GERAL

Pequenas histórias de autoexílio

A expatriação somou mais de 24 mil pedidos de saída definitiva à Receita Federal nos oito primeiros meses do ano passado, superando os 23.450 de todo 2018. De 2013 a 2019, a alta chegou aos 125%
Por Tom Belmonte / Publicado em 18 de dezembro de 2020
2,5 milhões de brasileiros vivem fora do Brasil. Legal e ilegalmente. Expatriação que somou mais de 24 mil pedidos de saída definitiva à Receita Federal nos oito primeiros meses do ano passado

Foto: Igor Sperotto

2,5 milhões de brasileiros vivem fora do Brasil. Legal e ilegalmente. Expatriação que somou mais de 24 mil pedidos de saída definitiva à Receita Federal nos oito primeiros meses do ano passado

Foto: Igor Sperotto

Nem mesmo a pandemia mundial faz brasileiros que vivem no exterior pensarem em voltar ao país. O Ministério das Relações Exteriores estima que 2,5 milhões de brasileiros vivam fora do Brasil. Legal e ilegalmente. Expatriação que somou mais de 24 mil pedidos de saída definitiva à Receita Federal nos oito primeiros meses do ano passado, superando os 23.450 de todo 2018. De 2013 a 2019, a alta chegou aos 125%. E quem deixa hoje a “terra brasilis” são profissionais graduados e pós-graduados, que não enxergam mais no país o porto seguro para a materialização de uma vida melhor.

O Extra Classe foi conversar com alguns desses compatriotas e ouvir deles razões e opiniões sobre essa experiência. Em especial, neste momento em que a pandemia planetária já matou mais de 1, 3 milhão e obriga ao confinamento, alimentando incertezas, testando convicções e podendo fazer da distância física do Brasil e dos familiares um sério caso de saúde. Certeza mesmo nos relatos trazidos de cinco continentes é de que a imagem verde e amarela no exterior nunca esteve tão desgastada como agora, no governo Jair Bolsonaro.

 A motivação para migrar e ficar lá fora

Nobel de Literatura de 1998, o português José Saramago sintetizou em uma frase os dilemas migratórios. “É necessário sair da ilha para ver a ilha”, disse. Ônus e bônus dessa escolha explicados pela professora de Sociologia da Feevale, Sueli Cabral. “Antes de pensar em qualidade de vida, que é muito subjetivo, o que se busca é uma esperança, um sonho idealizado para sua vida e seus laços sociais. Nem todo mundo que sai do Brasil sai por dinheiro ou insegurança”, esclarece. Motivação em cortar o cordão umbilical da fronteira pátria que perpassa o individual. “O que também se quer é a felicidade de uma vida coletiva, uma vida em comunidade com mais sentido”, garante ela.

A análise é corroborada pela curitibana Cláudia Arezio Ricardo, 43 anos. Solteira, mas com um filho de quatro anos, em 2014 ela deixou o Brasil rumo a Lisboa. “Buscava reconhecimento, segurança profissional e mais tempo com o meu filho Héctor”, conta a engenheira de Computação, hoje casada com um português e com um novo filho, Miguel, de dois anos. Mas, nem tudo é um fado na vida de Cláudia. “Confesso que é um dos lugares que mais senti a distinção em ser brasileiro. Quem vinha pra cá há 20 anos era para serviço primário, restaurantes, entregas. Quem vem agora tem formação, vem para fazer curso superior. O que cria hostilidades”, afirma ela, à frente de uma equipe multiétnica que atua para uma gigante das telecomunicações mundiais.

Mestre em Terapia Ocupacional (TO), Janielle Jondral, 44 anos, está fora do Brasil há 15. Reside na australiana Sidney, país com pouco mais de 27 mil casos e 900 óbitos pela covid-19 desde março. “Eu queria mudar o meu estilo de vida e dar para as minhas filhas mais segurança e oportunidades”, explica. Mudança que também permitiu a cearense nascida em Fortaleza formar-se em Contabilidade com ênfase em Comércio Exterior e concretizar o mestrado em TO. “A única saudade do Brasil é dos familiares e de falar português”, assegura. E arremata: “A Austrália dá valor para bons profissionais e eu sempre tive as portas abertas. A dica pra quem está aqui ou pensa em vir é não se acomodar em empregos simples, se qualificar”, orienta Janielle.

