OPINIÃO

Conflito na Ucrânia: nas mãos do enigmático Putin?

Por Andrés Ferrari Haines e Matheus Ibelli Bianco / Publicado em 11 de fevereiro de 2022

Foto: www.kremlin.ru

Assinatura da adesão da Crimeia e Sevastopol à Federação Russa, em março de 2014: o comportamento de Moscou na atual crise com a Ucrânia não tem diferenças significativas em relação a seu passado expansionista

Foto: www.kremlin.ru

Muitas pessoas no topo da hierarquia soviética estavam genuinamente com medo dos Estados Unidos e dos americanos.
Talvez isso não devesse ter me surpreendido, mas me surpreendeu. Na verdade, a princípio, tive dificuldade em aceitar minha própria conclusão.
Sempre achei que, por nossos atos, deveria ficar claro para qualquer um que os americanos eram um povo moral que,
desde o nascimento de nossa nação, sempre usamos nosso poder apenas como uma força do bem no mundo.”
(Ronald Reagan, An American Life: The Autobiography, 1990 p.584)

 

À primeira vista, com a atual disposição de cem mil soldados russos na fronteira ucraniana, parece cada vez mais crível a possibilidade de uma guerra na Ucrânia. Esta seria resultado das intenções imperialistas do presidente russo Vladimir Putin. Os líderes ocidentais, por sua vez, estariam se esforçando incansavelmente nas negociações para evitar conflitos com o Kremlin. Afinal, as consequências e ramificações de uma possível invasão russa na Ucrânia seriam imensas.

Diante de Putin, Joe Biden apresenta-se como o líder dos governos que defendem a democracia e a liberdade global. Como comunicou recentemente o presidente estadunidense: “Tenho sido muito, muito direto e franco com o presidente Putin, tanto por telefone quanto pessoalmente”, afirmou Biden, exclamando que sua paciência estava esgotando-se.

Mas os próximos capítulos desta história não serão determinados por tais representações personificadas. Embora Putin seja retratado na imprensa ocidental como um autocrata ansioso por uma invasão, seu comportamento reflete uma posição russa e não um posicionamento individual.

Trata-se de questões fundamentais de segurança nacional, além dos laços históricos que a Rússia possui com a Ucrânia. Sobretudo, os atuais comportamentos de Moscou não possuem diferenças significativas em relação a seu passado.

A postura russa

Aproximadamente 30 anos atrás, condenando a ideia de expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em 1993, o chanceler de Boris Iéltsin, Andrey Kozyrev, conhecido por ser o mais ocidentalista e liberal ministro das relações exteriores pós-desintegração soviética, comentou: “Seria um autoengano caso os ocidentais acreditem que podem estabelecer uma parceria desigual com a Rússia. Primeiramente, a Rússia é destinada a ser uma grande potência”. Para Kozyrev, um comportamento ocidental de não colaboração apenas levaria a uma radicalização da política russa.

A narrativa ocidental, agora, é de que os governantes europeus e estadunidense se posicionam procurando deter um suposto imperialismo de Putin. É uma tradição: historicamente o Ocidente julga que as formas de governo às quais não considera democráticas são imperialismos expansivos por natureza. Na ótica ocidental, essa seria a única lógica que justifica o comportamento russo. Biden, inclusive, tem apelado à China para intervir sobre a questão ucraniana, dando a entender que se tratam de países com governos semelhantes.

Dificilmente esta visão ocidental afetará as perspectivas russas. Pelo contrário, Putin contesta a veracidade histórica dessa ótica, apontando o próprio imperialismo territorial dos Estados Unidos contra os nativos americanos e os mexicanos ao longo do século 19.

Moscou diz que não aceitará a entrada da Ucrânia na Otan, e que esta é uma questão de segurança nacional. Embora os Estados Unidos não tenham conseguido comprovar as manobras belicosas russas, de todas as formas as declarações de Putin são claras e diretas nesse sentido.

Essa problemática é antiga e está presente, por exemplo, no Conceito de Política Externa da Rússia de 1993, no qual consta como “obrigação e direito da Rússia agir como garantidor da estabilidade e da liberdade dentro da antiga URSS”.

Vale lembrar que a Otan é uma organização militar que emergiu em 1949, liderada pelos Estados Unidos para enfrentar a URSS, no que viria a ser a Guerra Fria. Apesar do discurso triunfalista ocidental após a queda soviética, a dissolução do bloco comunista foi uma grande surpresa para os líderes da Otan.

Quando Rússia quis ser ocidental

Foto: Valery Tenevoy/ Unsplash

“Apesar de ter se alinhado firmemente com o Ocidente e ter aceitado as recomendações de uma estratégia de choque econômico a fim de se tornar uma economia de mercado, os russos aos poucos descobriam que não seriam integrados às instituições ocidentais”

Foto: Valery Tenevoy/ Unsplash

Permanecendo forte militarmente, a Rússia, a partir de Gorbachev e sobretudo de Ieltsin, procurou fazer parte da proposta ocidental de economias democráticas de livre mercado. A visão russa era a de que, se estivessem integrados ao modelo ocidental, a existência da Otan não faria mais sentido.

