ECONOMIA

Inflação dos alimentos corrói poder de compra dos trabalhadores

O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15) de abril, divulgado pelo IBGE no final do mês, foi de 1,73%, ficando 0,78 ponto percentual acima da taxa de março – a maior variação desde 1995
Por Flávio Ilha / Publicado em 10 de maio de 2022

Foto: Igor Sperotto

Na capital gaúcha, que tem uma das cestas básicas mais caras do país, feiras livres como a do Bom Fim são alternativa, mas alguns produtos tiveram alta de até 100%

Foto: Igor Sperotto

Os feirantes nunca viram coisa igual nos últimos 30 anos: aumentos pontuais de preços variando entre 50% e 100%. Comerciantes tampouco: o número de estabelecimentos fechados bateu recorde de 26.741 no primeiro trimestre de 2022 no Rio Grande do Sul, segundo a Junta Comercial. A ampla maioria das empresas fechadas é de microempreendedores individuais (MEI). O setor concentra 68% da massa de desempregados do país, o que representa 18.321 trabalhadores

Os consumidores, então, se desesperam. “No último mês tive que cortar muita coisa, os preços dispararam. A gente até consegue administrar o orçamento, mas e quem está desempregado?”, indaga a aposentada Sônia Zilbernstejn, 80 anos, que percorre, mesmo de bengala, a feira livre do Bom Fim em busca de mercadorias baratas.

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Distopia: custo de vida disparou por conta do descontrole de preços dos combustíveis e da seca

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Mas não está fácil. Nos últimos 30 dias, a embalagem com três dezenas de ovos, por exemplo, subiu de R$ 18,00 para R$ 25,00 – um aumento de quase 40%. Os legumes na banca do feirante Jorge Pires, com mais de 20 anos no mercado, subiram, em média, 100%. Alguns, como informa ele, triplicaram de preço, caso do repolho, que custava R$ 2,50 e pulou para R$ 8,00. Pires diz que nunca viu uma alta tão expressiva nos preços em tão pouco tempo. “O preço vai ter que cair, porque assim é insustentável”, deduz.

 

A culpa por esse cenário distópico é das altas sem controle nos preços da gasolina, do diesel e do gás natural, fruto da política dolarizada da Petrobras, e das condições climáticas desfavoráveis pelo aquecimento global. Também, contribuiu o aumento do preço da energia elétrica, que impacta toda a cadeia produtiva, preços esses, administrados pelo governo federal.

Menos mal que os consumidores podem optar pelas feiras livres, que têm preços até 30% mais baratos que nos supermercados. Exemplo do tomate longa vida: enquanto nas bancas o produto varia de R$ 5,80 a R$ 6,98, nos supermercados o preço sobe de R$ 9,49 a R$ 13,90. Alguns produtos, entretanto, não podem ser comprados em feiras – é o caso do leite. A inflação do produto chegou a quase 20% neste ano, segundo pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

Cesta básica em Porto Alegre é a quarta mais cara do país

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Sônia Zilbernstejn, 80 anos, recorre às ofertas para equilibrar o
orçamento: “E quem está desempregado?”

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O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), um dos principais indicadores inflacionários do país, teve alta de 1,62% em março – a maior variação para o mês desde 1994, que antecedeu a implantação do Plano Real. Só no primeiro trimestre deste ano, o índice medido pelo IBGE acumula alta de 3,2%. Nos últimos 12 meses, de 11,3%.

Oito dos nove grupos de produtos e serviços pesquisados tiveram alta na inflação de março. A maior variação (3,02%) veio do item Transportes, seguido da Alimentação (que inclui bebidas), com alta de 2,42%. Juntos, os dois grupos contribuíram com cerca de 72% do IPCA de março. Além deles, houve aceleração também nos grupos Vestuário (1,82%), Habitação (1,15%) e Saúde (0,88%).

Entre os 13 itens analisados pela entidade, cinco lideram o ranking dos mais inflacionados nos últimos 12 meses. Além do tomate, estão no topo da lista o café, o açúcar, a batata e o leite. Só em 2022, a batata teve incremento de 30,64%, enquanto o café subiu 12,14%. A batata e o leite, itens essenciais na mesa dos trabalhadores, aumentaram, respectivamente, 23,38% e 19,41%.

De acordo com o levantamento, a cesta básica de Porto Alegre foi a quarta mais cara do país em março, entre 27 capitais. Na capital gaúcha, o consumidor desembolsou R$ 734,28 em produtos básicos de alimentação, R$ 110,00 a mais que no mesmo mês do ano passado. Só nos três primeiros meses de 2022, a cesta acumula alta de 7,52%. Em um ano (entre abril de 2021 e março de 2022), a alta foi de 17,8%.

Mas o descontrole de preços não para por aí. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15) de abril, divulgado pelo IBGE no final do mês, foi de 1,73%, ficando 0,78 ponto percentual (p.p.) acima da taxa de março (0,95%). Essa foi a maior variação mensal do indicador desde fevereiro de 2003 (2,19%) e a maior variação para um mês de abril desde 1995, quando o índice foi de 1,95%. No ano, o IPCA-15 acumula alta de 4,31% e, em 12 meses, de 12,03%, acima dos 10,79% registrados nos 12 meses anteriores. Em abril de 2021, a taxa foi de 0,60%.

