CULTURA

Nei Lisboa dá a volta por cima e anuncia novo EP

Recuperado da covid-19, o músico lança músicas novas, fala da polêmica em torno do edital Trajetórias, conta sobre a internação e analisa o Brasil pandêmico
Por Flavio Ilha / Publicado em 16 de abril de 2021
Nei Lisboa dá a volta por cima e anuncia novo EP

Foto: Cintia Belloc/Divulgação

“Olha, eu não recomendo pra ninguém. É uma experiência de vida extrema, no limite mesmo”, define Nei

Foto: Cintia Belloc/Divulgação

A voz ainda falha algumas vezes. As pausas para recuperar o fôlego também são visíveis, mas, em 37 minutos de conversa, o músico Nei Lisboa deu sinais evidentes de que sua tormenta pessoal – e da esposa, a designer Cintia Belloc – está se dissipando. Não sem deixar marcas profundas.

“37 minutos já dá para fazer meio show, hein?”, brinca o artista após a entrevista, ele que ainda luta para se recuperar plenamente da infecção que comprometeu 50% dos pulmões. Imagine o impacto disso para quem vive de cantar e de fazer shows.

“Olha, eu não recomendo pra ninguém. É uma experiência de vida extrema, no limite mesmo”, define Nei, que passou 14 dias entre a enfermaria e uma sala de atendimento semi-intensiva do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS) lutando contra a covid-19.

Nei e Cintia contraíram o vírus no início do mês passado e estavam evoluindo bem, em casa, acompanhados a distância por um médico. Mas, no dia 18 de março, com o agravamento da situação, o músico precisou de ajuda especializada e acabou internado. Nunca ficou inconsciente e nem precisou de intubação, mas o fantasma da morte rondou-lhe os dias e as noites.

“Meu drama foi uma gota no oceano do desastre anunciado e patrocinado que temos no país. Ali eu vivenciei diretamente um pouco desse descaso. O cara do meu lado, agonizando, que vai para a intubação. E que, depois tu descobre, não aguentou e morreu”, relata um Nei já tranquilo, embora indignado com as mortes por covid-19 que poderiam ser evitadas.

E paralelo à música – uma carreira iniciada em 1979 e que inclui 11 álbuns, várias turnês e músicas para filmes  –, Nei escreveu crônicas mensais para o Extra Classe entre 2000 e 2005 e também para jornal Zero Hora, reunidas no livro É Foch!, em 2007, lançado no Brasil e na França. Antes, em 1991, publicou o romance Um morto pula a janela, republicado em 1999.

Duas semanas depois de deixar o HPS, Nei Lisboa deu a seguinte entrevista ao Extra Classe:

EC – Como estás, Nei?
Nei Lisboa
– Dentro do possível, muito bem. Duas semanas depois da alta, dá pra dizer que passei por essa experiência com louvor. A recuperação não é nada fácil porque tive comprometimento de 50% dos dois pulmões. É possível uma recuperação total, não se trata de um comprometimento definitivo. Mas é algo que determina, obviamente, a gravidade do quadro de saúde. Um pouquinho mais eu ia para a intubação. O terror foi grande.

EC – Pode nos relatar como foi o período antes da internação?
Nei –
Eu e minha esposa, a Cintia (a designer Cintia Belloc), nos infectamos e tivemos sintomas leves. Para ela terminou aí, nessa fase: um quadro gripal, febre abaixo de 38 graus, dor de cabeça e algum cansaço. Nada demais. Ficamos otimistas. A besteira foi achar que eu também teria um quadro leve, o que não se confirmou. Estávamos com acompanhamento médico on-line, mas isso impede um exame mais direto por parte do médico. Principalmente em termos de respiração. O oxímetro – aparelho que mede o nível de oxigenação sanguíneo – também estava dentro da normalidade, apesar das oscilações. Mas aí bateu dez dias, eu vi que não estava melhorando, a febre aumentou e a respiração passou a ficar claramente mais difícil. A covid-19 tem mais essa maldade: a pessoa custa a perceber que está com um problema respiratório. Tu compensa as dificuldades respirando mais rápido, ou seja, não sente imediatamente que a doença está se agravando. Quando ficou claro que o negócio estava fora de controle, fui encaminhado para o HPS pelo meu médico.

