SAÚDE

A geração do quarto está pedindo socorro

Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 11 de outubro de 2022

Fotos: Andréa Avelar Duarte

“A doença mental da geração do quarto é resultado de um processo profundo de violência – matriz dessas crianças e adolescentes”

Fotos: Andréa Avelar Duarte

O educador Hugo Monteiro Ferreira, pós-doutor em Estudos da Criança pela Universidade do Minho, Portugal, e doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), comemora a terceira impressão de A Geração do Quarto: quando crianças e adolescentes nos ensinam a amar (Record, 154p.). Lançado em abril e um dos mais vendidos de não ficção entre os autores nacionais da editora, o livro trata de assuntos como comportamentos autodestrutivos, bullying, cyberbullying e psicopatologias que afligem crianças e adolescentes e se torna uma leitura, no mínimo, necessária para pais e professores que precisam adequar os currículos escolares às competências da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) relacionadas à educação socioemocional. Professor e coordenador do Núcleo do Cuidado Humano da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), o autor afirma nesta entrevista que há algo muito errado nas famílias e no modelo de educação escolar no país. “Se um menino de 14 anos quer se matar, há algo nesse universo no qual ele está inserido que precisa ser repensado, precisa ser revisto”, aponta Ferreira, que foi responsável pelo treinamento dos atendentes do serviço Pode falar, canal de ajuda em saúde mental para jovens da Unicef no Brasil

Extra Classe – Em linhas gerais, quem são aqueles que compõem o que você denomina ‘a geração do quarto’?
Hugo Monteiro Ferreira – Gostaria de dizer que a geração do quarto, assim como apresento no meu livro, são meninas e meninos, entre 11 e 18 anos de idade, que atravessam e são atravessadas e atravessados por sérios problemas de saúde mental. Esses meninos e essas meninas, quando estão em casa, passam mais de seis horas dentro de seus quartos, se envolveram com bullying e/ou ciberbullying, apresentam comportamento autodestrutivo – autolesão sem intenção suicida, ideação suicida, tentativa de suicídio mais de uma vez –, apresentam quadro de sintomatologia psicopatológica – transtornos obsessivos compulsivos, transtornos alimentares, transtornos de ansiedade geral, síndrome do pânico, distúrbio do sono –, têm muita dificuldade de inter-relação face a face com os membros da família e utilizam excessivamente as redes sociais digitais. A geração do quarto não se restringe necessariamente a marcadores etários, ou seja, é possível dizer que adultos/as também se encontram no quarto, e é possível dizer que o quarto, assim como apresento no livro, ainda que materialize um cômodo da casa, é mesmo uma grande metáfora do isolamento tomado pelo sofrimento psíquico.

EC – Isso remete ao fenômeno hikikomori, identificado no Japão, que significa ficar ou ser deixado de lado, uma tendência que era associada a culturas mais introspectivas e exigentes com os jovens. Você diria que a propensão do jovem ao isolamento se globalizou?
Ferreira – Dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que a saúde mental de crianças e adolescentes é tema de urgência no mundo, visto que tem sido comum, no Ocidente, quadro expressivo de adoecimento mental. Embora eu tenha falado em Ocidente e você me traga um país do Oriente, digamos assim, depois da globalização, sobretudo a comunicacional, é muito difícil estabelecer linhas deterministas nos processos de desenvolvimento.

EC – Por quê?
Ferreira – As telas, desde a televisão até o cinema, desde o computador até o celular, trazem, a todos e todas, a mesma matéria de conteúdo. O que é visto no Brasil, na Argentina, o que é acessado no Chile, no Peru, é, de mesmo modo, visto e acessado em Tóquio e Seul. Já não há mais tantas divisões. A transnacionalidade indica que as coisas do Norte também estão no Sul e as coisas da Ásia também estão na África. Claro que há especificidades, mas o isolamento social, provocado pela violência, não é diferente na América Latina e na Ásia. Lá e cá, as crianças e os e as adolescentes padecem de uma espécie de pressão social, intrafamiliar, escolar, num âmbito individual e coletivo, que tem provocado sofrimento psíquico e dor psíquica, receio de fracasso, medo de frustração, uma busca pelo prazer imediato e uma tentativa de não aprofundar relações afetivas.

EC – Em síntese?
Ferreira – A geração do quarto na América Latina é produto de um profundo modelo social e econômico injusto, desumano, atrelado a modelos de convivência social baseado menos na cooperação e mais na competição, menos no respeito à alteridade e mais na tentativa de não compreender diferenças identitárias. No Japão, considerando elementos contextuais, não é diferente: as crianças e os/as adolescentes precisam aprender a competir e têm excessivo medo de fracassar.

