AMBIENTE

Megaprojetos de mineração rondam o Pampa

Mais de 5 mil requerimentos para pesquisa em solo gaúcho e 166 projetos em andamento podem transformar o estado no terceiro maior polo minerador do país
Por Flávio Ilha / Publicado em 21 de setembro de 2020
Mina na periferia de Butiá, abandonada pela Copelmi, a maior mineradora privada de carvão do país que faz lobby pela Mina Guaíba

Foto: Igor Sperotto

Mina na periferia de Butiá, abandonada pela Copelmi, a maior mineradora privada de carvão do país que faz lobby pela Mina Guaíba

Foto: Igor Sperotto

O subsolo brasileiro, rico em minerais largamente demandados pelo mundo afora, está sob pesado ataque. E o Rio Grande do Sul é, atualmente, a nova fronteira dessa batalha no Brasil: são mais de 5 mil requerimentos para pesquisa em solo gaúcho, segundo dados do Comitê de Combate à Megamineração, e 166 projetos em andamento – a maioria deles no Pampa gaúcho. Caso avancem, o estado se tornará o terceiro maior polo minerador do país, mudando drasticamente sua vocação econômica. O benefício, entretanto, será para poucos: o capital internacional será o verdadeiro beneficiado com as políticas extrativistas e neocoloniais desses empreendimentos, já que as commodities minerais costumam deixar um rastro de destruição por onde passam – além de exportarem empregos e capital para os locais onde serão beneficiadas

Três dos quatro maiores projetos de mineração que estão em fase mais adiantada no Rio Grande do Sul situam-se no Pampa, que tem antecedentes históricos de exploração mineral. Um dos seis biomas inscritos no território brasileiro, o Pampa tem uma relevância extraordinária para o Rio Grande do Sul, onde abrange 63% de todo o território. Dono da uma fauna e de uma flora que, em muitos casos, lhe são exclusivas, o bioma vem sendo exaurido paulatinamente pela monocultura – notadamente de eucalipto, para alimentar as indústrias papeleiras, e de soja. Agora, a mineração em larga escala representa uma nova ameaça.

O maior desses projetos se localiza na região de Caçapava do Sul, onde a Nexa Resources S/A (com participação da Votorantim) pretende explorar cobre, chumbo e zinco às margens do rio Camaquã. A região reúne um dos mais valiosos sítios geológicos do país.

Outro, de menor monta, mas nem por isso menos agressivo, está na confluência dos municípios de Lavras do Sul e de Dom Pedrito, num ambiente de paisagens amplas e costumes tradicionais – ali é o coração do habitat do gaúcho tradicional, com seu modo de vida integrado à natureza e aspectos culturais em franco desaparecimento. Trata-se do empreendimento Fosfato Três Estradas, da Aguia Resources Ltda. O projeto pretende extrair 500 mil toneladas de fosfato por ano do Pampa gaúcho.

Além disso, há o projeto Atlântico Sul, da Rio Grande Mineração que pretende extrair umenita, rutilo, ziconita e titânio de vastas regiões de banhados e reservas naturais de São José do Norte num empreendimento já com licenciamento prévio concedido pelo órgão ambiental do estado. Pelo menos duas características comuns unem os três projetos de exploração: todos têm alto potencial de danificar os ambientes naturais à sua volta e todos são financiados pelo capital transnacional.

Capital transnacional

Projeto da Rio Grande Mineradora já obteve licença para extrair 325 mil toneladas de minério junto à Lagoa do Peixe, em São José do Norte

Foto: Luiz Gautério/ Divulgação

Projeto da Rio Grande Mineradora já obteve licença para extrair 325 mil toneladas de minério junto à Lagoa do Peixe, em São José do Norte

Foto: Luiz Gautério/ Divulgação

Não é um mero acaso. O professor Sérgio Botton Barcellos, dos programas de pós-graduação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e da Fundação Universidade de Rio Grande (Furg), é taxativo ao afirmar que a estratégia de exploração está traçada no Plano Nacional de Mineração 2030: investimentos da ordem de US$ 270 bilhões, a imensa maioria de origem privada, destinados prioritariamente à região Amazônica. O plano foi traçado em 2011, no primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff.

“A meta para a ampliação da balança comercial do setor é passar de 1% para 12% do PIB até 2030, com investimentos maciços do capital externo. Ou seja, estamos falando basicamente de extração com fins de comércio exterior”, explica o especialista. Em 2018, o superávit da balança comercial do setor chegou a US$ 23,4 bilhões. A mineração já representa cerca de 25% de toda a exportação brasileira.

No Rio Grande do Sul, a estratégia é sustentada pelo Plano Estadual de Mineração. Elaborado no governo de José Ivo Sartori (MDB), o plano, segundo Botton, “estabeleceu um aparato normativo para a exploração sem consultar a sociedade”. Junto ao projeto que prevê a exploração de carvão em Eldorado do Sul, a pouco mais de 20 quilômetros do centro de Porto Alegre, o resultado da exploração intensiva de minérios foi um acirramento dos conflitos na base social de implantação dos empreendimentos.

