CULTURA

Encantarias africanas: religiões e lutas do Maranhão a Porto Alegre

A maranhense Dayanne Santos faz doutorado em Sociologia na Ufrgs sobre a desarticulação de comunidades tradicionais no Maranhão e no Rio Grande do Sul
Por Cristina Ávila / Publicado em 21 de maio de 2019

 

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Solares, sobrados, casarios térreos com o requinte dos azulejos portugueses. Palácios, igrejas, conventos. Tudo remete ao passado de riquezas no belíssimo e assombrado centro colonial de São Luís do Maranhão. Só as pedras parecem gritar sofrimentos, rudes, a se elevarem pesadas pelas lombas difíceis de vencer. Todas as noites se ouvem os sons dos tambores, a invocar a presença de caboclos e seres encantados. Negros e negras dançam capoeira, cultuam magias. Porque dor e escravidão no Brasil, há séculos, motivam força, luta e resistência; nas senzalas, nas casas, nos terreiros, nos altares, nas ruas e cada vez mais nas universidades.

“Estamos aquilombando a universidade”, afirma a maranhense Dayanne da Silva Santos, que há dois meses mora em Porto Alegre, fazendo doutorado em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Negra, feminista, ingressou na graduação como cotista, é neta de uma marisqueira e de um pescador. Foi criada no mar, em São José de Ribamar, município ali pertinho do Centro, onde até poucos dias costumava participar dos encontros étnicos. A mãe é lavadeira de roupas e criou os filhos com auxílio do Programa Bolsa Família.

Pesquisa abrange a religiosidade afro-brasileira e sua importância nas lutas políticas por liberdade e cidadania

Foto: Cristina Àvila

Pesquisa abrange a religiosidade afro-brasileira e sua importância nas lutas políticas por liberdade e cidadania

Foto: Cristina Àvila

Aquilombar a universidade tem para Dayanne um sentido mais amplo do que fazer parte de uma geração que rompeu o racismo e a exclusão social, chegando ao ensino superior. Ela vem para o Rio Grande do Sul trazendo vozes de uma multidão de comunidades tradicionais maranhenses vitimadas pela degradação de territórios localizados na abrangência de empreendimentos econômicos, implementados pelo governo federal. Sua experiência revela falas de quilombolas e de encantados, seres invisíveis protetores da natureza. Seu orientador na Ufrgs é o antropólogo cabo-verdiano José Carlos Gomes dos Anjos.

 

O antropólogo José Carlos dos Anjos identifica nos quilombos urbanos "traços culturais que vinculam um povo a um território"

Foto: Secom/ Ufrgs/ Divulgação

O antropólogo José Carlos dos Anjos identifica nos quilombos urbanos “traços culturais que vinculam um povo a um território”

Foto: Secom/ Ufrgs/ Divulgação

“O professor vem pensando e escrevendo sobre relações interétnicas, sobre políticas públicas, sobre o que são e por que geralmente não funcionam para a população negra. Ele tem trabalhos sobre religiosidade afro-brasileira e sua importância nas lutas políticas por liberdade e cidadania”, explica Dayanne. Ela se identifica com José dos Anjos por diversos trabalhos, mas cita um em especial: a etnografia que fez nos anos 1990 sobre a remoção de oito terreiros e 113 famílias da Vila Mirim, próximo ao centro de Porto Alegre, para dar lugar ao entroncamento de três avenidas, uma delas a Nilo Peçanha.

José Carlos dos Anjos militou contra a remoção da vila, e nesse processo acabou se iniciando como filho-de-santo da Mãe Dorsa, uma das principais lideranças dos moradores. “Assisti de perto à forma como a Mãe Dorsa sofreu. Eles não lutavam somente porque não queriam ser removidos, mas porque a remoção atingia um espaço sacralizado.” O antropólogo ressalta a existência de seis quilombos hoje em Porto Alegre. “As comunidades negras fortemente territorializadas, com traços culturais que vinculam um povo a um território, hoje têm uma ferramenta importante que é a caracterização como quilombolas. Hoje, são seis comunidades parecidas com a Vila Mirim que conseguem se manter em seus territórios justamente por reivindicarem a condição de quilombos urbanos. Uma pena que isso não aconteceu com a Vila Mirim.”

