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Chile: votação histórica sinaliza rejeição ao neoliberalismo

Para Andras Uthoff, economista e professor da Universidade do Chile, processo constituinte abre caminho para que o Estado reassuma a garantia dos direitos sociais e econômicos perdidos com as privatizações
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 30 de outubro de 2020
“No Chile, o neoliberalismo permeou até as políticas sociais, transformou cidadãos em consumidores com alternativas financeiras de acesso à educação, saúde, pensões, moradia, transporte”

Foto: Twitter/ Reprodução

“No Chile, o neoliberalismo permeou até as políticas sociais, transformou cidadãos em consumidores com alternativas financeiras de acesso à educação, saúde, pensões, moradia, transporte”

Foto: Twitter/ Reprodução

O plebiscito popular que enterrou de vez os últimos resquícios da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) ao aprovar a reforma da Constituição herdada do regime militar é uma síntese da rejeição popular ao neoliberalismo, ao governo e à classe política no Chile. Para o economista Andras Uthoff, após 30 anos de arrocho econômico e social e violação dos direitos humanos, essa decisão devolverá ao Estado o papel de garantir direitos econômicos e sociais. Uthoff foi fonte das principais páginas de economia do Brasil ao criticar o sistema de capitalização implantado pelos generais no lugar da previdência social e que foi o estopim das revoltas populares de outubro de 2019. Professor da Universidade do Chile, o economista foi conselheiro regional da OIT entre 1977 e 1990 e dirigiu a Divisão de Desenvolvimento Social da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina (Cepal) de 1990 a 2006. Nesta entrevista exclusiva ao Extra Classe, ele destaca a presença nas urnas, que considera a maior desde a redemocratização do país. “Os cidadãos esperam resultados e têm exigências muito específicas no que se refere a pensões, saúde, habitação, segurança cidadã, emprego e rendimento. Exigem uma maior proximidade entre a elite política e a cidadania”, ressalta.

Extra Classe – Mesmo em meio à pandemia o povo chileno foi com força às urnas, determinado a apagar o legado da ditadura. Essa leitura está correta?
Andras Uthoff – No plebiscito votaram 7 milhões 548 mil eleitores, o que corresponde a 50,81% de participação. Este é o maior desde a estreia do voto voluntário em 2012 e, de fato, surpreendeu por ter toda essa participação no meio da pandemia de Covid-19. O número total de votantes é o maior desde a volta à democracia, incluindo as eleições de 1989 a 2009, quando havia o voto obrigatório de quem se inscreveu no caderno eleitoral. Uma esmagadora maioria (78%) aprovou a ideia de redigir uma nova Constituição e uma maioria semelhante por meio de uma convenção constitucional sem a participação antecipada dos parlamentares atuais. Com efeito, é um voto contra a Constituição Pinochet e uma exigência de mudança no Chile, em particular para um modelo de desenvolvimento econômico mais inclusivo e uma denúncia contra o neoliberalismo aplicado no Chile. No entanto, a não aprovação da Comissão Mista é também uma crítica aos políticos e seus representantes e à sua incapacidade de realizar as reformas necessárias no Chile.

"Uma nova Constituição por si só não gera as mudanças necessárias. O que ela busca é um espaço maior para implementar essas políticas mais heterodoxas, necessárias para resolver esses problemas típicos da América Latina"

Foto: Marcelo Menna Barreto

“Uma nova Constituição por si só não gera as mudanças necessárias. O que ela busca é um espaço maior para implementar essas políticas mais heterodoxas, necessárias para resolver esses problemas típicos da América Latina”

Foto: Marcelo Menna Barreto

EC – Qual foi o legado da Constituição de bases neoliberais deixada em 1980 pelos militares que derrubaram do poder o presidente Salvador Allende?
Uthoff – A Constituição é um marco normativo que deve se traduzir em políticas concretas que permitam a conquista do desenvolvimento e a distribuição de seus frutos no país. No Chile, o neoliberalismo, infelizmente, permeou até as políticas sociais, transformando cidadãos com direitos em simples consumidores livres para escolher alternativas financeiras de acesso à educação, saúde, pensões, moradia, transporte. Esqueceram-se da desigualdade de oportunidades e recursos entre os cidadãos e deixaram a grande maioria, cerca de 80%, com acesso a serviços públicos como saúde e aposentadorias de má qualidade. Hoje, muitos não têm acesso a serviços de qualidade. E os que têm, estão altamente endividados e nem sempre satisfeitos com o oferecido. Aproximadamente 80% das pensões autofinanciadas, incluindo o subsídio do governo, estão abaixo do salário mínimo no Chile; a taxa de reposição é de 44% para homens e 23% para mulheres. Dada a precariedade do emprego, o aumento da expectativa de vida e a baixa rentabilidade dos recursos, as perspectivas devem se agravar. Por sua vez, mais de 80% da população não tem acesso a planos privados de saúde. As famílias estão endividadas com o crédito garantido pelo Estado por uma formação universitária que não gera os rendimentos esperados. Essa situação é o que se refletiu na eclosão social de outubro de 2019, onde a grande maioria da população saiu às ruas para protestar.

