OPINIÃO

Educação superior: mais retrocessos e falácia eleitoral

Por Gabriel Grabowski / Publicado em 6 de junho de 2022

Foto: Unesco/ Divulgação

“Esse projeto em curso do governo brasileiro confronta-se com as propostas da III Conferência Mundial de Educação Superior: o ideal humanista, a emancipação por meio do conhecimento, a liberdade, os direitos humanos, a justiça e a paz”

Foto: Unesco/ Divulgação

“A história não se abre e fecha por si, são os homens e mulheres em luta que abrem e fecham o circuito da história” (Florestan Fernandes, 1977)

Para o professor, antropólogo e sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) o que se tem chamado de desenvolvimento no Brasil, em realidade, não passa de um processo de modernização e de capitalismo dependente, no qual a classe dominante brasileira.

Uma minoria prepotente que se associa ao grande capital, abrindo-lhe espaço para sua expansão. Isso resulta na combinação de uma altíssima concentração de capital para poucos com a manutenção de grandes massas na miséria, o alívio da pobreza ou um precário acesso ao consumo, sem a justa partilha da riqueza socialmente produzida.

O filósofo e educador Gaudencio Frigotto (UFRJ/Uerj) considera que a síntese do sociólogo Florestan, feita há décadas, ganha hoje um realismo sem precedentes.

A classe dominante brasileira, pequena, autoritária, racista, moralista, antipovo, anticlasse trabalhadora, antiEducação e Ciência, humanamente rasa e insensível sustenta, no momento presente, um (des)governo que nos transforma cada vez mais em um país gigante com pés de barro.

Logo, para o projeto da “elite do atraso”, destruir a Educação e a Ciência brasileira é necessário.

O novo bloqueio de 14,5% (R$ 3,8 bilhões) no orçamento das universidades federais em 27 de maio deste ano é emblemático e confirma a tese de redução contínua e sistemática, desde 2016.

Esse corte atinge os valores orçamentários de custeio e o investimento, conforme denuncia a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes):

“após todo o protagonismo e êxitos que as universidades públicas demonstraram até aqui em favor da ciência e de toda a sociedade no combate e controle direto da pandemia de covid-19; após o orçamento deste ano de 2022 já ter sido aprovado em valores muito aquém do que era necessário, inclusive abaixo dos valores orçamentários de 2020; após tudo isso, o governo federal ainda impinge um corte de mais de 14,5% sobre nossos orçamentos, inclusive os recursos para assistência estudantil, inviabilizando, na prática, a permanência dos estudantes socioeconomicamente vulneráveis, o próprio funcionamento das instituições federais de ensino e a possibilidade de fechar as contas neste ano” (Andifes).

Esse projeto em curso do governo brasileiro confronta-se com as propostas da III Conferência Mundial de Educação Superior (CMES) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) transcorrida em maio, na cidade de Barcelona, Espanha.

Foram destacados nesta conferência os valores que criaram as universidades, tais como: o ideal humanista, a emancipação por meio do conhecimento, a liberdade, os direitos humanos, a justiça e a paz.

As universidades sempre foram forças fundamentais para transformar a própria sociedade e a realidade em que estão inseridas.

A CMES 2022 revisitou e reafirmou a missão das universidades: formação de cidadãos globais preparados para atuar na complexidade; geração e compartilhamento de conhecimento, ciência aberta e abordagens transdisciplinares; engajamento social, desenvolvimento e responsabilidade ética.

Desmonte

Enquanto isso, no Brasil, a Rede Pública Federal composta de Universidades e Institutos Federais vêm sendo sistematicamente fragilizada e inviabilizada.

Paralelamente, o segmento educacional privado, com dois terços das matrículas do ensino superior, sob o efeito da financeirização, da EaD e sob ataque dos empresários do setor, colocam os professores enquanto categoria em extinção nessas faculdades.

Vejamos algumas evidências:

O mais recente Censo de Educação do Ensino Superior, divulgado em maio ano, registrou a primeira queda de matrículas nas universidades federais (UFs) brasileiras desde 1990.

