GERAL

Crônica de um desastre anunciado

Rosa Maria Torres / Publicado em 21 de outubro de 2001

Porto Alegre sediará, de 24 a 27 de outubro, o Fórum Mundial de Educação. O evento pretende discutir os caminhos e alternativas para que todas as pessoas tenham acesso à educação e, fundamentalmente, à dignidade de ser cidadão. A expectativa de público é de 15 mil pessoas provenientes de várias partes do mundo. Publicamos nesta edição uma crônica de uma das mais reconhecidas educadoras, a equatoriana Rosa María Torres, que estará presente no Fórum Mundial de Educação. Essa crônica foi escrita há exatamente uma década e publicada no dia 4 de agosto de 1991 na coluna semanal sobre educação, que a educadora manteve durante oito anos (1990-1998), no suplemento dominical Familia, do jornal El Comercio, de Quito.

“Naquele tempo, o mundo era outro. E a educação, também. Apenas começavam a perfilar-se os processos de reforma educativa que se estenderiam, como um dominó e com componentes similares, por esta região e por todo o mundo. O computador estava ao alcance de pouquíssimos e não existiam nem o correio eletrônico, nem a Internet. Ninguém poderia, naquele instante, ter suspeitado da grandeza das mudanças que teríamos oportunidade de viver na década seguinte, a que passou, assim como nos é impossível antecipar o que nos espera o futuro nos próximos dez, 15 anos. Não obstante, há uma década de distância, esta Crônica de um desastre anunciado tem uma atualidade que espanta. Hoje, muito mais do que nunca, estamos sendo chamados a evitar este desastre”.

 

Ano 2010. O sistema educativo entrou em definitiva decomposição. A universidade chegou ao fundo do poço faz pouco tempo, assim como o próprio país. A infra-estrutura e a obsoleta tecnologia escolares caem em pedaços. Os professores são uma classe a caminho da extinção. A maioria dos transtornos dos jovens que vínhamos observando crescer nos últimos anos – a delinqüência, o suicídio, as gangues escolares, a aparição do grupo “Antiescola”, etc – , são conseqüências diretas do drama educacional.

Crianças, jovens, profissionais esqueceram-se de ler. As bibliotecas, cheias de livros, porém vazias de pessoas converteram-se virtualmente em museus, para lembrar-nos de que, algum dia, também neste país, houve leitores. Estudos recentes revelam-nos que são alarmantes os índices de analfabetismo funcional o qual tem tomado conta de todos os níveis do sistema educativo e da própria sociedade.

Começa a se tornar visível o desmembramento e até o êxodo de famílias inteiras, com disponibilidade de recursos financeiros ou não, que procuram no exterior a salvação de seus filhos e a esperança de uma educação melhor. Somente uma elite privilegiada pode ter acesso as poucas instituições educativas as quais têm conseguido manter certos padrões de qualidade e de sintonia com os novos tempos: somente nessas instituições, na realidade, têm-se implantado circuitos de vídeo e pacotes didáticos atualizados, esses que hoje são obtidos com facilidade em qualquer supermercado de um país desenvolvido. A maioria da população, condenada ao atraso e ao subdesenvolvimento crônicos, continua a aprender por meio de conteúdos, métodos e técnicas que pertencem à outra época da humanidade, a outro século.

Estamos aqui, então, afundados neste caminho sem regresso, do qual levaremos gerações inteiras para nos recuperamos. Como chegamos a isso?

Falta de vontade política para resolver o problema da educação, em meio à fragilidade e à perda de legitimidade das classes dirigentes, da apatia e cepticismo da sociedade. Miopia e imediatismo onde eram requeridas visões estratégicas e de longo prazo. Prioridades políticas e cálculos eleitoreiros impostos a qualquer racionalidade técnica. Reformas, onde eram necessárias mudanças radicais. Remendos, em lugar de soluções integrais. Falta de consciência e negligência, enfim, frente à gravidade, profundidade e urgência desta situação, frente a nosso destino como país e como povo.

A “crise da educação” passou rapidamente a incorporar-se à vida nacional como mais um problema – dentre tantos – a incorporar-se à cultura, à retórica, ao cotidiano. Frente ao apelo da crise, continuou-se a remexer nos problemas e nos diagnósticos, protelando-se os prazos da ação, chegando-se a confundir discurso com prática, projetos com programas, documentos com realizações. Proliferaram as conferências nacionais e internacionais sobre educação, as declarações conjuntas, os acordos. Toda uma burocracia nacional e internacional começou a viver da “crise da educação”, incluindo, em primeiro lugar, os bancos estrangeiros sempre dispostos a conceder-nos empréstimos milionários para a doença e logo para o remédio.

Continuou-se a ver a educação como um mundo fechado e auto-suficiente, monopólio de educadores, pedagogos, professores, negando-se a multidisciplinariedade e a intersetorialidade da problemática educativa, impossível de entender e muito menos de resolver fora do aspecto econômico, social, político, cultural, à margem de profundas mudanças em todas as esferas.

