de privatização do Ministério da Economia provocou reações de indignação e resistência de setores ligados à saúde. O plano A reconstrução do Estado detalha a venda de 300 ativos até 2022 e projeta faturamento de R$ 150 bilhões.

No Rio Grande do Sul, estão na lista o Grupo Hospitalar Conceição (GHC), o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), vinculada ao Ministério da Educação, que coordena uma rede de 40 hospitais universitários voltados para a educação em saúde pública e atendimento médico-hospitalar público e gratuito – além de estatais de outros setores, como a Trensurb.

Médicos, professores, usuários e o Conselho Estadual de Saúde alertam que a desestatização dessas instituições poderá privar os gaúchos da maior parte dos serviços de saúde e representa o fim das pesquisas e educação em saúde nesses complexos sanitários.

Saúde pública e a pandemia

O médico Cristiano Franke, dirigente da Associação de Medicina Intensivista Brasileira (Amib), entende que a pandemia reforça a posição dos hospitais públicos e deixa clara a necessidade de se manter instituições de referência como o GHC e o HCPA na esfera pública.

“Isso ficou muito marcado no mundo inteiro até em países extremamente liberais como os Estados Unidos. Lá, eles sentiram a necessidade urgente de equipar e preparar o serviço de saúde pública de maneira eficaz”, ilustra.

Franke cita o incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, e a epidemia de H1N1 no estado para reiterar a importância dos hospitais de referência em situações de trauma coletivo. “Falar em privatização neste momento equivale a um crime contra a população”, ressalta.

O presidente do Conselho Estadual de Saúde, Cláudio Augustin, também considera “um crime contra o povo pobre do estado”. Ele alerta que o GHC e o HCPA são centros de excelência em diversos tipos de tratamento, que atendem a maior parcela da população.

Assistência e economia

O professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Alcides Miranda, pondera que não se trata apenas de uma questão econômica, mas da destruição de todo um processo iniciado ainda no século passado, que concentra quase toda a pesquisa médica do estado.

Foto: Juarez Jr - Agência ALRS

“A doença é um ótimo negócio para a indústria farmacêutica e de diagnósticos”, aponta Augustin, do Conselho Estadual de Saúde

Foto: Juarez Jr - Agência ALRS

Augustin repara que existe uma política internacional pela privatização da saúde no mundo do capital. “A doença é um ótimo negócio para a indústria farmacêutica e a indústria de diagnósticos. É um campo altamente especializado e que tem um custo crescente”, aponta.

No caso dos hospitais, grande parte das instituições é filantrópica e o alvo recai sobre os públicos, GHC, HCPA, Hospital Universitário de Santa Maria e hospitais menores de Rio Grande e Pelotas.

Os demais hospitais universitários no país são de uma empresa pública que deverá ser privatizada num segundo momento, por se tratar do filão da hospitalização: a alta complexidade. “Quem compraria isso seriam os grandes grupos da indústria da doença no Brasil”.

Saúde comunitária, pesquisa e desenvolvimento tecnológico

O diretor administrativo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Jorge Bajerski, afirma que a justificativa do governo, que alega o custo alto dos serviços para privatizar, não tem procedência, porque a instituição atende casos de altíssima complexidade, salvando vidas de pessoas que estariam condenadas a não serem atendidas ou a morrer em um cenário de saúde privatizada.

“São muitos aspectos que justificam a manutenção desses hospitais com a gestão pública. No caso do GHC, não estamos falando de um hospital, mas de um complexo de hospitais e um serviço de saúde que tem décadas de desenvolvimento na área de atenção básica comunitária e é referência internacional. Já no caso do HCPA, além de hospital universitário, é um centro de pesquisa e desenvolvimento tecnológico que tem uma produção também de reconhecimento internacional”, ressalta.

Foto: Reprodução

Para Bajerski, do HCPA, nada justifica a privatização

Foto: Reprodução

Para o dirigente, a privatização desses serviços implica uma política de terra arrasada. Todo um acúmulo de produção científica, de desenvolvimento tecnológico, não somente no aspecto médico assistencial, mas notadamente na organização de serviços de saúde.

Hoje, com as informações do dimensionamento quantitativo de produção é possível se destacar o diferencial desses dois grupos, inclusive comparando com outros hospitais federais do Rio de Janeiro, no caso do Conceição.

E, no caso do Clínicas, se comparar com outros hospitais universitários e até mesmo com a Empresa Brasileira de Hospitais Universitários (Ebserh), destaca Bajerski.

Referência no atendimento à população

O HCPA, que já teve um agenciamento empresarial, alia a gestão pública com a gestão corporativa, porque conta com grupos médicos assistenciais que operam numa lógica e num regime semiprivado.

Com um orçamento anual de R$ 1,5 bilhão, o HCPA conta com uma suplementação de R$ 57 milhões para a compra de 105 leitos de UTI para atendimento da Covid-19. A instituição dedica 88% da sua capacidade de internação a pacientes do SUS.

Os 12% restantes atendem pacientes de planos de saúde e convênios, uma prerrogativa que a lei de criação do hospital estabeleceu na década de 1970 para gerar recursos complementares ao orçamento público e que representa 30% do faturamento. A receita da instituição oscila em R$ 300 milhões.

“Qual seria a vantagem de privatizar completamente o serviço, a diminuição de custos orçamentários? Se se for fazer uma análise de custo-benefício, ou até mesmo de custo-efetividade, a gente teria que colocar nesse cálculo não somente a produção do HCPA, mas principalmente a inovação estratégica, a inovação tecnológica e de produção científica”, contrapõe Miranda.

O caso do GHC é exemplar, alerta o professor da Ufrgs. O complexo hospitalar formado pelo Conceição, Fêmina, da Criança Conceição, Cristo Redentor, UPA Moacyr Scliar e 12 Unidades Básicas de Saúde (UBS) é referência no atendimento a toda a população da Zona Norte de Porto Alegre e dos municípios da Região Metropolitana, que somam mais de 4 milhões de habitantes. Mantém programas de residência multiprofissional e médica, produção científica, e atenção primária em saúde comunitária. “É uma irresponsabilidade enorme aventar a possibilidade de privatização, considerando somente o custo orçamentário”, acrescenta.

O presidente do GHC, Cláudio Oliveira, afirma que “não existe um processo de privatização da instituição” e justifica que o grupo aparece na lista do Ministério da Economia por ser uma empresa estatal, “portanto, passível de ser privatizada”.

Não é o que mostra o plano A reconstrução do Estado, elaborado pela Secretaria Especial de Desestatização, Desenvolvimento e Mercados do Ministério da Economia. Na lâmina número 7, o GHC é a 13ª de 17 estatais “em processo de desestatização”, entre as quais está outra empresa pública do estado, a Trensurb.

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