OPINIÃO

34 anos de descumprimento da Constituição Federal

Por Maria Lucia Fattorelli / Publicado em 6 de outubro de 2022

 

34 anos de descumprimento da Constituição Federal

Foto: Arquivo/Câmara dos Deputados

A chamada “Constituição Cidadã” foi promulgada há 34 anos pela Assembleia Nacional Constituinte – composta por deputados e senadores eleitos democraticamente em 1986, após 21 anos de regime militar

Foto: Arquivo/Câmara dos Deputados

No dia 5 de outubro de 2022 completamos 34 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, que prevê, textualmente, a realização da auditoria da dívida pública (Art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), até hoje não cumprido, apesar da centralidade do Sistema da Dívida. Além de consumir cerca de metade do orçamento federal anualmente, a chamada dívida pública tem sido usada como justificativa para contínuas privatizações insanas, contrarreformas (principalmente as da Previdência e Administrativa), contingenciamentos, cortes e teto de gastos sociais.

Ironicamente, o artigo 166, § 3º, II, b, da CF/88, que privilegia os gastos com a dívida pública – e não foi devidamente votado, como denunciado pelos professores Adriano Benayon e Pedro Antônio Dourado de Resende em sua investigação denominada “Anatomia de uma fraude à Constituição”– tem sido rigorosamente cumprido!

Referido dispositivo diz que os gastos com a dívida pública não precisam indicar a fonte do recurso para o seu pagamento, e essa tremenda benesse não foi devidamente debatida e votada durante o processo constituinte, como comprova a citada investigação:

“Art. 166 – Os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais serão apreciados pelas duas Casas do Congresso Nacional, na forma do regimento comum.
(…)
§ 3º As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso:
(…)
II – indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os
provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam sobre:
(…)
b) serviço da dívida;”

Assim, enquanto todos os investimentos e gastos públicos imprescindíveis para o nosso desenvolvimento socioeconômico ficam submetidos à existência de recursos, sucessivos cortes e até a “teto” constitucional (a Emenda Constitucional no 95 em 2016 estabeleceu teto somente para as despesas primárias, para que sobrem ainda mais recursos para os gastos financeiros com a chamada dívida pública), os gastos com a dívida pública contam com previsão orçamentária anual estratosférica e têm tido fonte garantida na emissão de novos títulos, provocando o aumento da dívida sem limite ou controle algum!

A previsão orçamentária extraordinária para gastos com a dívida sequer pode ser alterada pelo Congresso Nacional, com base em interpretação dada a esse mesmo dispositivo inserido no texto constitucional sem a devida discussão e votação (Art. 166, § 3º, II, b, da CF/88).

Em resposta ao Inquérito Civil Público ICP 1.34.023.000285/2011-48 apresentado para questionar a inconstitucionalidade do referido dispositivo constitucional que privilegia o gasto com a dívida pública o Ministério Público Federal chegou a reconhecer que houve inobservância das normas procedimentais, porém, apesar dessa grave constatação, o inquérito não foi adiante:

“De início, no que tange ao mérito há certa plausibilidade na tese apresentada pelo representante. Com efeito, os documentos acostados à representação indicam ter havido inobservância, pelo constituinte de 1988, das normas procedimentais que regiam o processo de elaboração da Constituição da República, previstas no Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte, (RI/ANC) aprovado pela Resolução 2, de 25 de março de 1987.”

Sem contrapartida social

O mais grave é que a chamada dívida pública não tem contrapartida em investimentos de interesse social, como declarado até pelo Tribunal de Contas da União (TCU) ao Senado, confirmando o que tem sido denunciado pela Auditoria Cidadã da Dívida, que tem demonstrado a atuação de diversos mecanismos financeiros que “geram” dívida pública no Brasil.

Diversas emendas foram aprovadas para privilegiar os interesses financeiros, devendo ser ressaltada a Emenda Constitucional no 40/2003, que extinguiu todos os incisos, alíneas e parágrafos do Art. 192 da CF/88, inclusive os que tratavam do limite das taxas de juros e da criminosa prática da Usura. Esse desmonte eleva ainda mais a importância da aprovação do projeto de lei complementar (PLP) 104/2022, para recolocar na legislação brasileira o limite dos juros no país, tal como acontece em quase 80 países mundo afora.