Continuou-se a olhar a educação como um assunto do Estado, do governo e de um ministério particular e não como um problema e uma solução de todos. Junto a uma maioria sem consciência e conformista, os conscientes limitaram-se a queixar-se a portas fechadas, a criticar sem ter propostas, a exigir sem arregaçar as mangas. O novo governo culpou o anterior; os debaixo culparam os de cima; os práticos, os teóricos; os planejadores, os executores; os administradores, os professores; os professores, os estudantes; os pais, os professores. Ninguém quis assumir a sua parte de responsabilidade, seu compromisso de contribuir.

Seguiu-se privilegiando a quantidade sobre a qualidade, assim como o investimento em coisas e não em pessoas primeiramente. O fato é que melhorar as condições de vida, de ensino ou de aprendizagem das pessoas, investir em seu desenvolvimento e em sua formação não têm resultados imediatos, transparentes, facilmente palpáveis. As coisas, ao contrário, são tangíveis, concretas, contáveis, passíveis de serem fotografadas para a imprensa, rotuláveis para a história. Nas pessoas não é possível colocar placas na testa, nem nomes próprios, nem bandeiras, nem logotipos.

Continuou-se a acreditar que a formação e a qualificação são luxos preteríveis, assunto de outros, solicitação requerida pelos debaixo. Não se quis entender o círculo vicioso que se reproduz entre a má qualidade do aluno e a má qualidade do professor, entre a má qualidade do sistema educativo e a má qualidade dos profissionais, dos políticos, dos dirigentes, das lideranças. Não se quis enxergar que o problema educativo afeta tanto as bases como as cúpulas, os analfabetos e os doutores, todos necessitados de formação contínua, de aperfeiçoamento e especialização. Desta maneira, foi se institucionalizando a mediocridade e desvalorizando-se a qualidade técnica e a excelência acadêmica, do mesmo modo que foram desperdiçadas bolsas e cursos no estrangeiro, assim como continuaram a ser preenchidos altos cargos técnicos com critérios de amizade, apadrinhamentos e favores políticos.

Não se levou a sério a crítica situação do magistério e a urgência de respostas radicais e integrais para elevar tanto seu nível de vida como seu nível docente. A formação docente tornou-se cada vez mais obsoleta e rígida. Demasiadamente tarde, tomaram-se medidas e estímulos previstos para recrutar os melhores jovens, os melhores alunos para a carreira docente, quando o desgaste da profissão havia atingido limites irremovíveis. Hoje é uma geração de velhos que povoa nossas escolas; os jovens, os bons estudantes, já não têm mais interesse em se tornar professores. E pode-se bem compreender por que…

Acreditou-se que a reforma educativa era um documento, uma tarefa de cúpulas e de escritório, um quebra-cabeça que poderia ser montado por peças e em qualquer ordem, deixando-se para o final, para algum dia, a peça chave e mais complexa: a reforma curricular, a revisão dos planos de estudo, dos textos, dos métodos. Então, assim, sem debate público, sem participação social, sem uma estratégia nacional de informação e comunicação, sem que ninguém soubesse finalmente que se estava fazendo uma reforma, a “reforma” foi ficando no papel, em projetos-piloto, eternamente pilotos, em pequenos retoques como substitutos à autêntica e profunda reforma curricular que era necessária. Hoje a fenda é intransponível: nossos alunos seguem aprendendo a fazer fogo esfregando os pauzinhos, enquanto, no mundo real, o conhecimento, a ciência e a tecnologia têm atingido níveis inimagináveis de avanço e sofisticação.

Cada novo governo denunciou o que o anterior tinha feito de errado e decidiu começar tudo de novo: novas caras, novos colaboradores, novos diagnósticos, novos projetos, novos empréstimos, novas prioridades. E assim fomos passando da prioridade na educação básica à ênfase ao ensino médio, ao jardim de infância, à pré-escola, à técnica, ao ensino superior.

Dessa maneira, fomos passando de mãos em mãos, de projetos, de personagens, sem concluir nada, sem consolidar nada, à exceção de nossa fenda tecnológica, nossa dependência e nosso endividamento externo.

2000 apareceu de repente como um número mágico para afinar a pontaria, acreditando-se nele como algo distante, estratégico, decisório. Mas o ano
2000 encontrou-nos sem as metas anunciadas atingidas, sem novas metas, sem novos números mágicos. Daqui de 2010 pode-se entrever o imediatismo com que se planejou e atuou, a conjuntura atropelando-nos, segurando a mangueira do bombeiro que apaga fogos em todas as partes sem se dar conta do incêndio que vai deixando atrás de si. Política educativa? Planificação estratégica? Grandes consensos nacionais? Todos falaram sobre isso.

E assim chegamos a este ano de 2010 em que muitos pais de ontem agora somos avós, perplexos e impotentes olhando os netos crescerem em meio ao obscurantismo educativo mais tenebroso que se possa imaginar. Queríamos salvar nossos filhos, mas nem sequer pudemos salvar nossos netos. Quem são os responsáveis por esse desastre amplamente anunciado? Quem, nesta fatal corrente de governos e governantes, políticos e ministros, educadores, jornalistas, professores, pais de família, alunos, não foi capaz de antever a dimensão do desastre e fazer alguma coisa a tempo de evitá-lo.

Que nossos netos, as novas gerações de crianças e jovens que estréiam este novo milênio, perdoem-nos pela miopia, irresponsabilidade e negligência.

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