EC – A partir da experiência chilena, o que o senhor diria para o presidente brasileiro e seu ministro da Economia que insistem em implantar conceitos neoliberais que fracassaram no Chile?
Uthoff – O modelo neoliberal de contratos individuais no Chile ignora as restrições orçamentárias dos cidadãos. Tende a ignorar a solidariedade e a reproduzir e ampliar as desigualdades implícitas em suas limitações de origem. Tudo isso em um contexto de segregação espacial, que criou enclaves de ricos e pobres com diferenças crescentes de estilo de vida. Hoje, as autoridades reconheceram que não percebiam isso.  Recomendo ao seu presidente que seja moderado e muito cauteloso na matéria de revisão da Constituição atual e também na adoção dos princípios do neoliberalismo. Eu recomendaria um desenho mais heterodoxo e eclético de políticas públicas que permita atingir o marco normativo de sua Constituição.

EC – A Constituição brasileira de 1988 é fruto da transição da ditadura para a democracia, de forma negociada, que poupou agentes da ditadura de responder por seus crimes. O Chile, em sua transição, responsabilizou militares por atentados aos direitos humanos, mas manteve a Constituição. Por quê?
Uthoff – A transição no Chile foi baseada em acordos e na recuperação de suas instituições democráticas como o próprio parlamento. Houve mudanças importantes que foram feitas para uma melhor convivência e que foram enclaves da ditadura. Mas esses acordos não foram suficientes. Houve cerca de 58 modificações aprovadas, muitas delas para listar. Mas, para dar uma ideia de mudança para uma melhor convivência democrática, podem ser citados, por exemplo a redução do mandato presidencial de seis para quatro anos sem reeleição imediata; o aumento dos poderes de fiscalização da Câmara dos Deputados; a eliminação das funções de “fiadores das instituições” atribuídas às Forças Armadas; a determinação de que somente o Presidente da República pode convocar o Conselho de Previdência Social e a eliminação da nomeação de senadores vitalícios. Essas modificações permitiram uma convivência política mais adequada, mas não fecharam o ciclo de transição, não substituíram a Constituição e não foram suficientes para garantir a democracia plena. A Constituição atual continua com muitas amarras, mantendo um modelo que rejeita o público em favor do mercado e da liberdade de escolha, principalmente em relação aos direitos econômicos e sociais. São essas regras que devem ser alteradas agora. Aquelas que permitem melhorar o acesso dos cidadãos a bens e serviços relacionados com os seus direitos. Aquelas que conciliam eficiência e solidariedade.

EC – O que desencadeou o processo constituinte?
Uthoff – Na minha opinião pessoal, a questão central no Chile é a desigualdade que se reproduz nos princípios neoliberais contidos na Constituição, onde se comercializam o acesso à saúde, educação, moradia e previdência, sem considerar as restrições orçamentárias da grande maioria da população. Dessa forma, a atual Constituição reproduz a desigualdade ao limitar o papel do Estado a um papel subsidiário.

EC – Quais são as mudanças necessárias?
Uthoff – A mudança fundamental é recuperar para o Estado o papel de garantidor dos direitos econômicos e sociais de todos, nivelando o campo de jogo entre os nascidos em famílias ricas e os que vêm de famílias vulneráveis. Isso implica grandes mudanças nos princípios de universalidade, equidade e solidariedade que podem reconstruir as instituições básicas da sociedade chilena que, hoje, são guiadas pela ideologia neoliberal.

EC – As reações populares na Argentina, Bolívia e, agora, no Chile sinalizam para uma primavera latino-americana?
Uthoff – A cidadania latino-americana está cada vez mais empoderada e veremos fortes demandas para suas necessidades. Os governos que a representam estão destinados a buscar uma estratégia de crescimento mais inclusiva. Ao contrário da Europa Ocidental, isso implica solucionar os déficits para todas as faixas etárias. Seja para as faixas que precisam de investimentos em educação às que merecem um envelhecimento digno. Interessante é que o envelhecimento de nossas populações mostra-se mais acelerado do que o da Europa. Isso em paralelo a uma série de déficits nas necessidades das populações jovem e adulta ativa como saúde, educação, habitação e a ausência de desenvolvimento produtivo para gerar empregos decentes. Agora, uma nova Constituição por si só não gera as mudanças necessárias. O que ela busca é um espaço maior para implementar essas políticas mais heterodoxas, necessárias para resolver esses problemas típicos da América Latina.

