SAÚDE

Violência obstétrica com dano irreversível em Passo Fundo

A segunda reportagem da série sobre violência obstétrica revela a história de Neusa, que foi vítima desta prática aos 34 anos de idade
Por Anna Gabryela Magueta, Fernanda Romão, Paulo Albano e Sofia P. Gulart / Publicado em 13 de julho de 2023

Violência obstétrica com dano irreversível em Passo Fundo

Arte: Sofia P. Gulart

Arte: Sofia P. Gulart

A segunda reportagem da série sobre violência obstétrica, revela a história de Neusa, na época com 34 anos e também moradora do interior, no norte do RS. O caso dela é um dos doze que constam na base de dados do TJRS, quando se usa o termo de pesquisa violência obstétrica. Processos como o que será mostrado agora, se referem a decisões de segunda instância, ou seja, sentenças proferidas por um colegiado de desembargadores.

“Quando ela foi informada pela enfermeira que tinha sido feita a laqueadura, decidiu ir até uma clínica particular e pagou por um exame porque não estava convencida de que era verdade”

A história de Neusa pode ser consultada publicamente no site do TJ. De acordo com o processo nº 0041262.22.2020.8.21.7000, Neusa ingressou no Hospital da Cidade de Passo Fundo em abril de 2010 para dar à luz a filha. Saiu de lá estéril. O que era para ser um momento único de felicidade se transformou em indignação. Na sequência dos procedimentos do parto, o médico obstetra realizou uma laqueadura tubária sem o consentimento prévio dela. Ele alegou que agiu para preservar a vida da paciente, pois era contraindicado que ela voltasse a engravidar devido à sua condição de saúde.

“Fizeram a laqueadura durante a cesárea sem consentimento nem dela e nem do marido. Ela só foi descobrir no outro dia, quando sentou para descer da cama, sentiu uma tontura e teve um sangramento. A enfermeira disse: — isso é normal quando fazem laqueadura, e ela respondeu: — como assim?! Além da ausência de consentimento, quase que ela vai pra casa sem saber que tinha passado por uma laqueadura”, conta a advogada Tatiana Knack, que representou Neusa no processo judicial.

Neusa e o marido ajuizaram uma ação contra o médico e o hospital em 2012. Como o profissional prestou atendimento pelo Sistema Único de Saúde, a Justiça determinou que a ação fosse direcionada somente ao hospital. Em julgamento realizado em março de 2021, o Tribunal de Justiça confirmou a condenação proferida em primeira instância pela 5ª Vara Cível da Comarca de Passo Fundo. O Estado e o hospital tiveram que  pagar indenização por danos morais a mãe e filha no valor aproximado de R$ 45 mil.

De acordo com a sentença, a intervenção médica sem consentimento só é permitida em casos que envolvem risco iminente de morte. Para a juíza, ao realizar a laqueadura sem a permissão do casal, o médico antecipou uma eventual situação futura de risco que não se caracteriza como sendo de risco iminente.

Em conversa com a reportagem por videochamada, a advogada expõe a forma com que a paciente foi tratada durante todo o procedimento, como o fato dela ter sido submetida a dores desnecessárias. “Ela saiu do obstetra com a indicação para cesariana, em razão de já ter tido outros partos. Ela foi ao hospital para agendar a cesárea, e foi dito que era preciso esperar as dores. Subentende-se que, se você sai do obstetra com atestado indicando necessidade da cesárea, deveria ter sido agendado. Não teve o devido atendimento. Deveria ter sido passada para a preparação para a cesárea, que envolve jejum e demais preparativos”, relata.

Knack conta que a preparação foi para parto normal. “Foi receitada no prontuário a medicação para aumentar a dilatação. Foi usado o limite máximo de ampolas. Se ela não podia passar por parto normal, portanto, não deveria ter aumentado as contrações, já que cesárea não precisa de contrações. Tanto que ela entrou às 2h da manhã e a nenê nasceu só depois do amanhecer”. No rol de violações ainda está o fato do pai da criança ter sido impedido de acompanhar o nascimento da filha. “Foi negado o direito de um tratamento humanizado, preparação para a cesárea, conversar sobre o que está ocorrendo… O médico foi ríspido. Ela sofreu do início ao final”, explica.

Um trauma que permanece

A advogada conta que, inicialmente, Neusa não queria buscar a via judicial após o fato. “O grau de trauma dela foi tanto, que ela demorou dois anos até decidir entrar na Justiça, e por insistência minha. Ela não queria mais conversar sobre o assunto”.

Ao revelar um episódio ocorrido algum tempo após o julgamento do caso, Knack traz à tona uma questão sobre relações de poder e constrangimento, que podem ocorrer com mais frequência principalmente em cidades do interior.