Na pandemia, melhor lá do que aqui

Fernanda Meyer, Jersey City (EUA)

Foto: Arquivo Pessoal

Fernanda Meyer, Jersey City (EUA)

Foto: Arquivo Pessoal

A escolha por saber do Brasil apenas por familiares e no noticiário foi feita há mais de uma década pela arquiteta Fernanda Meyer, 45 anos. Após casar-se com um norte-americano, de quem divorciou-se já nos Estados Unidos, mora em Jersey City, cidade vizinha à Nova Iorque. Apesar da pele loira e do perfil físico similar aos locais, a gaúcha de Guaíba labutou em diversos escritórios de arquitetura, onde enfrentou olhares tortos e humores secos pelo sotaque. Hoje, com o confinamento e os 254 mil mortos já computados por lá, aposta as fichas no home office. Dá aulas de design para acadêmicos da sua profissão e leciona o português. “É pensar positivo, cuidar da tua cabeça. Minha família no Brasil está bem, eu tenho saúde. Estou me reinventando e não penso em voltar, mesmo que sempre vá me sentir estrangeira”, comenta. Sobre os efeitos da pandemia no “american way of life”, Fernanda é didática. “O que pega aqui é que não existe SUS e você pode sair de um hospital com uma conta de um milhão de dólares. Então essa é a preocupação e o medo de muita gente”, diz. Pressão que cresceu com a derrota de Donald Trump nas recentes eleições presidenciais. “O clima é de permanente confronto e que só vai terminar na posse do Biden. Isso pesa muito pra todos, ainda mais neste momento”, afirma.

Distante 6 mil quilômetros de Fernanda, mais precisamente em Barcelona, o jornalista Álvaro Andrade, 35 anos, relata que chegou na Espanha em fevereiro deste ano. Um mês depois o confinamento foi decretado e ele viu tudo fechar, inclusive as possíveis portas profissionais. “Teve um período de confinamento geral, flexibilizou no verão, daí veio a segunda onda e o governo ficou mais cauteloso, pois a economia foi muito afetada”, ilustra. Álvaro, entretanto, não reclama da sorte. Se vira como entregador de comida, editor de vídeos e colaborador do portal eletrônico Agora Europa, que reúne jornalistas brasileiros que zarparam para o velho continente em busca de oportunidades. Otimista, o gaúcho de Encantado acredita no pluralismo do lugar que escolheu para viver. “Barcelona é uma cidade muita aberta e diversa, tem um governo progressista e muitos imigrantes. Gente da Itália, do norte da África, árabes. Vai ter caso de xenofobia em toda parte, mas eu vejo muito mais latinos se estabelecendo com seu negócio, tocando a vida. É claro que o emprego especializado vai ser sempre mais competitivo”, analisa.

Horizonte de dúvidas e confiança

Gustavo Suyhama, Toyohashi (Japão

Foto: Arquivo Pessoal

Gustavo Suyhama, Toyohashi (Japão

Foto: Arquivo Pessoal

Vivendo em Toyohashi, cidade de 270 mil habitantes no sudeste do Japão, Gustavo Suyhama, 26 anos, trabalha numa das maiores fábricas de carros e motos do país. E que não parou de funcionar na pandemia, a partir da adoção de rígidos protocolos preventivos e o pagamento mensal pelo governo asiático de 60 mil Iens (pouco mais de R$ 3 mil) aos infectados da covid-19. Paranaense de Paranaguá, o jovem deixou o Brasil no início do governo Bolsonaro, após dois anos desempregado. Um misto de dúvida e confiança o percorre ao falar do futuro. “Preocupação eu tenho, ainda mais que não tem vacina. Tive medo no começo da pandemia, liguei pros meus pais, pois aqui estou mais perto da fonte do vírus. Mas não penso em voltar ao Brasil, muito pelo contrário”, destaca. Além do maior preparo nipônico nos protocolos de saúde, também pesa na decisão em ficar as notícias tupiniquins. “Os japoneses enxergam o Brasil não de uma forma pejorativa, mas cética. É um olhar racional de que no Brasil não há planejamento e gestão do governo para enfrentar essa e outras situações, como a dos desastres ambientais”, ressalta.

O ceticismo asiático ao cenário verde-amarelo transforma-se em humor ácido e debochado na Inglaterra. Quem garante é o músico Felipe Drago, 50 anos, há 12 vivendo em Londres, onde dirige uma escola de formação de bateristas. “Quando o Brasil aparece no noticiário aqui é por desgraças ambientais ou sociais ou por um algum palavrão do Bolsonaro à mídia. Eles tratam o Bolsonaro aqui como piada. O que também já é cultural, pois são um povo autocentrado e com a mesma mentalidade de mil anos atrás”, satiriza. Natural de Porto Alegre e tendo residido ainda na norte-americana Los Angeles de 1994 a 1998, Felipe troca de humor ao falar da pandemia e seus efeitos planetários. “Para mim é o novo 11 de Setembro. Antes do 11 de Setembro a vida era mais leve. Você viajava, via menos tensão nos aeroportos e grandes cidades. Depois do 11 veio a paranoia e a pandemia agora já mudou tudo, veio pra ficar”, opina.