Afinal, o entendimento de Iéltsin e Kozyrev era de que após a dissolução do Pacto de Varsóvia seriam estimulados, como substituição, arranjos securitários mais inclusivos, como o aprimoramento da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (Osce).

Nesta, a Rússia disporia de direito de voto nas principais questões securitárias europeias. Kozyrev buscava, no entanto, a fundação de uma nova instituição securitária Pan-Europeia.

Apesar de ter se alinhado firmemente com o Ocidente e ter aceitado as recomendações de uma estratégia de choque econômico a fim de se tornar uma economia de mercado, os russos aos poucos descobriam que não seriam integrados às instituições ocidentais.

Percebiam que tampouco eram valorizados pelo Ocidente, situação que ficou evidente com a declaração do ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski, o qual considerou as relações russo-estadunidenses como uma “relação prematura”, gerando grande desconforto sobre Iéltsin.

Dentro da Rússia, a percepção era cada vez maior de que o Ocidente se aproveitava da posição de fraqueza de Moscou para angariar vantagem sobre o país, fundamentada no fato de, em 1998, com as políticas neoliberais de choque econômico, o PIB per capita ter encolhido para 71% em relação a 1992. Uma percepção que foi ampliada após a oficialização da decisão da Otan de expansão ao Leste Europeu, em 1994, excluindo a Rússia do processo decisório.

Essa conjuntura, somada com as pioras do quadro econômico do país, de fato, enfraqueceram a posição liberal dentro do governo russo e fortaleceram a posição de conservadores, nacionalistas e estatistas, que viam como perigosa e ameaçadora a aproximação da Otan sobre o território da Rússia. Uma das reações a essa conjuntura foi a substituição de Kozyrev por Primakov como ministro das Relações Exteriores de Iéltsin.

Para Primakov: “Primeiramente, não devem emergir novas linhas divisórias, substituindo o antigo cordão sanitário. Este é problema principal, o qual a política externa da Rússia deve tentar resolver, questão que justifica a nossa contrariedade às expansões da Otan, que objetivam incluir os territórios do antigo pacto de Varsóvia, tentando transformar a aliança em um eixo de um novo sistema da segurança europeia”.

Assim, diante do que Primakov chamou de “ambiente geopolítico muito perigoso”, o novo chanceler defendeu a recuperação do papel da Rússia enquanto grande potência, a partir do investimento em um sistema internacional com vários eixos de poder. A finalidade: balancear a unipolaridade ocidental.

Perdendo Rússia, perdendo China…

Assim, além das visões morais, a posição russa também não parece nada enigmática: Moscou reagirá militarmente a uma expansão ocidental na Ucrânia. É algo compreendido pelos Estados Unidos desde os formuladores da estratégia antissoviética, começando por George Kennan, idealizador da política de contenção no início da Guerra Fria, e culminando com Richard Nixon.

Ambos, na década de 1990, manifestaram-se publicamente contra a expansão sobre a antiga União Soviética, acreditando que o movimento certamente seria considerado pelos russos como uma provocação a Moscou.

Esta drástica mudança de posicionamento político da Rússia, de entusiasta adepta dos costumes ocidentais a novo rival, levantou a questão no Ocidente: “Quem perdeu a Rússia?”. A pergunta insinua uma conjuntura semelhante àquela da China em 1949, com a vitória do Partido Comunista chinês. O apoio explícito da China à Rússia no atual conflito revela o caminho circular percorrido pelos Estados Unidos no último meio século: a reaproximação de Nixon com Mao no início dos anos 1970 seria fundamental para a derrubada da URSS 20 anos depois.

Naquela época, Nixon declarou que poderia haver uma união com a China, sem que houvessem questionamentos em relação aos regimes políticos domésticos. Mas após a queda da URSS, nos anos 1990, o triunfalismo estadunidense levou o país a recriar em todo o mundo democracias de mercado, como Bill Clinton as conceituaria.

As consequências foram as desastrosas guerras no Iraque, Afeganistão e intervenções no Oriente Médio, além de outras inimizades recriadas pelos Estados Unidos. Putin e Xi Jinping agora proclamam uma nova visão de mundo.

Em relação à Ucrânia, Putin não anuncia uma guerra derivada de intenções imperialistas, mas deixa claro que poderia haver uma resposta militar caso perceba um avanço ocidental sobre Kiev. Como o próprio presidente perguntou, como reagiriam os Estados Unidos se a Rússia enviasse mísseis para o México? A tentativa da URSS de enviá-los à Cuba em 1962 deixou clara a grande rejeição de Washington acerca desta possibilidade.

Dessa forma, à medida que a comunidade internacional procura impedir Putin de desencadear o que poderá se tornar um grande conflito, uma breve olhada na recente história russa após a desintegração soviética fornece lembretes de que a atual conjuntura sempre esteve presente como uma preocupação da agenda do Kremlin. Ao final, tem sido uma rota de constantes invasões sobre o país ao longo da sua história.

Andrés Ferrari Haines é professor Associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs. Pesquisador do Nebrics.
Matheus Ibelli Bianco é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais. Pesquisador pelo Nebrics/Ufrgs.

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