EC – Como o senhor analisa o caso do Brasil nesse contexto?
Uthoff – Acredito que o Brasil, ao contrário do que vemos hoje na Bolívia, Argentina e Chile, associa o desenvolvimento a uma Constituição que promova o neoliberalismo, o que tem se relvado um erro. Isso não impede que mesmo na Bolívia, na Argentina e, aliás, no Chile, existam políticas neoliberais que têm sido aplicadas com sucesso e devem ser mantidas. Mas nossos desafios são semelhantes. Para resolvê-los, é preciso concluir um novo pacto social que tenha os direitos sociais como horizonte normativo e as desigualdades e restrições orçamentárias como limitações que devem ser reconhecidas e enfrentadas. Devemos conciliar os imperativos éticos que balizam um contrato voltado para os direitos sociais com as restrições financeiras e a eficiência no uso dos recursos de forma a ampliar a cobertura e elevar a qualidade dos serviços prestados, especialmente para os setores de menos recursos.

"A cidadania latino-americana está cada vez mais empoderada e veremos fortes demandas para suas necessidades. Os governos que a representam estão destinados a buscar uma estratégia de crescimento mais inclusiva"

Foto: Marcelo Menna Barreto

“A cidadania latino-americana está cada vez mais empoderada e veremos fortes demandas para suas necessidades. Os governos que a representam estão destinados a buscar uma estratégia de crescimento mais inclusiva”

Foto: Marcelo Menna Barreto

EC – Políticas neoliberais têm sido aplicadas com sucesso?
Uthoff – O neoliberalismo não é a solução para isso. A mudança que reflete a situação atual obriga-nos a repensar o desenvolvimento no quadro de uma estratégia abrangente. Desenvolvimento em que se conjugam mecanismos de mercado e de Estado.

EC – Qual a sua expectativa em relação à eleição norte-americana, em que o Republicano Donald Trump, cada vez mais longe da reeleição, não teria maioria no parlamento?
Uthoff – Acho que o que se aplica a essa questão é reconhecer que não temos líderes em nível global, que não existem soluções fáceis e que é necessário um amplo consenso político para avançar. O que você está sugerindo para os Estados Unidos também acontece no Chile, pois o governo não tem maioria no parlamento. Mas o lamentável é que, ao contrário dos Estados Unidos, a oposição não está unida para propor alternativas. Em última análise, essa situação faz com que as leis não avancem e os projetos relevantes não se concretizem. É o que explica a recente votação no nosso plebiscito. Os cidadãos querem uma mudança, mas não confiam no governo ou nos parlamentares. Portanto, o desafio de chegar a acordos e consensos será essencial para a democracia e o desenvolvimento.

EC – Qual foi a mensagem dos eleitores ao optarem por membros exclusivamente eleitos para a nova constituinte ao invés de uma comissão mista com parlamentares em exercício?
Uthoff – Como indiquei, os cidadãos esperam resultados e têm exigências muito específicas no que se refere a pensões, saúde, habitação, segurança cidadã, emprego e rendimento. Exigem uma maior proximidade entre a elite política e a cidadania. Isso já estava claramente manifestado em outubro de 2019. Hoje, com a pandemia, e o agravamento da situação do emprego a situação é ainda mais grave. O desemprego, incluindo os desalentados, está estimado em mais de 30%. Nossa renda mediana hoje é de US$ 522 e a média é de US$ 783. A inaptidão do governo para enfrentar a emergência levou a uma primeira retirada de 10% dos fundos de pensão individuais e também ao uso do seguro-desemprego. Hoje já existe uma segunda retirada, evidenciando a total ausência de políticas de proteção social no Chile. Em torno dessas decisões há um conflito entre parlamentares que estão nas bases e a tecnocracia governamental que se ocupa da administração do país. Essas inconsistências e o lento andamento de leis e projetos que aumentam o bem-estar da maioria em um país que cresce de forma muito desigual são o que explica esse descontentamento com a elite política em geral.

EC – Como isso pode ser resolvido?
Uthoff – Como isso será resolvido no Chile? Isto ainda é um enigma, mas não há dúvida de que o apelo a um processo constituinte e na forma de paridade e distanciamento dos partidos políticos constitui um processo do qual muitas lições podem ser tiradas. Entre elas, uma clara rejeição ao neoliberalismo, a forma de fazer política alheia à cidadania, as desigualdades, em particular na sua dimensão de gênero, e a segregação espacial e social, entre outras.

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