EC – Por que para o HPS?
Nei – O momento não era de ficar escolhendo. O HPS não era um hospital de referência – para covid-19 –, mas está se tornando a partir de uma parceria com o Hospital Vila Nova. Já tem uma ala inteira só pra esses pacientes no terceiro andar. Além disso, tem uma ótima equipe, pude comprovar isso. Fui muito bem tratado.

EC – Pode nos contar como foi a internação?
Nei – Fui primeiro para a enfermaria, receber oxigênio. Não tinha ainda a possibilidade de intubação, que é de risco. Era o que a gente mais temia, porque a estatística é severa, né? De 10 intubados, oito não voltam. Mas enfermaria nunca é tranquilizadora. Passei momentos de muita ansiedade, claro. Comecei com seis litros (por minuto) de oxigênio via cateter nasal, depois fui para a máscara de Hudson (média oxigenação). Com essa fiquei alguns dias na enfermaria, mas o quadro continuava de estável para ruim, muitos pacientes internados no mesmo espaço, dezenas de médicos, enfermeiros, técnicos indo para lá e para cá, alguns quadros mais críticos e, a todo momento, aquela dúvida: intuba ou não intuba? É muito difícil.

EC – Chegaste a precisar de UTI?
Nei – Não cheguei a ir para a UTI. Fui para uma antessala, digamos assim, com cuidados mais intensivos, com menos gente, uma situação bem mais tranquila que a enfermaria. O que melhorou mesmo foi a utilização de um outro equipamento chamado cânula de alto fluxo – usada em casos de insuficiência respiratória aguda, antes da intubação –, que o HPS tomou emprestado dessa ala do Hospital Vila Nova dedicada à covid-19 que fica no terceiro andar (o equipamento completo para fluxos de 60 litros de oxigênio por minuto pode custar R$ 20 mil). A partir daí o quadro começou a melhorar e a curva de recuperação mudou completamente. Em três ou quatro dias já estava sendo considerada a alta.

EC – Como classifica a experiência?
Nei – Olha, eu não recomendo pra ninguém. É uma experiência de vida extrema, no limite mesmo. Também me fez ver como a natureza humana se adapta a situações adversas. Durante muitos dias o meu mundo foi aquela maca no HPS, muitas vezes numa posição específica. Nas primeiras 24 horas, por exemplo, eu fiquei no mesmo lugar, sem me mexer, porque qualquer movimento podia alterar a oxigenação. Para pior. E tu vivencia o todo da coisa: dramas maiores que o meu, por exemplo. Meu drama foi uma gota no oceano do desastre anunciado e patrocinado que temos no país. Ali eu vivenciei diretamente um pouco disso. O cara do meu lado, agonizando, que vai para a intubação. E que, depois tu descobre, não aguentou e morreu. Os profissionais de saúde no seu estresse máximo e, ainda assim, se dedicando a mim. Sei que é chavão, mas fiquei emocionado com a doação das pessoas, com a capacidade que elas têm, com a experiência. Eu não conseguiria.

EC – Muitas das mortes por covid-19 podiam ter sido evitadas.
Nei – Exatamente. É um descalabro, não tem outra expressão. Passou de todos os limites possíveis. E quando a gente pensa que esse é o fim da picada, vai lá e descobre que o fim da picada é ainda um pouco mais adiante. Um crime contra a humanidade. Sem falar que o Brasil está se tornando um pária no mundo. Nem precisava tanto para suscitar um impeachment, até a prisão do Bolsonaro e de outros tantos.

EC – Como está tua recuperação?
Nei – Estou fazendo fisioterapia respiratória para recuperar a capacidade pulmonar. Quando saí do hospital estava muito ofegante ainda, com dificuldade para caminhar. Com a fisioterapeuta, uma vez por semana. E mais exercícios diários, coisa que nem sempre acontece porque sou meio vagabundo. Estou trabalhando para me recuperar totalmente, mas na primeira vez que cantei, depois da internação, tomei um susto, pois saiu uma tremenda desafinação. Não precisam se preocupar porque em seguida engatou! (risos) Tecnicamente, me sinto já bem para fazer várias canções. A questão, porém, é de segurança: a qualquer momento posso ficar um pouco mais ansioso e demonstrar falta de fôlego, o que ainda ocorre. É preciso estar 100% recuperado, por isso é necessário dar todo o tempo para isso. De qualquer forma, qualquer esforço demasiado neste momento pode complicar.