O Art. 167, III da CF/88 vem sendo reiteradamente desrespeitado por uma manobra denunciada pela Auditoria Cidadã da Dívida desde as investigações realizadas pela CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados, quando se comprovou que grande parte dos juros (despesa corrente) têm sido contabilizados como se fosse amortização (despesa de capital), justamente para privilegiar o pagamento dos juros abusivos pagos pelo Brasil, os mais elevados do planeta!

34 anos de descumprimento

Chegamos a uma situação em que a CF/88, que há 34 anos foi batizada de “cidadã” por Ulisses Guimarães, está se transformando cada vez mais em uma “constituição do mercado”! Os artigos que tratam dos direitos sociais têm sido desfigurados e submetidos a inúmeras restrições e até a “teto” rebaixadíssimo, enquanto os gastos financeiros com a chamada dívida vão expandindo seus privilégios e ocupando o texto constitucional.

Para citar alguns exemplos recentes e que afetam a maioria da população, podemos mencionar as modificações nas regras previdenciárias, que vão deixando o direito a uma aposentadoria digna cada vez mais distante, devido aos sucessivos aumentos de idade para se aposentar e redução dos benefícios. No caso de servidores públicos o desrespeito é ainda maior, pois passaram a ficar obrigados a continuar pagando a contribuição previdenciária após se aposentarem. Adicionalmente, as modificações têm destruído o modelo de solidariedade, que exigiria contínuos investimentos em concursos e melhoria do atendimento à população, e passaram a submeter as aposentadorias a regras de mercado, com a FUNPRESP (Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal) seduzindo servidores a aderirem a um modelo que os deixa completamente vulneráveis, pois só está definido o valor da contribuição e o benefício vai depender do mercado!

Emenda Constitucional 109

A Emenda Constitucional 109, aprovada no ano passado, inseriu a prioridade da “sustentabilidade da dívida pública” no texto constitucional, visando submeter e condicionar os direitos sociais previstos no Art. 6º da CF/88 ao pagamento da chamada dívida pública, ou seja, tentaram deixar explícito no texto constitucional o que na prática já vem acontecendo. Para se garantir a “sustentabilidade da dívida” ela tem que ser paga e, para isso, contínuos cortes de gastos sociais e investimentos públicos estão sendo feitos para que os recursos sejam destinados a garantir tal pagamento. Essas aberrações tentam legalizar o crime que determinadas práticas, como a ilegal remuneração diária da sobra de caixa dos bancos por meio do abuso das “Operações Compromissadas”, têm provocado no país: não é um acaso o fato de o Brasil, ao mesmo tempo, retornar ao Mapa da Fome e despencar mais 3 posições no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano medido pela ONU (IDH), passando a ser o 87º colocado, enquanto 4 bancos que atuam no país figurarem entre os mais lucrativos do planeta! Isso é o resultado explícito da transferência de dinheiro da sociedade para o setor financeiro, por meio do Sistema da Dívida!

O dispositivo não devidamente votado que excepcionou os gastos com a dívida pública de indicar sua fonte de recursos e impediu o Congresso Nacional de alterar o exorbitante valor dos gastos com a dívida foi a origem de inúmeros atos legais que surgiram continuamente, blindando o serviço da dívida de qualquer controle ou interferência, de tal forma que o Banco Central venha elevando as taxas de juros, sob a falsa justificativa de conter a inflação, indicando um gasto anual extraordinário de mais de R$ 410 bilhões – R$34,9 bilhões de gasto anual com juros da dívida a cada 1% de aumento na Selic, conforme informado pelo próprio Banco Central – , e não se preocupa de onde sairão os recursos para o pagamento de tais juros sobre a dívida, nitidamente aprofundando a crise em que nos encontramos.

Enquanto não for devidamente auditada essa chamada dívida pública, seguiremos submetidos ao modelo econômico que atua no país e só produz escassez para a imensa maioria da população. Por isso, a Auditoria Cidadã da Dívida convidou candidatos a todos os cargos nas Eleições 2022 a responderem questionário sobre o tema, e agora está enviando, inclusive aos que seguem disputando o segundo turno, documento com as pautas urgentes a serem enfrentadas pelos vitoriosos(as) em 2 de outubro.

É urgente sairmos do avesso em que nos encontramos! Auditoria já!

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da CNBB; e coordenadora do Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara da CBJP. Escreve mensalmente para o Extra Classe.

Comentários