Foto: Sofia Alejandra/ Pexels

“Onde a criança sofre, há também a advertência: o sofrimento é processo de algo que não deu certo, que não vai bem, que precisa mudar”

Foto: Sofia Alejandra/ Pexels

EC – Na pesquisa que deu origem ao seu livro, o que mais o impactou?
Ferreira – Entrevistei 3.115 meninos e meninas, de cinco capitais brasileiras. Tudo ali me chamou atenção. Tudo ali me deixou preocupado e tudo ali também me apontou que há saídas onde aparentemente só há labirintos. Não tenho como citar um único caso, um único exemplo, uma única ocorrência, mas posso dizer que fiquei impactado com o que li, com o que ouvi, com o que analisei. Dos entrevistados, 238 se envolveram com violência sistemática, tentaram se matar mais de uma vez, cortam a pele para aliviar a dor do psiquismo, não falam com mãe, com pai, mas usam as redes sociais de forma intensa e densa. Abusam do álcool, fazem sexo sem camisinha, adoram as redes e a internet, falam que não querem sair da casa dos pais. Estão muito tristes e falam sobre a tristeza como um sentimento desafiador.

EC – O que desencadeia a ideação suicida nos jovens?
Ferreira – Recordo que, conversando com uma menina, ela tinha 13 anos à época da pesquisa, num dado momento, mesmo sem que eu a questionasse, ela me disse: Mesmo falando aqui com você, eu também quero me matar. A ideação suicida para aquela menina não era algo sazonal, transitório, lhe ocorria com frequência sistemática. Ela então me disse: Não aguento mais que meu padrasto me visite no quarto e bote a mão em mim. O depoimento dela era um pedido de ajuda, um grito de socorro. Ela queria que eu a ajudasse. Ela estava ali, e acreditou que podia me dizer o que lhe acontecia. É difícil ouvir algo assim e não se envolver, não tentar ajudar, não tentar intervir. A doença mental da geração do quarto é resultado de um processo profundo de violência. A violência é a matriz dessas crianças e desses/as adolescentes.

EC – Dados recentes do Ministério da Saúde mostram um expressivo aumento de tentativas e suicídios na faixa dos 15 aos 19 anos. Qual a relação com o fenômeno do quarto?
Ferreira – A autodestruição é uma das principais características da geração do quarto, em que a autolesão, a ideação suicida e as tentativas de suicídio estão presentes. No Brasil, um país continental, há um desleixo com essa temática por parte dos governos. Não temos efetivamente políticas públicas que enfrentem o suicídio como um problema de saúde pública, multifatorial, também provocado, em muitos casos, por questões que estão atreladas a recortes étnicos, de gênero, econômicos, sociais. Não é à toa que, no Brasil, quando analisamos dados, há mais suicídio entre jovens negros do que entre jovens brancos de mesma idade, mais mulheres tentam suicídios do que homens. Em 2019, o índice de suicídio na adolescência aumentou 24%.

EC – O que isso denota?
Ferreira – O quarto nos mostra que há algo de muito errado no modelo de educação parental e no modelo de educação escolar. Há algo de muito errado no modo como estamos cuidando de nossas crianças e nossos adolescentes. O quarto nos aponta que é urgente que revejamos o percurso que estamos percorrendo nos processos de educação de meninos e meninas. Eu diria que se não tomarmos providências urgentes, em muito pouco tempo, por exemplo, no caso da autolesão, teremos uma espécie de epidemia desse comportamento entre crianças e adolescentes. O suicídio, diz Émile Durkheim, pode ser uma escolha para quem não tem escolha.

EC – No livro, você afirma que as novas gerações estão em dor psíquica, mas não por serem frágeis como rotulam os mais velhos. Por quê?
Ferreira – Acreditar que a geração do quarto é mais frágil que as gerações anteriores é mesmo querer forjar uma verdade, para não assumir responsabilidades. A geração do quarto não é nem mais fraca e muito menos fracassada. É dotada de uma extrema capacidade de se engajar em causas sociais, na defesa do planeta, contra o aquecimento global, na defesa da igualdade de direitos entre mulheres e homens, na defesa de pessoas com deficiência, na luta contra o racismo, a homofobia, a transfobia. Ela não se submete a consumos fúteis. Para comprar algo, é necessário que esse algo lhe aponte vínculo com causas sociais. A geração do quarto lida melhor com a diversidade da orientação sexual, da construção de gênero, e tem mais respeito à diversidade religiosa. Sua potência é nítida para mim. Sabe, como nenhuma outra geração, usar a internet, criar conteúdos digitais e questionar a inteligência artificial por ela mesma criada. A geração do quarto, apesar de viver experiências de dor psíquica, me parece muito mais disposta a falar sobre essa dor, sem medo, sem receio, sem dissimulação. No meu ver, é mais genuína, mais autêntica, menos fingida que as demais gerações. Nesse aspecto, há muito o que nos ensinar. Há muito o que nos dizer.