Nas lutas quilombolas no Maranhão, os principais conflitos estão na abrangência da Estrada de Ferro Carajás, que escoa anualmente 230 milhões de toneladas, do Pará ao porto de São Luís, passando por 27 municípios. Um desses municípios é Itapecuru-Mirim, a 120 km da capital maranhense, que tem mais de 70 territórios quilombolas, entre eles Santa Rosa dos Pretos, com 20 comunidades impactadas por duas ferrovias, dois linhões de transmissão de energia, grilagens e a BR-135, que divide o território ao meio. Para visitarem o vizinho, as crianças andam a dois metros de distância de caminhões e automóveis que passam em alta velocidade. A briga agora é contra o plano do governo federal de duplicar a estrada.

Conflitos ambientais, colonialismo e racismo nesse processo em Itapecuru-Mirim fazem parte do objeto de estudos que Dayanne irá fazer nos próximos quatro anos na Ufrgs. E ela chega no doutorado no Rio Grande do Sul depois de ter morado no quilombo Santa Rosa dos Pretos. No mestrado, estudou a relação de pessoas e encantados na luta pela permanência e titulação do território quilombola.

A maranhense Dayanne Santos: doutorado em Sociologia sobre a desarticulação de comunidades tradicionais no Maranhão e no RS

Foto: Igor Sperotto

A maranhense Dayanne Santos: doutorado em Sociologia sobre a desarticulação de comunidades tradicionais no Maranhão e no RS

Foto: Igor Sperotto

“Nem sei se posso explicar o que são os encantados”, exclama, provavelmente temendo resvalar em segredos que não pode contar. “Cada casa tem seu fundamento, seu axé, nenhuma é igual à outra, muito menos no que diz respeito a festas e obrigações. E por isso a encantaria, os encantados são um grande mistério, até mesmo para as mães e pais-de-santo. Mas, pensando a partir das conversas e experiências que tive, a partir de um território negro composto por mais de 20 quilombos, em uma rica rede de parentescos marcados por casamentos e apadrinhamentos tanto de pessoas com pessoas, como de pessoas com encantados, digo que são expressões muito fortes de quem já foi escravizado, resistiu às chibatas e está resistindo à colonialidade moderna.”

Em geral, no Maranhão, se diz que encantados podem ser espíritos desencarnados, mas podem também nunca terem sido gente. São seres que incorporam em pessoas, chamadas aparelho, cavalo, filha ou filho-de-santo. Mas essa não é a única forma de comunicação. Conta-se que muitas crianças brincam com encantados e, às vezes, convivem com eles como se fossem gente comum. Em Santa Rosa dos Pretos, a mãe-de-santo do Terreiro Nossa Senhora dos Navegantes, dona Severina, faz festas de aniversário de encantados da família Légua Boji. De madrugada, no intervalo dos rituais religiosos, eles sentam com as pessoas pra descansar, conversam, tomam cerveja. Cantando, Pedro Légua explica, então, que seu parentesco é extenso e que todos moram nas matas do município de Codó. A voz da entidade é linda. Parece que a própria Clementina de Jesus é quem está cantando.

“Assim, o tambor de crioula assume a forma de tambor de luta. O tambor é uma forma de reescrita dos quilombolas, pois, ao expressar o cotidiano da vida no território, nos permite entender as dimensões e as filosofias que não são ditas ou escritas, mas sentidas. O tambor de crioula, o tambor de mina, a dança do coco, a capoeira e muitos outros batuques de pretos são expressões que permitem romper silêncios em prol das demandas sociais e dos valores democráticos que asseguram aos quilombolas o direito ao território e de se identificarem etnicamente. Falar incorporado de si mesmo é estar em um processo constante que provoque rupturas em formas hegemônicas, racistas e colonizadoras. Falar incorporado de si mesmo é saber que somos Ubuntu, ou seja, ‘sou quem sou porque somos todos nós’, em relação uns com os outros, pessoas, natureza, território e encantados”, resume a estudante da Ufrgs.

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