“O médico que fez a cesárea e a laqueadura nela fazia exames admissionais para um grande mercado, era como o médico do trabalho desse estabelecimento no momento das contratações. E um dia ela foi fazer uma entrevista de emprego, reconheceu ele e entrou em pânico. Achou que não iria conseguir o emprego, que ele iria persegui-la. Na audiência, ela não olhou nos olhos deles. Ficou cabisbaixa. Hoje falar com ela sobre assuntos médicos é complicado. O assunto sempre remete ao tratamento que ela recebeu”.

A advogada Isabel Martins, que esteve à frente do primeiro caso de condenação por violência obstétrica no RS, conforme mostrado na primeira matéria da série, revela que durante o andamento do processo ocorreu um fato que se assemelha ao citado no caso de Passo Fundo. De acordo com ela, uma testemunha expôs em juízo que havia pessoas que tinham conhecimento de maus tratos recorrentes contra pacientes grávidas em Pelotas, mas não denunciaram por medo de represálias.

“Tivemos uma testemunha que relatou ser normal esse tipo de tratamento. Só que afirmou não denunciar, porque se um dia engravidar, vai precisar ser atendida no mesmo local que denunciou. Já tiveram momentos aqui em Pelotas que havia somente uma maternidade atendendo pelo SUS”.

Cicatriz na bebê

Além da laqueadura sem consentimento, os pais da criança também questionaram uma cicatriz causada na testa da filha durante o parto. A lesão é chamada de tocotraumatismo. No entanto, a sentença não reconheceu a existência de erro médico, por entender que não houve imperícia nem conduta negligente ou imprudente durante o trabalho de parto.

“É uma lesão que, em tese, pode acontecer na hora do parto. Claro que eles, que são da área médica, tentaram justificar tecnicamente. Mas você cortar sete camadas e lesionar o bebê, pra mim que não sou médica é incompreensível”, opina a advogada.

Ela questiona a afirmação que consta na sentença de que a cicatriz, apesar de indesejada, não trouxe consequências emocionais graves para a vida da menina.

Os médicos se protegem uns aos outros

 Quanto ao PL 2.082/2022, que atualmente está em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, e prevê que os réus sejam passíveis de responder na área criminal com pena de até dois anos de prisão, a advogada se mostra cética. “Acredito que vai ser bem difícil comprovar por causa dos peritos médicos. A classe é muito unida. A perícia realizada no nosso processo foi totalmente desfavorável a nós. A perita enfatizou que, no caso da Neusa, era indicada a laqueadura por risco de vida em uma futura gestação”. Segundo a advogada, a afirmação da perita foi seguida de um questionamento da parturiente.

“Na audiência, ela olhou para a juíza e disse assim: ‘Doutora, tudo bem que havia um risco em ter outro filho, mas não caberia a mim escolher?’. Ficou aquele silêncio…”

A juíza acolheu o argumento e entendeu que, mesmo com o eventual risco apontado pela perícia, era necessária a autorização, já que há outras formas de prevenção que caberia à vítima escolher. A magistrada ressaltou “que o poder de disposição sobre o próprio corpo é direito de personalidade e o paciente detém autonomia para o seu exercício”.

Já advogada do caso de Pelotas, Isabel Martins indica outro ponto. Segundo ela, é difícil conseguir um laudo médico particular para anexar em uma ação judicial por erro médico. “Os profissionais da classe não querem se acusar entre si”, acredita.

A reportagem questionou o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers) sobre a definição de violência obstétrica e qual a orientação que os profissionais recebem da instituição. Em vídeo enviado através da assessoria de imprensa, o conselho emitiu o posicionamento transcrito a seguir.

Nas palavras do Dr. Carlos Isaia Filho, médico ginecologista e corregedor do Cremers, “a violência obstétrica sob ponto de vista médico só tem um entendimento: é uma gestante que está em trabalho de parto e que não encontra formas de ter uma assistência obstétrica junto a um médico, junto a uma enfermeira obstétrica numa entidade hospitalar. Isto é uma violência obstétrica. O Cremers não classifica violência obstétrica porque isso não é uma atitude médica. O Cremers sempre que recebe alguma denúncia de má prática obstétrica atua junto ao profissional obstetra pra ver que tipo de ilícito técnico e ético ele pode ter realizado e se isso for comprovado, esse médico vai receber a sanção que se julgar necessária. A orientação do Cremers para os médicos é, quando o profissional médico detectar que uma gestante foi vítima de violência obstétrica ele vai fazer um boletim de ocorrência e comunicar as autoridades daquilo que essa gestante sofreu”.

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Esta reportagem foi realizada na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer, no primeiro semestre de 2023.

O Extra Classe e a Unisinos firmaram Termo de Cooperação, no início de 2022, para a veiculação no jornal de reportagens produzidas pelos estudantes da disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da instituição e o acompanhamento dos estudantes na produção das edições mensais impressas do Extra Classe.

Leia a primeira reportagem da série sobre violência obstétrica: 

Pelotas tem a primeira condenação por violência obstétrica do RS

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