OPINIÃO

O desafio (im)possível da transdisciplinaridade

Por José Luís Ferraro / Publicado em 12 de junho de 2023

Foto: Andrea Piacquadio/ Pexels

“Cada disciplina é a expressão de um discurso, sendo assim, um campo de prática; de articulação em potência”

Foto: Andrea Piacquadio/ Pexels

Há algum tempo – e não importaria precisar quanto – que já é moda um discurso educacional que beira à demonização, seja das disciplinas, seja da disciplinaridade como forma de racionalidade disciplinar.

“É preciso acabar com as disciplinas!”, grita um professor com ar revolucionário em alguma escola que se propõe a alguma ruptura (e ainda são poucas) sem saber muito o que fazer.

E também, sem muita clareza sobre o que está dizendo – desde que as vertentes críticas cada vez mais têm perdido espaço em cursos de licenciatura para modelos educacionais romantizados – expressão por uma busca de sentido de um tempo em que o niilismo (que também é pedagógico) e as incertezas da contemporaneidade são o grande objeto de incompreensão de negação e de refutação para muitos (inclusive) docentes.

Mas o que significaria, de fato, acabar com as disciplinas nesta proposição leviana – por irrefletida – mas capaz de angariar uma série de adeptos.

Se trata de fazer ruir toda uma estrutura que sustenta não apenas a produção do conhecimento que, por sua vez, tem uma natureza disciplinar, mas os demais agenciamentos que só são possíveis pela existência das disciplinas.

Seria impossível pensar movimentos interdisciplinares ou transdisciplinares com a ausência dos campos disciplinares que têm objetos bem definidos, dispositivos de poder-saber e, portanto, regras de circulação discursiva, mecanismos que lhes são próprios.

Cada disciplina é a expressão de um discurso, sendo assim, um campo de prática; de articulação em potência.

No entanto, não quero parecer cético em relação às formas de apresentação (ou de representação) do conhecimento e suas formas de saber – principalmente pelas instituições de ensino e em um mundo cada vez mais complexo, onde emergem pensamentos e se visibilizam modos de existências cada vez mais plurais – em um tempo que nos convida a “pensar fora da caixa”, de acordo com a expressão do senso comum.

Como isso é possível neste mundo que ainda vive o sonho da modernidade?

Ou como isso se converte em tarefa fundamental da humanidade, se segundo Bruno Latour, nunca fomos modernos?

Assim, devemos nos perguntar: que sonho é esse no qual se acredita na possibilidade de um trabalho transdisciplinar em que o professor acha que para ser transdisciplinar basta ser inimigo das disciplinas e continua ensimesmado, ilhado, autorrealizado como se sua própria docência se/lhe bastasse?

Ser transdisciplinar requer jogar um jogo: o jogo das relações, dos agenciamentos. Ser transdisciplinar não é ser inimigo da disciplina, mas antes contrariar sua ordem, estabelecendo (alg)um caos como nova possibilidade de reorganização no interior de sua discursividade.

Isso implica não no seu desaparecimento, mas em uma modulação das suas potências, dos seus afetos.

A transdisciplinaridade mantém a disciplina como aliada; ela potencializa a disciplina desestratificando-a, criando espaços lisos para maiores possibilidades de devir, diriam Gilles Deleuze e Félix Guattari. Ela faz da ordem binária disciplinar o rizoma. É nesse sentido que o sujeito transdisciplinar também se desterritorializa. Esta é a primeira parte do jogo.

A segunda parte do jogo é o elemento estético. A transdisciplinaridade é impossível sem uma exteriorização. Isso significa tomar a disciplina como ponto de partida para, exatamente, dela produzir linhas de fuga. Logo, jogar o jogo da transdisciplinaridade significa aprender a ensinar com/na arte – independente do que se esteja ensinando.

A transdisciplinaridade, assim, se concretiza com a mistura de sentimentos que a experiência estética é capaz de prover em uma dimensão que é sempre subjetiva. Ou seja: experimentar sempre! Mais do que interpretar! Como um retorno a Deleuze e Guattari.

Falar de transdisciplinaridade sem arte, sem literatura, sem cinema, sem a experiência do fora tal qual nos convida Maurice Blanchot, como uma abertura radical, é simplesmente falar de algo que soa como utopia.

É nesse sentido que percebemos o porquê de alguns docentes não conseguirem realizar um trabalho transdisciplinar. Pelo fato de não compreenderem o que isto verdadeiramente requer: as regras do jogo.

A transdisciplinaridade funciona como deslocamento, como possibilidade de ultrapassagem de si. Portanto, afecção. Trata-se de múltiplas potências, intensidades que não se consubstanciam na simples superação disciplinar.

Logo, o modelo transdisciplinar não nos permite a vida pacata e permanente em um platô específico (a aula expositiva e dialogada, ou qualquer outra aula), mas uma vida perturbada pelas forças criativas que propomos a nós mesmos em um plano de imanência.

Exatamente como quando planejamos nossas aulas, por exemplo: traçamos as linhas de uma espécie de diagrama as quais esperamos que contribuam com agenciamentos produtivos, em plena potência.

Assim, a transdisciplinaridade é sempre o meio do caminho. É sempre o processo. É sempre o devir. Processo mediado por um elemento externo não como transcendência, mas como imanência.

Ela necessita de um disparador estético que nos permita perceber/desvelar nossas próprias forças produtivas – nosso corpo sem órgãos, como em Antonin Artaud também recuperado por Deleuze e Guattari, talvez – para reorganizar formas de conhecimentos, de saberes e em novos conhecimentos agenciarmo-nos com enunciados que nos permitam a construção/experimentação de outros circuitos afetivos.

José Luís Ferraro é doutor em Educação, pesquisador e professor universitário. Bolsista Produtividade do CNPq.

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