As denúncias são eloquentes: em Lavras do Sul, a única audiência pública para debater a instalação do empreendimento, realizada em maio de 2019, está sendo contestada na Justiça devido a supostas irregularidades no edital de convocação. O projeto Fosfato Três Estradas, da Aguia Resources Ltda, obteve licença prévia (LP) em outubro de 2019.

Violação dos direitos humanos

Em dezembro, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos emitiu uma recomendação para que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) e o Ministério Público Federal (MPF) tomem providências “para cessar imediatamente as violações aos direitos humanos, à informação e à participação” no caso do licenciamento ambiental. Recomendou também a anulação da LP e a adoção de medidas, pelo MPF, que apurem “as práticas ilícitas de captura de agentes públicos permanentes e temporários, o desvio de função de agentes políticos e desvio de finalidade de atos do poder público”.

Na segunda semana de agosto, a Aguia obteve uma autorização judicial para pesquisar a área privada de um produtor da região – a empresa move três processos semelhantes contra proprietários que se recusam a autorizar pesquisa em seus campos. Em setembro, o Tribunal de Justiça do Estado suspendeu a autorização dada pelo juiz de primeira instância e proibiu os técnicos de entrarem nas propriedades. “A empresa vinha promovendo o ingresso de pessoas não identificadas em diversos imóveis que não estavam incluídos na ação e outros que sequer pertencem às famílias acionadas judicialmente, causando grande insegurança e perturbação entre as propriedades rurais vizinhas”, diz o advogado Marcelo Mosmann, que representa os produtores locais.

A Aguia é uma empresa australiana que tem fortes ligações societárias com a canadense Forbes & Manhattan. As empresas canadenses de mineração, como Belo Sun e Kinross, são conhecidas no mundo todo pela sua agressividade exploratória, especialmente em terras protegidas, e já consideraram o atual governo brasileiro pro mining – ou seja, um aliado estratégico do negócio minerador.

Plano estadual de mineração estabeleceu um aparato normativo para a exploração sem consultar a sociedade, alerta Barcellos, da UFPel e Furg

Foto: Acervo Pessoal

Plano estadual de mineração estabeleceu
um aparato normativo para a exploração
sem consultar a sociedade, alerta
Barcellos, da UFPel e Furg

Foto: Acervo Pessoal

Em março deste ano, o secretário de Geologia e Mineração do Ministério das Minas e Energia, Alexandre Vidigal, foi ao Canadá garantir aos investidores locais que o governo promoverá “avanços regulatórios, legais e ambientais, que levarão a um cenário de investimentos mais atraente no setor”.

A implantação do Projeto Três Estradas faz parte dessa estratégia de abertura do país. Em prospecção desde meados de 2007, prevê extrair fosfato em uma Área Diretamente Afetada (ADA) de 943 hectares, dos quais 93% representam ambientes nativos (876 hectares) com previsão de intensa supressão vegetal. Além das pastagens naturais, cerca de 4 mil famílias de pequenos agricultores produzem regularmente na região.

Bom para o agronegócio

O fosfato não é um mineral valioso, mas sua utilização como matéria-prima para a produção de fertilizantes o torna cobiçado – o Brasil importa cerca de 75% do volume necessário para manter sua produção agrícola. A exploração do minério, com o consequente beneficiamento local, tem no agronegócio brasileiro um forte aliado.

Devido à demanda pelo produto, a taxa interna de retorno do projeto é alta, da ordem de 25% ao ano, e com um VPL (valor presente líquido, que é o valor do investimento no futuro) de US$ 273 milhões (cerca de R$ 1,5 bilhão). O tempo de retorno do investimento é baixo, de pouco mais de três anos para uma exploração prevista de 15 anos.

Se o custo operacional é baixo, o dano ambiental promete ser severo. Para se ter uma ideia, segundo relatório preliminar da empresa, serão produzidas 2,4 toneladas de resíduos estéreis (sólidos) para cada tonelada de minério extraída, o que representa, em 15 anos de exploração, um contingente de 18 milhões de toneladas de rejeitos. Quase duas toneladas para cada habitante do estado.

O relatório de impacto ao meio ambiente (Rima) destaca ainda que, de 37 indicadores avaliados para a etapa de implantação do empreendimento, 24 têm impacto alto (14) ou muito alto (10) no ambiente. Alguns dados: a cava da mina, a céu aberto, terá 280 metros de profundidade, o que equivale a um edifício de 90 andares.

As duas barragens de rejeitos líquidos previstas no projeto, além disso, terão uma parede final de 32 metros de altura e mais de um quilômetro de extensão, com acúmulo de 23 milhões de metros cúbicos de água – duas vezes maior que a barragem de Brumadinho, em Minas Gerais. Tudo isso nas cabeceiras do rio Tacuarembó, um importante tributário da bacia do rio Santa Maria.

“Toda mineração de metais é perigosa, independentemente da escala. E uma coisa é extrair para a economia local, outra é exportar. O país não ganha nada com isso, pois as empresas vendem sem valor agregado, realizam todo o lucro nas suas sedes e deixam para trás o custo ambiental. As companhias canadenses são conhecidas no mundo todo como piratas”, alerta o presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Francisco Milanez.

