OPINIÃO

Se a PEC 186 for aprovada o Brasil ficará totalmente submisso aos interesses do mercado

Por Maria Lucia Fattorelli / Publicado em 3 de março de 2021
Plenário do Senado Federal durante sessão deliberativa ordinária semipresencial. Na ordem do dia, Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 186/2019

Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Plenário do Senado Federal durante sessão deliberativa ordinária semipresencial nesta quarta-feira, 3. Na ordem do dia, Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 186/2019

Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Caso a PEC 186 venha a ser aprovada na forma do novo substitutivo apresentado nesta quarta-feira, 3 de março,    pelo senador Márcio Bittar, o Brasil passará a ter, em seu texto constitucional, a necessidade de todos os entes da Federação cumprirem meta de superávit fiscal de pelo menos 5% das receitas correntes, além da expressa submissão de todas as políticas necessárias ao desenvolvimento socioeconômico, atendimento aos direitos sociais e manutenção do Estado, as quais ficarão subordinadas ao privilégio dos gastos financeiros com a chamada dívida pública, que passa a ter prioridade absoluta.

Com essa alteração, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) assume de vez, textualmente, a condição de constituição do mercado, e é completamente aviltada em sua lógica. A CF/88 foi concebida para vincular o Estado ao cumprimento dos fundamentos e objetivos da República enumerados nos artigos 1º e 3º da CF/88, como brilhantemente abordado pelo Ministro Carlos Ayres Britto em recente evento realizado pela Auditoria Cidadã.

A vinculação das receitas tem a ver com a vinculação do Estado, ele foi criado para isso, plasmado para isso, constitucionalizado para isso: aos fundamentos e suas finalidades. Se não fizer isso o Estado não se vincula aos fundamentos do artigo 1º e muito menos aos objetivos do artigo 3º.

Em diversos dispositivos da referida PEC 186 está explícito o privilégio da chamada dívida pública sobre todos os demais gastos e investimentos orçamentários, invertendo completamente a lógica da CF/88. Estarão irremediavelmente jogados para plano inferior a dignidade da pessoa humana (Art. 1º da CF), assim como os objetivos fundamentais elencados no Art. 3º da CF: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais.

Para cumprir o ajuste fiscal e a meta de superávit fiscal de pelo menos 5% das receitas correntes, que passam a constar expressamente do texto constitucional caso a PEC 186 seja aprovada, os gastos necessários ao desenvolvimento socioeconômico, ao atendimento aos direitos sociais e à manutenção do Estado terão que ser cortados e ativos públicos serão vendidos, tudo isso para que sobrem mais recursos para o pagamento da chamada dívida pública!

Em substitutivo anterior, constava textualmente o condicionamento dos direitos sociais previstos no Art. 6º aos gastos com a dívida, o que levantou grande reação popular, a exemplo da Nota da Comissão Brasileira Justiça e Paz, organismo da CNBB , o que levou o relator a retirar este item da PEC. Porém, ao manter o privilégio dos gastos com a chamada dívida pública e a autorização para o “AJUSTE FISCAL” de forma automática, acompanhado da necessidade de um SUPERÁVIT FISCAL de pelo menos 5% das receitas correntes por todos os entes da Federação, a submissão dos direitos sociais aos gastos financeiros prevalece, o que é inaceitável!

O atual substitutivo apresentado nesta quarta-feira, mantem o status constitucional para o ajuste fiscal e para o superávit fiscal de pelo menos 5% das receitas correntes, dando à despesa com a chamada dívida pública um tratamento diferenciado de todos os demais gastos públicos. Tal privilégio é algo infame, por aviltar a lógica da CF/88, como antes mencionado, e também porque essa dívida nunca foi auditada devidamente e tem servido para alimentar diversos mecanismos financeiros ilegais e inconstitucionais, como a bolsa-banqueiro.

O privilégio injustificado da dívida em detrimento de todos os demais gastos que serão submetidos a medidas de ajuste suspenções e vedações, está explícito, por exemplo, na modificação introduzida pela PEC 186 ao Art. 163, VIII da Constituição, que introduz no texto constitucional a autorização para “medidas de ajuste, suspensões e vedações”, bem como a alienação de ativos com vistas à redução do montante da dívidade forma a garantir a “sustentabilidade da dívida”. da seguinte forma:

Art. 163

VIII – sustentabilidade da dívida, especificando:
a) indicadores de sua apuração;

  1. b) níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a trajetória da dívida;
  2. c) trajetória de convergência do montante da dívida com os limites definidos em legislação;
  3. d) medidas de ajuste, suspensões e vedações;
  4. e) planejamento de alienação de ativos com vistas à redução do montante da dívida;

Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso VIII pode autorizar a aplicação das vedações previstas no art. 167-A.” (NR)

O privilégio do gasto com a dívida está expresso também no Art. 164-A proposto pela PEC 186, submetendo todos os entes federados a manter a sustentabilidade da dívida, o que, para ser alcançado, exigirá os cortes de outros gastos para que a dívida seja paga:

“Art. 164-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis sustentáveis, na forma da lei complementar referida no inciso VIII do art. 163.

