OPINIÃO

STF começa a reconhecer inconstitucionalidade da “autonomia” do Banco Central

Por Maria Lucia Fattorelli / Publicado em 2 de julho de 2021

BC gasta bilhões para remunerar sobra de caixa dos bancos

Foto: Enildo Amaral/BCB

Foto: Enildo Amaral/BCB

O julgamento virtual da ação direta de inconstitucionalidade (ADI 6696) contra a Lei Complementar 179/2021 começou no dia 18 de junho deste ano. O ministro Lewandowski, relator da referida ADI no Supremo Tribunal Federal (STF), publicou seu voto virtual, acatando a tese de inconstitucionalidade, uma vez que a matéria é de iniciativa exclusiva da presidência da República, conforme Art. 61, parágrafo 1º da CF/88, e o projeto votado (PLP 19/2019) é de autoria de um senador.

Ademais dessa inconstitucionalidade formal, o PLP 19/2019 contém uma série de problemas, pois torna o Banco Central um órgão à parte da Administração Pública, sem qualquer tutela ou subordinação hierárquica a qualquer outro órgão, ou seja, acima de tudo e de todos.

Durante a tramitação do PLP 19/2019 alertamos que tal autonomia significaria a entrega de um verdadeiro cheque em branco aos banqueiros que comandam a instituição, mas o projeto foi aprovado pelo Congresso nacional, sem uma audiência pública sequer, em plena pandemia e em meio a votações virtuais, sem o devido debate também nas comissões temáticas das referidas casas legislativas.

Os poucos meses decorridos desde a aprovação da Lei Complementar 179/2021 já demonstram o alcance desse “cheque em branco”.

Elevação dos juros

A taxa básica de juros (Selic) que estava em 2% ao ano quando o PLP 19/2019 foi aprovado pelo Congresso Nacional já passou por três (3) elevações seguidas, em apenas 3 meses, subindo aceleradamente para 2,75%, 3,50% e 4,25%, sem justificativa técnica ou econômica que se sustente!

A alegação usada pelo Banco Central para subir tanto a taxa básica de juros é o “controle da inflação”, sendo que a inflação que temos tido no Brasil decorre de outros fatores que não são afetados pelo aumento dos juros, como a elevação brutal do preço dos combustíveis (devido à insana política de preços adotada pela Petrobras desde Pedro Parente); à alta de outros preços que em tese deveriam ser administrados pelo governo (transporte, gás de cozinha, energia elétrica, planos de saúde, tarifas bancárias, telefonia etc.), e a alta no preço de alimentos (devido a erros de política agrícola que privilegiam investimentos na agricultura de exportação, que por sua vez prefere vender ao exterior, devido à alta do dólar, e dá as costas ao povo brasileiro, aumentando aqui dentro os preços do arroz, carne etc.).

Aumentar os juros não faz baixar nenhum desses preços que têm de fato produzido a inflação no país. Pelo contrário, poderá impulsionar os preços a aumentá-los ainda mais, devido ao custo dos juros, que logicamente impacta na composição dos custos!

Enquanto o mundo inteiro está mantendo taxas próximas de zero ou até negativas, diante da desaceleração econômica provocada pela pandemia, com essas sucessivas altas de juros o Banco Central só faz aprofundar a crise que ele ajudou a fabricar desde 2014 .

Na Europa, por exemplo, o Banco Central Europeu (BCE) tem comemorado que as taxas de juros negativas ajudaram a restabelecer a atividade econômica. Lá, os bancos chegam a ser penalizados se depositarem excedente no BCE, enquanto aqui no Brasil se inventa que a remuneração diária da sobra de caixa dos bancos seria prática mundial.

Nos Estados Unidos, a taxa básica de juros está entre 0 e 0,25% ao ano e as autoridades já declararam que algum aumento só será avaliado em 2023. Essa sinalização é muito importante, pois os especuladores já sabem que terão ganhos com o rentismo e terão que investir na economia produtiva, que gera emprego e renda. A sinalização que o Banco Central aqui no Brasil está dando é inversa! E, logicamente, o desemprego bate recorde após recorde!

Dolarização e risco de aprofundamento da crise financeira

O PL 5.387/2019, recentemente aprovado na Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado, abre a possibilidade de dolarização geral no país, além de facilitar a abertura de contas em dólar e deixar sem limite as movimentações de moeda estrangeira, inclusive com os perigosos e questionáveis derivativos financeiros, a exemplo dos swaps, verdadeiras apostas como já manifestou o TCU.

O governo deveria estar fazendo justamente o contrário, estabelecendo controle de capitais, como todos os países sérios fazem, mas o PL 5.387/2019, de autoria do Poder Executivo, prevê que “as operações no mercado de câmbio podem ser realizadas livremente, sem limitação de valor”, abrindo espaço para a liberalização total de quaisquer movimentações financeiras, inclusive de derivativos!

Cabe lembrar que a utilização excessiva de derivativos pelos bancos foi a principal causa da crise iniciada nos Estados Unidos em 2007, conforme descrito no capítulo 1 do livro Auditoria Cidadã da Dívida: experiências e métodos.