O efeito Bolsonaro

Renato Vidal, Estocolmo, Suécia

Foto: Arquivo Pessoal

Renato Vidal, Estocolmo, Suécia

Foto: Arquivo Pessoal

A constatação de que o Brasil transpira um momento político, sanitário e ambiental sombrio é um fator inibidor no pensamento de um possível retorno dos “estrangeiros”. Há três anos com o marido e os filhos na alemã Hockenhein, a jornalista gaúcha Alice Adams, 37 anos, resume a sua insatisfação. “Não há respeito pela pandemia. O brasileiro ainda não entendeu a dimensão do que isso pode alcançar, não sabemos com o que estamos lidando. Há um nítido despreparo do governo e do presidente, que também não ajuda nessa consciência pública porque desacredita o vírus o tempo todo”, lamenta. Nativa da gaúcha Novo Hamburgo, Alice dá aulas de português para alemães. Sessões onde é instigada a responder sobre Bolsonaro. “Os alemães têm muita vergonha do seu passado e não conseguem entender por que retrocedemos no comando. Ainda fazem piada do 7 a 1, mas mais do Bolsonaro”, garante ela, que descarta voltar. “Sinto falta da família e dos amigos, mas não do Brasil. Creio que fizemos a escolha certa, por mais qualidade de vida aos nossos filhos”, frisa.

Há pouco mais de mil quilômetros de Alice está o administrador Renato Vidal, 32 anos, há sete anos em Estocolmo, na Suécia. Nação que adotou protocolos preventivos mais brandos com a covid-19, mas numa cifra que ultrapassa os 6 mil óbitos. Renato revela decepção quando busca notícias da terra natal. “Entro em sites brasileiros, mas quando chegam informes na mídia sueca são por algo de dimensão maior, como os incêndios na Amazônia ou declarações do Bolsonaro. Ele é percebido pelos suecos como um retrocesso, até porque em dois anos não mostrou ser um líder”, descreve o gaúcho de Porto Alegre, que no país escandinavo trabalha com marketing digital.

Vista do saguão do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo (à esquerda). Alice Adams com sua família (embaixo e à direita); Isabela Vargas, Santiago (Chile) de camisa branca acima, durante protesto; vista do saguão do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo (à esquerda)

Fotos: Igor Speerotto (à esq.) / Arquivo Pessoal (demais)

Vista do saguão do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo (à esquerda). Alice Adams com sua família (embaixo e à direita); Isabela Vargas, Santiago (Chile) de camisa branca acima, durante protesto; vista do saguão do Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo (à esquerda)

Fotos: Igor Speerotto (à esq.) / Arquivo Pessoal (demais)

A crítica ao atual mandatário brazuca é mais aguda no altiplano chileno de Santiago, onde há oito anos habita outra jornalista brasileira, Isabela Vargas, 44 anos. “Os chilenos, que são um povo conservador, consideram Bolsonaro um bufão. O próprio Piñera (Sebastián, presidente chileno) se descolou da figura do Bolsonaro. Por estarem recém saindo de um plebiscito, de uma mudança constitucional que foi dura, pois remetia à ditadura, eles não compreendem como os brasileiros permitiram a ascensão de Bolsonaro”, contextualiza. Desde março em teletrabalho para uma agência de conteúdo digital, Isabela tem saudade dos familiares em Porto Alegre, mas se desilude com o momento brasileiro. “É sempre muito negativo o que vem do Brasil. Mesmo que o governo não tenha responsabilidade, espero que as pessoas tenham. É um vírus que se espalha em sociedades individualistas. Mais do que os governos cuidarem da gente é a gente que deve cuidar um do outro”, pontua.

Relatos que se bifurcam à constatação da socióloga Sueli Cabral quanto ao sonho migratório. “Mais do que a fuga, o brasileiro no estrangeiro busca o sonho da coisa pública, dos mecanismos de proteção. Da educação, saúde e segurança que foram perdidos. Perdemos isso porque nossa democracia não está concretizada. E aí não busca mais aqui, mas lá fora”, resume ela.

 

 

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