EC – Por que os mais velhos desdenham do sofrimento e dos interesses dos jovens? Você vê alguma correlação dessa indiferença com o atual estado de coisas na política?
Ferreira – O atual presidente brasileiro, em uma certa entrevista, disse que não existe bullying. O grupo de pessoas que usam essa expressão “mimimi”, “politicamente correto” e outras de mesmo valor semântico também defendem, na sua maioria ou na sua totalidade, a arma como uma forma de proteção. São as mesmas pessoas que defendem redução da maioridade e as mesmas pessoas que acreditam que há maldade genética nas pessoas. Em outras palavras, eu quero dizer que sim, há uma relação entre a etiologia da geração do quarto e esse discurso que forja o ódio como a gramática mais comum no processo de comunicação. É o grupo que não compreende, ou não deseja compreender, a alteridade como um elemento essencial ao desenvolvimento do mundo sadio. É um grupo que costuma ofender, xingar, agredir, violentar quem não lhe parece espelho e que costuma dividir a sociedade entre os “de bem” e os “de mal”. A geração do quarto é filha também desse grupo e é no lar onde moram essas pessoas que a geração do quarto se mata e, muitas vezes, mata. Basta olhar os casos de massacres nas escolas, de Columbine a Suzano.

EC – Você fala do cyberbullying. Qual é o papel da internet na produção desse isolamento da ‘geração do quarto’?
Ferreira – Sou contrário ao argumento que põe a responsabilidade do adoecimento mental de crianças e adolescentes na internet. Para mim, as redes sociais digitais, em razão da mecânica como são construídas – forjadas a partir de milimétricos planejamentos de multinacionais interessadas em lucros – não devem ser desconsideradas quando analisarmos as problemáticas na geração do quarto, porém penso que é “má-fé” tentar exclusivamente culpá-la. Se há culpados/as, não quero distribuir culpas, creio que sejam as famílias violentas e, também, violentadas. Ou seja, as crianças e adolescentes só usam abusivamente as redes porque as redes lhes chegam também abusivamente, porque as redes também lhes chegam de forma deseducada, lhes chegam sem qualquer orientação ou encaminhamento. As redes, de maneira explícita, para muitas crianças e adolescentes, substituem o diálogo, processo raro, dentro das casas, no âmbito das escolas, no universo das instituições religiosas.

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EC – Em síntese, elas estão superexpostas?
Ferreira – As redes sociais só fazem mal porque o mal que elas fazem não é devidamente enfrentado pelas instituições sociais. É comum vermos crianças com menos de dois anos de idade receberem, sob às vistas dos adultos, telas e musiquinhas das telas. A intenção, como muitos dizem, é acalmar, promover o entretenimento. O problema não é mesmo a internet, mas seu uso abusivo e quem ensina o uso abusivo é mesmo a cultura abusadora.

EC – Você apresenta um diagnóstico de adultos sem empatia, negligentes com o bem-estar e a saúde mental de meninos e meninas na fase de transição para a vida adulta, mas abre uma porta no subtítulo do livro: Quando crianças e adolescentes nos ensinam a amar. Fale sobre isso.
Ferreira – Acredito que essas crianças e adolescentes estão nos advertindo: ou aprendemos com eles, elas, ou eles e elas nos ensinam assim mesmo. É paradoxal, porque não é binário. Onde a criança sofre, há também a advertência: o sofrimento é processo de algo que não deu certo, que não vai bem, que precisa mudar. Onde há a necessidade de mudar, há um chamado de atenção: estamos indo por caminhos tortos e sinuosos. Se um menino de 14 anos quer se matar, há algo nesse universo no qual esse menino está inserido que precisa ser repensado, precisa ser revisto. Nesse sentido, a ideia de morte é também um grande chamado à vida.

EC – Um pedido de socorro e um alerta?
Ferreira – Eu analiso a saúde mental por meio de uma abordagem transdisciplinar, assim, no lugar de ver duas coisas, vejo as duas coisas, mas não as desassocio. Há um sofrimento no quarto, sem dúvida, mas é esse sofrimento que me faz olhar que meu filho, filha, está dentro do quarto. Com o meu livro, estou tentando dizer: é possível que se você fizer diferente, pai, mãe, escola, qualquer órgão social, o quarto possa voltar a ser somente um canto da casa para o qual crianças e adolescentes vão, tão-somente, descansar.

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