Além de representar uma temeridade à soberania nacional e risco de aprofundamento da crise financeira que já abala o Brasil desde 2014, o PL 5.387/2019 é prejudicial às finanças públicas e aprofunda a chantagem diária dos mercados financeiros, que sempre ameaçam fugir em massa do país (causando grande desvalorização cambial) no caso de qualquer medida contrária a seus interesses, tais como a redução da taxa de juros, a tributação do setor financeiro, ou também, a auditoria da dívida pública.

Importante ressaltar que diversos economistas, de distintas correntes políticas, bem como os grandes meios de comunicação têm repetido esse falso discurso de que o Brasil não poderia reduzir os juros, alegando que se isso ocorresse, enfrentaríamos uma fuga de capitais.

Porém, ao contrário desse discurso, o controle sobre o fluxo de capitais financeiros é realizado por muitos países, e a fuga de capitais não acontece, justamente porque neles existem instrumentos de controle de capitais, o que deve ser feito também no Brasil, a fim de garantir maior soberania nas decisões de política econômica.

O PL 5.387/2019 faz o contrário: deixa completamente livres e sem limites as operações em moeda estrangeira, inclusive com derivativos financeiros, aumentando a nossa vulnerabilidade financeira e o risco de aprofundamento de grave crise fabricada  pela política monetária suicida do Banco Central, instalada desde 2014.

Remuneração da sobra de caixa dos bancos

Em vez de tornarem o Banco Central independente e autônomo, a instituição deveria estar sendo investigada, pois, além de sua responsabilidade acumulada ao longo de décadas pelo desandado processo de endividamento público desde a ditadura, a autarquia foi uma das principais responsáveis pela crise fabricada a partir de 2014 devido ao abuso das “Operações Compromissadas”, que têm sido usadas para remunerar a sobra de caixa dos bancos.

Essa operação não tem justificativa técnica ou econômica que se sustente e custou quase R$ 3 trilhões em 10 anos.

O abuso dessas operações compromissadas atingiu patamares tão absurdos, de R$ 1,6 trilhão em agosto/2020, que chamaram muita atenção e fizeram explodir a dívida pública usada nessas operações, como noticiado.

Ao criar a figura do “Depósito Voluntário Remunerado” o PL 3.877/2020 deu um jeito de manter a remuneração exorbitante aos bancos, mascarando o impacto disso no estoque da dívida pública. A manutenção de uma despesa de juros sobre um “depósito” é uma obrigação onerosa equiparada à dívida pública. Dessa forma, a obrigação da dívida continua existindo, mas não aparecerá nas estatísticas, o que CONFIGURA PEDALADA FISCAL, como já alertado por economistas de distintas correntes políticas há anos.

O artifício do “Depósito Voluntário Remunerado” caminha de mãos dadas com a “autonomia” do Banco Central, conforme confessado pelo próprio órgão, dado que desta forma, para remunerar os bancos, ele não depende mais do recebimento de títulos do Tesouro, que apenas pagará a conta, sem limite, conforme previsto no Art. 7º, parágrafo 1º, da Lei Complementar 101/2000 (conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, que deixa sem limite e sem controle o gasto irresponsável com a política monetária suicida do Banco Central).

O Congresso Nacional aprovou o PL 3.877/2020 de forma flagrantemente inconstitucional, pois o referido projeto cria uma despesa obrigatória sem limite e sequer veio acompanhado de uma demonstração financeira que indique quanto essa BOLSA-BANQUEIRO irá custar e impactar o orçamento federal, como determina o Art. 113 do ADCT da Constituição Federal.

Conclusão

Definitivamente não temos tido um Banco Central trabalhando em favor da economia nacional, haja vista os danos financeiros e econômicos provocados por sua política monetária insustentável.

Em vez de exigir a modificação dessa política monetária suicida, impedindo a questionável remuneração da sobra de caixa dos bancos, o PL 3.877/2020 a deixa sem limite e ainda usa contabilidade criativa para maquiar essa obrigação financeira da dívida pública; em vez de impedir as questionáveis operações com swaps e estabelecer o controle de capitais, o PL 5.387/2019 faz o contrário.

Por sua vez, a Lei Complementar 179/2019 dá liberdade total ao Banco Central, tornando-o completamente independente e autônomo, com poderes ilimitados sobre a moeda do país, a política de juros, o controle do câmbio e das reservas internacionais que se encontram no patamar de cerca de R$ 2 TRILHÕES (US$ 355 BILHÕES DE DÓLARES), tudo isso sem qualquer tutela ou supervisão de qualquer outro órgão ou ministério!

Esperamos que os demais Ministros do STF sigam o voto do Relator Lewandowski e suspendam a aplicação da Lei Complementar 179/2021, e se instaure um sério debate sobre a necessidade de uma política monetária que atenda aos interesses do país, e não dos grandes bancos e especuladores.


Maria Lúcia Fattorelli é coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e integra a Comissão Brasileira Justiça e Paz, organismo da CNBB. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

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