EC – Como a doença afetou tua vida profissional, que já estava difícil devido à pandemia?
Nei – O meu programa semanal no canal do YouTube, Em casa e ao vivo – transmitido aos sábados –, foi interrompido. A expectativa é de que em maio possamos retornar. E eu não faço shows com público desde o dia 15 de março de 2020. O projeto de um disco também foi suspenso. Agora que estou retomando a ideia a partir de um financiamento coletivo que surgiu como um desagravo bem-humorado ao edital Trajetórias – da Secretaria de Cultura (Sedac) –, que premiou 1.500 personalidades culturais do Estado com R$ 8 mil. A primeira meta, de R$ 7.999 (risos), foi batida muito rapidamente, no segundo dia, então a segunda meta incluiu a gravação de um EP com quatro músicas inéditas do repertório do disco. A previsão é de lançar em setembro. Mas tudo feito em casa ainda, cada músico gravando sua pista e depois mixando tudo em estúdio. Já alcançamos metade da nova meta, que vai até 10 de maio.

EC – Já que citaste, tua reação ao resultado do edital Trajetórias foi bem forte. Pensa em alguma medida legal?
Nei – Não, ficou no terreno da brincadeira mesmo. De minha parte, a questão das cotas e das ações afirmativas continua sendo essencial em qualquer âmbito, na educação, na cultura. Não se trata de um favor, é uma dívida que a gente tem que começar a pagar dessa forma. No que tange ao edital, não penso que esse seja um item a ser questionado, embora alguns críticos tenham adotado uma postura meio fora da casinha. Em geral, editais se caracterizam pela subjetividade, pela preferência pessoal de quem julga. O que chamou a atenção foi o universo de 1.500 premiados. Então, quer dizer que depois de 40 anos de uma trajetória difícil, como é a de todos os artistas daqui, tu não integra nem a lista dos 1.500 artistas mais importantes do Estado? É claro que isso não bate bem.

EC – Houve direcionamento, na tua opinião?
Nei – Acho que errei um pouco a mão ao sugerir favorecimentos políticos no edital, de uma forma que tem pouca sustentação. A Sedac admite que o edital tinha uma série de problemas, tanto que está fazendo uma auditoria. Um monte de gente gritou, com razão. Houve problemas operacionais e de elaboração, como permitir que artistas de fora concorressem. Pode-se passar uma lupa nesse edital e ver tudo o que estava errado. Mas má-fé é uma coisa que a gente tem que apontar e comprovar. Não me arrisco a dizer tal coisa. Eu cheguei perto disso no meu blog e já estou querendo pedir desculpas. Além disso, não entrei com recurso. E me sinto mais que compensado devido ao financiamento coletivo, que arrecadou em dois dias tudo o que o prêmio podia me oferecer. Se por ventura quiserem dar uma mexida lá para incluir quem reclamou, me incluindo, darei outra destinação a esses recursos. Posso doar a músicos que realmente estão precisando. Mas não acredito na possibilidade de uma revisão.

EC – Como vai ser o EP? Já tem nome?
Nei – Tenho um repertório inédito de 12 canções que vinha sendo trabalhado há mais ou menos três anos. Sou meio lentinho mesmo! Boa parte desse repertório já mostrei nas minhas redes sociais, principalmente no canal do YouTube (www.youtube/use/neilisboatv), e alguma coisa entrou do ano passado para cá no site (www.neilisboa.com.br). Daí é que vão sair as quatro faixas do EP. Tenho algum desenho já na cabeça de quais serão as músicas, mas não fechei nada ainda. Nem os músicos, nada. Imagino alguma coisa mais acústica, até pela dificuldade de gravar. O disco também ainda não tem nome.

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