Parágrafo único. A elaboração e a execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida.”

 

Mais uma vez, na proposta da PEC 186 para o Art. 165 aparece novamente o privilégio dos gastos com a dívida, submetendo toda a programação dos gastos públicos à sustentabilidade da dívida:

Art. 165:

  • 2o A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, estabelecerá as diretrizes de política fiscal e respectivas metas, em consonância com trajetória sustentável da dívida pública, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.

Na proposta da PEC 186 para o Art. 167, mais um privilégio grotesco para a chamada dívida pública, que terá suas receitas intocadas, enquanto todos os demais gastos e investimentos públicos estarão submetidos ao AJUSTE FISCAL para servir à dívida:

 

Art. 167. São vedados:

IV – a vinculação das receitas públicas a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas:

  1. g) a receita destinada por legislação específica ao pagamento de dívida pública;

Outro privilégio da dívida decorre da aplicação de gatilho automático inserido na proposta do relator para o Art. 167-A, que mais uma vez menciona expressamente os “mecanismos de ajuste fiscal” para que sobrem pelo menos 5% de superávit corrente:

=“Art. 167-A. Apurado que, no período de doze meses, a relação entre despesas correntes e receitas correntes supera noventa e cinco por cento, no âmbito dos Estados, Distrito Federal e Municípios, é facultado aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas e à Defensoria Pública do ente, enquanto remanescer a situação, aplicar os seguintes mecanismos de ajuste fiscal:

 Esse dispositivo submete os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o Ministério Público, o Tribunal de Contas e à Defensoria Pública dos entes federados a vedar, por exemplo:

  • a concessão de qualquer aumento, vantagem, criação de cargos, planos de carreira, entre vários direitos devidos aos servidores públicos;
  • qualquer aumento de despesa obrigatória;
  • o aumento real do salário-mínimo ou benefícios previdenciários;
  • criação ou expansão de programas e linhas de financiamento, que poderiam estimular o funcionamento produtivo da economia.

A proposta da PEC 186 para o Art. 167-E admitirá a emissão de novos títulos para pagar os generosos juros da dívida, que atualmente se encontram em média, segundo o Tesouro Nacional, em torno de quase 9% ao ano, enquanto a Selic é 2% ao ano e o mundo todo aplica juros próximos de zero ou até negativos! A intenção do Art. 167-E é “legalizar” o pagamento de juros da dívida pública com recursos oriundos de novos empréstimos, o que já vem sendo feito de forma inconstitucional, por meio de artifício de CONTABILIZAÇÃO DE JUROS COMO SE FOSSE AMORTIZAÇÃO, conforme tem denunciado a Auditoria Cidadã da Dívida desde a CPI da Dívida em 2009/2010.

Art. 167–E. Fica dispensada, durante a integralidade do exercício financeiro em que vigore a calamidade pública de âmbito nacional, a observância do inciso III do art. 167.”

A proposta da PEC 186 para o Art. 109 do ADCT submete a esfera federal a mais GATILHOS AUTOMÁTICOS de corte de gastos e outras vedações:

Art. 2o O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 109. Se verificado, na aprovação da lei orçamentária, que, no âmbito das despesas sujeitas aos limites do art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a proporção da despesa obrigatória primária em relação à despesa primária total foi superior a noventa e cinco por cento, aplicam-se ao respectivo Poder ou órgão, até o final do exercício a que se refere a lei orçamentária, sem prejuízo de outras medidas, as seguintes vedações:

Todo esse arrocho aos direitos sociais, à estrutura do Estado e aos investimentos necessários ao nosso desenvolvimento socioeconômico visa privilegiar os gastos injustificados com a chamada dívida pública, que não tem servido para investimento algum no país, como declarou o TCU. se presta a alimentar questionáveis mecanismos financeiros .

Parlamentares que votarão a PEC 186 precisam saber que se aprovarem esse texto Substitutivo do senador Márcio Bittar estarão condenando o Estado brasileiro e toda a Nação a servir prioritariamente aos interesses do mercado financeiro, sacrificando os princípios e objetivos fundamentais da República.

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