No período de 2019 a 2020, o número de estudantes que entraram no ensino superior pelas UFs passou de 1,3 milhão para 1,2 milhão.

E, ainda, cerca de 270 mil estudantes suspenderam a graduação por tempo indeterminado. Essa queda de matrículas é, em parte, explicada pela redução dos investimentos nas instituições e suspensão das políticas apoio estudantil;

Já as instituições privadas registraram aumento no número de ingressantes, chegando a corresponder a 86% do total das matrículas no ensino superior em 2020.

Porém, 53,4% desse ingresso ocorreu no ensino a distância, foram mais de 2 milhões de estudantes que se matricularam no ensino remoto, enquanto 1,7 milhão de estudantes, cerca de 46,6%, ficaram no ensino presencial.

Modelo de negócios

Para Andrea Harada, Gabriel Teixeira e Plínio Gentil, em recente artigo no Le Monde Diplomatique Brasil, o mercado educacional se converteu e se consolidou como modelo de negócios, atraindo investidores de toda natureza (muitos sem vínculo com a educação), sem qualquer relação com a democratização do ensino superior, com a redução das desigualdades ou com o desenvolvimento do país.

Na realidade, representam a efetiva oportunidade de valorização dos capitais privados de várias partes do mundo e, os estudantes, são tratados como ativos financeiros e, os docentes, como custos a serem eliminados.

Porém, neste ano decisivo para o futuro do país, a educação é novamente vítima de falácias eleitorais.

Os mesmos governantes e políticos que descumpriram os percentuais constitucionais de investimentos em educação, que reduziram gastos inclusive na pandemia, que apoiaram e aprovaram cortes orçamentários nas verbas da educação e da ciência, realizam novas falsas promessas da educação enquanto prioridade.

Princípios

Cabe registar que princípios como honestidade, coerência e compromisso com a educação não são negociáveis.

A primeira atitude séria deve ser alçar a educação e a ciência brasileira ao status de Política de Estado, fora do teto de gastos, impedindo ingerências político-eleitoreiras e de governos transitórios.

A primeira coisa a fazer para resolver um problema é admitir que ele existe.

A segunda é identificar sua origem e, a terceira, resolver a causa originária; no caso, os oportunistas e falaciosos defensores da educação.

É inadmissível que os cargos de ministros e secretários de educação sejam ocupados por pessoas alheias às escolas e às universidades.

Quem conhece e faz a educação são os professores. Jamais um CEO, um militar, um pastor, um técnico ou empresário deveria responder por essas funções educacionais, a exemplo das melhores experiências internacionais.

A nossa Constituição Federal (CF) de 1988 aponta os fundamentos da República brasileira: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político.

A mesma Constituição define os seus objetivos: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigos 1º e 3º).

É nela, também, que consta a educação como direito de todos e dever do Estado e da família, visando à garantia do pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (artigo 205).

Para que esses fundamentos e objetivos do Estado democrático se concretizem e a educação de qualidade se efetive, é necessário garantir o atendimento aos princípios do artigo 206:

– igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

– pluralismo de ideias e concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

– gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

– valorização dos profissionais da educação, com planos de carreira e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;

– gestão democrática do ensino público;

– padrão de qualidade;

– e piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação pública, nos termos de lei federal.

Já dizia Florestan Fernandes: o intelectual, seja professor ou pesquisador, não cria o mundo no qual vive. Ele faz muito quando consegue ajudar a compreendê-lo, como ponto de partida para a sua alteração real.

Portanto, não será com privatização da educação, nem com educação a distância, muito menos com ensino domiciliar (homeschooling), com pactos paralelos pela educação, com educação meritocrática ou empreendedorismo individual (“Crie o impossível”) que vamos priorizar a educação como pilar para reconstruir e transformar o Brasil.

Portanto, estas eleições oportunizam substituir as bancadas da “bala”, “evangélica” e similares por representações legítimas e qualificadas de professores, cientistas, jovens estudantes e gestores de escolas e universidades.

A decisão está em nossas mentes e em nossas mãos. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer!

Gabriel Grabowski é professor e pesquisador. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

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