A economista Daniela Sandi, do Dieese, diz que é a primeira vez que a cesta básica ultrapassa os R$ 700,00 em Porto Alegre, desde que a instituição começou a acompanhar as variações, em 1994. “O comprometimento do salário mínimo para aquisição dos 13 itens se situa acima dos 65% desde meados de 2021. Isso é muito preocupante e indica uma corrosão acentuada da renda do trabalhador”, pontua.

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Cesta básica consome 65% do salário mínimo desde 2021, aponta Daniela Sandi, do Dieese

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O economista Guilherme Moreira, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), chama atenção para o avanço dos preços desde o início da pandemia de covid-19, em 2020. O grupo Alimentação, de acordo com ele, é o que mais irá contribuir para a inflação geral neste ano.

“Não vejo alívio no curto prazo. Nossa expectativa é de alta de 1% ao mês para alimentos e, nesse ritmo, não me surpreenderia se a inflação do grupo ficasse beirando os 10%. Em cima disso, com quase 30% acumulados desde 2020, estamos falando de, em três anos, cerca de 40% de inflação de alimentos. Vai virar um problema social grave”, prevê.

Mensalmente, a Fipe divulga o IPC FX (Índice de Preços ao Consumidor por Faixa de Renda), medido na cidade de São Paulo. Os dados mais recentes mostram que, em março, a inflação de alimentos foi de 2% para famílias que ganham mais de oito salários mínimos (mais de R$ 9.696,00 por mês). Para as famílias que ganham entre um e três salários (entre R$ 1.212,00 e R$ 3.636,00), o índice foi de 2,66%. E na faixa intermediária, entre três e oito mínimos (R$ 3.636,00 a R$ 9.696,00), a inflação de alimentos foi de 2,32%.

Foto: Fipe/ Divulgação

Moreira, economista da Fipe, afirma que acúmulo de 40% na inflação dos alimentos sinaliza crise social grave

Foto: Fipe/ Divulgação

A baixa renda, que concentra mais da metade da força de trabalho brasileira, também é mais impactada porque os alimentos têm um peso maior no orçamento total. A fatia da alimentação nos gastos da faixa de um a três mínimos, conforme Moreira, é de 28,8%. No caso das famílias que ganham mais de oito salários, o percentual é de 17,6%.

“Nas famílias de baixa renda, há um peso muito grande de alimentação, transportes e habitação”, diz o economista. Para ele, quem está na faixa de renda maior consegue remanejar despesas ou reduzir gastos supérfluos. É possível andar menos de carro, se a gasolina está mais cara. Mas, questiona Moreira, que margem de redução as famílias de baixa renda têm?

Produtos supérfluos

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“De repente, estava tudo mais caro”, surpreende-se Jessof, que há 30 anos fornece queijos e embutidos para feirantes

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Pior é a vida de quem comercializa produtos não essenciais. O feirante Marcos Jessof, que há 30 anos negocia queijos e embutidos na maioria das feiras livres de Porto Alegre, informa que sua matéria-prima subiu 50% nas últimas semanas. “Foi em menos de um mês. De repente, estava tudo mais caro. E agora nem estão entregando mais porque avisaram que vai subir de novo”, lamenta o comerciante.

A explicação, dessa vez, está no preço do diesel: como o produto vem da cidade de Três de Maio, a 470 quilômetros de Porto Alegre, o frete impacta fortemente os custos do feirante. Como se trata de um produto supérfluo, ele não tem como repassar o aumento de forma integral a seus clientes.

Jessof aplicou um aumento linear de 20% nas suas mercadorias, mas, ainda assim, o consumo, segundo ele, caiu por volta de 30%. “Mesmo diminuindo o lucro, a venda caiu muito. O jeito agora é reduzir as despesas da banca, diminuir funcionários e cortar as despesas em casa”, avisa.

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Suco de laranja que Elisângela vende na feira aumentou mais de 80% em um mês

Foto: Igor Sperotto

Outra que sofre no bolso, de comerciante e consumidora, é a dona Elisângela Schinoff. Há cinco anos, ela vende pastéis e massas frescas na sua banca, além de suco de laranja e caldo de cana. Um mês atrás, teve de aumentar em 15% o preço do pastel devido à elevação no custo da carne moída, da farinha, do queijo e dos ovos.

“Aqui é tudo na ponta do lápis, uma ginástica para ganhar um pouco que seja, sem diminuir a qualidade do produto. Não posso aumentar muito porque, senão, o consumidor desaparece. Mas também não posso pagar para trabalhar”, argumenta. Ela conta que já cortou gastos domésticos para reduzir o impacto e planeja diminuir a quantidade de feiras, para gastar menos.

No caso do suco de laranja, a situação é mais grave ainda: a caixa da fruta, que custava R$ 25,00 em fevereiro, saltou para R$ 45,00 em março. Dona Elisângela diz que o preço da garrafa de dois litros do produto, muito procurado pelos clientes, está no limite. “Se aumentar mais, eles nem vêm à banca. E se não vêm, como é que vou vender as outras mercadorias?”, indaga.

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