Lucro para o exterior

Assembleia Popular:: a mineração ameaça a produção de alimentos

Foto: Flávio Ilha

Assembleia Popular:: a mineração ameaça a produção de alimentos

Foto: Flávio Ilha

Em São José do Norte, o projeto Atlântico Sul, que prevê a extração de metais pesados em uma área lindeira à Lagoa do Peixe, também já obteve licença-prévia para a execução da primeira fase, batizada de Retiro.

São 11 poligonais aprovadas para exploração de 325 mil toneladas de minério por ano que, juntas, somam 10,5 mil hectares em uma região extremamente suscetível. O empreendimento prevê três fases.

“É um projeto com valor agregado baixo e que, em contrapartida, tem um potencial de contaminação hídrico muito alto. A região tem como característica um lençol freático muito alto, em alguns casos até aflorante, que torna a implantação de um projeto desse porte extremamente danosa”, avalia o oceanógrafo Caio Floriano dos Santos, pesquisador do Observatório dos Conflitos do Extremo Sul do Brasil.

O projeto é tocado pela Rio Grande Mineração (RGM), uma subsidiária da empresa mineradora Santa Elina, com sede em Mato Grosso.

Fundada em 1976, a empresa realizou uma operação para abertura de capital no Canadá em 1994 e, em 2003, abriu subsidiária nas Ilhas Virgens Britânicas, cujas ações são da canadense Vaaldiam – na prática, trata-se de um empreendedor transnacional de grande porte.

Produtos da agricultura familiar expostos durante manifestação de produtores

Foto: Marcela de Avellar Mascarello/ Divulgação

Produtos da agricultura familiar expostos durante manifestação de produtores

Foto: Marcela de Avellar Mascarello/ Divulgação

Em 2017, a gigante chinesa Lomon Billions se associou à RGM/Santa Elina para a exploração do projeto Atlântico Sul, cujo foco principal é, na verdade, o titânio. O mineral tem grande valor para a indústria bélica mundial, além de ser usado largamente em pigmentos industriais. Segundo o comunicado da companhia chinesa, o desenvolvimento financeiro da CRM permitirá “a compra de minério de titânio por preço inferior ao do mercado”.

A propalada geração de empregos se mostrou uma falácia. Ou, como diz Santos, uma fake news. Serão geradas cerca de 350 vagas de trabalho durante a fase de operação, boa parte delas a ser preenchida por técnicos altamente especializados vindos de fora do estado, e outras 1,5 mil na fase de implantação, que dura cerca de dois anos. Em Lavras do Sul, no projeto Três Estradas, a expectativa é de gerar entre 700 e 900 vagas na construção, mas apenas cem na fase de operação da mina.

O impacto tributário é outra decepção. Estimativa do Instituto de Justiça Fiscal aponta que a mina de carvão em Eldorado do Sul, o maior dos quatro empreendimentos já em fase de licença por parte do estado, deve gerar um incremento na arrecadação de ICMS de 0,2% ao ano, tomando como base a arrecadação de 2017. Em termos de impostos federais, segundo o auditor fiscal João Carlos Loebens, é possível até haver tributação negativa.

Mineração junto a Lagoa do Peixe tem alto potencial de contaminação hídrica, avalia Santos, do Observatório dos Conflitos do Extremo Sul

Foto: Igor Sperotto

Mineração junto a Lagoa do Peixe tem alto potencial de contaminação hídrica,
avalia Santos, do Observatório dos Conflitos do Extremo Sul

Foto: Igor Sperotto

“Se a produção se destinar à exportação, praticamente não incidirão tributos indiretos à atividade. E se os insumos para a produção vierem de outros estados, então há até garantia legal de compensação por parte do Rio Grande do Sul para as unidades de origem”, explica.

Os dados da Agência Nacional de Mineração referentes à arrecadação da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais), por outro lado, apontam que até maio o Rio Grande do Sul tinha direito a uma parcela de R$ 8,3 milhões da contribuição federal. Uma arrecadação irrisória para o tamanho do dano ambiental que a atividade provoca.

Membro do Instituto de Justiça Fiscal e do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia, Loebens é taxativo ao afirmar que a mineração em larga escala gera pobreza, poluição e concentração de renda nos países de onde as commodities são extraídas. A estratégia é simples: abrir subsidiárias em paraísos fiscais e concretizar a venda dos minérios desses mercados, onde o valor declarado é substancialmente inferior ao apurado no local de produção. Com isso, os altos lucros são mascarados – resultando em tributos pífios.

“Na prática, verifica-se que as mineradoras acumulam cada vez mais montanhas de dólares em lucros ao mesmo tempo em que causam, também, mais e mais tragédias humanas e ambientais. Junte a isso cidades inchadas, com precárias condições de infraestrutura, com falta de saneamento básico, poluição da água, empobrecimento e, em alguns casos, até trabalho infantil, e temos o perfil da atividade mineradora no Brasil”, resume Loebens.

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