OPINIÃO

Vida de professor: entre a ideologia, a técnica e o assédio

Por Plinio Melgaré / Publicado em 10 de novembro de 2023

Vida de professor entre a ideologia, a técnica e o assédio

Foto: Marcello Casal jr/Agência Brasil

Foto: Marcello Casal jr/Agência Brasil

Mais da metade dos professores já sofreu algum tipo de assédio, perseguição ou censura no trabalho, revela um estudo realizado pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Em outubro deste ano, a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados se reuniu, em audiência pública, para “tratar da perseguição a professores no Brasil”. Constatou-se que o medo de sofrer retaliações no ambiente de trabalho é rotina para 63,7% dos(as) educadores(as), enquanto 61,9% já repensaram o conteúdo de uma aula por temerem uma repercussão negativa. O recente afastamento de um professor do Colégio Anchieta, reacendeu o tema. Professores enfrentam um cenário difícil, que afeta o exercício de sua profissão e, por via de consequência, a formação do aluno.

O cenário é complexo e formado por um multifacetado conjunto de condições. Dentre elas, percebe-se, na sala de aula, o fenômeno da “sociedade da vigilância”. Estudantes, com gravadores e câmeras, sem qualquer educação para o seu uso, integram a rotina de uma sala de aula. Professores são vigiados. A sala de aula se torna um big brother. O professor, em uma escalada progressiva de controle social, transforma-se no sujeito a ser vigiado. E, se vigiado, propenso a ser punido. O aluno, como um livre observador, empodera-se: apodera-se de imagens e aprimora seus sistemas de controle. Transforma-se em um censor em potencial. O receio de uma eventual exposição negativa tem um efeito inibidor, que retira a espontaneidade e a abertura dialógica, elementos constituintes da prática docente. Nesse contexto, vigiar já é punir.

As novas tecnologias influenciam a ação política. O professor sabe que, a qualquer momento, um fragmento de sua fala, um recorte de sua ação comunicativa, pode ultrapassar as paredes físicas da sala de aula e invadir o ciberespaço. A expectativa de privacidade, que se tem em uma sala de aula, esvai-se diante da fluidez de imagens não autorizadas que invadem o incorpóreo espaço digital. E lá é submetido à “polícia do pensamento”. A atuação docente transforma-se em meme. Na infocracia, o fragmento de uma aula viraliza. E, contaminado pelo vírus da instantaneidade da informação, impulsionado por obscuros algoritmos, a coerência lógico-discursiva de uma aula é desconsiderada. Sobre a aula, que repercute nas redes sociais, vibra o ruído de enxames digitais: rápidos, fugidios e direcionados pelos mais diversos interesses. Exceto o interesse pedagógico e o interesse pela proteção do próprio aluno, às vezes um adolescente – que se vê exposto nas redes sociais. Enfim, se a tecnologia permite a expropriação do cotidiano, nas instituições de ensino, permite a expropriação do cotidiano da sala de aula.

Associado ao fator tecnológico, há outro, de ordem política. Uma ideologia extremista, hostil ao diálogo, propõe a neutralidade e a objetividade da educação. Se a prática docente não se ajustar a tais pressupostos, é classificada como doutrinação. Problematizar, historicizar o conteúdo programático, com a incontornável liberdade de cátedra, transforma-se em doutrinação ideológica. A liberdade de aprender, ensinar, pesquisar, o pluralismo de ideias, elementos integrantes da educação constitucionalmente previstos, são solapados pelo apelo de um discurso vazio que reclama de doutrinação ideológica.

A pretensão de neutralidade — ainda que possível fosse — impede a discussão acerca de diferentes ideias, concepções políticas ou ideológicas sobre o mesmo acontecimento. O processo dialógico, que enriquece o aprendizado em sala de aula, ampliando a mundividência de todos que participam dele, é substituído por uma visão tacanha da educação. Banir o pensamento crítico de uma sala de aula em nome de uma inexistente neutralidade implica retroceder aos tempos de um modelo educacional autoritário, típico do fascismo, que pretende interiorizar, na formação da subjetividade, a dominação.

A educação exige, para a compreensão do sentido do mundo que a pessoa habita, a ampliação do cenário cognitivo dos alunos. Objetivo que se alcança a partir de um diálogo plural e da análise factual, da realidade, em que se insere o aluno, locus que oferecerá para ele o sentido do que se estuda. É simples: para que em sala de aula se ensinem valores básicos do próprios do convívio civilizado, como a liberdade, ao professor deve ser assegurada a liberdade de ensinar. Mas para essa ideologia extremista, a educação é de responsabilidade da família, com seus valores morais e religiosos (assim também se explica a defesa do homeschooling). Ao professor, resta o papel de instruir o aluno: “transmitir conhecimento neutro, sem mobilizar valores e sem discutir a realidade do aluno”.

Nesse quadro, típico de ideologias iliberais, que apostam no confronto do “nós versus eles”, o professor fica do outro lado. Distancia-se do aluno por um amplo espectro de questões morais, religiosas e políticas. Deixa de ser um aliado importante no processo de construção do aprendizado. A consequência lógica é o despertar de sentimentos negativos em relação ao docente. Como se a vida se reduzisse ao maniqueísmo de uma luta entre as pessoas do bem contra as pessoas do mal. E o discurso crítico e questionador do professor pode – e deve – ser interrompido, cancelado. Como em um ato de legítima defesa.

Uma das faces mais perversas desse modelo é posicionar o aluno como um fiscal da conduta do professor. Pois caberá a ele denunciar aquele professor que se distanciar da pretendida neutralidade e abusar da sua liberdade de ensinar – seja lá o que isso for. A prática da delação fica instituída. E há a ruptura de um elemento fundante da relação professor-aluno, decisiva para o processo de aprendizagem: a confiança. E, para delatar, para provar o desvio funcional do professor, nada melhor que smartphones. Fecha-se o circuito entre a ideologia e a tecnologia.

Um terceiro fator, dentre tantos outros, é de ordem comportamental. E aqui está em causa a percepção de uma geração hiperconectada, cujo processo de sociabilização é impactado pela tecnologia digital. A diminuição da corporalidade, do contato visual, afeta o desenvolvimento psíquico-emocional da denominada iGen (ou geração Z). Presente está a percepção de um estudante vulnerável, cuja parentalidade procurou, ao máximo, lhe conferir segurança. E nesse caminho seguro, uma hiper-proteção. E, talvez, nesse caminho a constituição de pessoas frágeis. Afinal, “o excesso de proteção não emancipa, o excesso de proteção infantiliza”.

A preocupação com a segurança física dos filhos – que se acentua em uma sociedade violenta como a brasileira, onde a preocupação com a segurança pública é constante – repercute na exigência de uma segurança emocional. Mas “A ultra-segurança pega as crianças, que são anti-frágeis por natureza, e as transforma em jovens adultos mais frágeis e ansiosos. (…).” E esses jovens, no mais das vezes, sentem-se inseguros, ameaçados, ao se depararem com uma aula que contrapõe o seu mundo. A problematização dos fatos, da realidade, produz um desconforto, uma insegurança que dispara um gatilho: o da proteção. E a proteção se alcança denunciando aquele que, em sua visão, ofende. E a potência da denúncia é dada pela repercussão no auditório imensurável das redes sociais. E o professor? Bem, o professor segue.

Plinio Melgaré é professor universitário, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS (1990) e mestre em Ciências Jurídico Filosóficas pela Universidade de Coimbra (2001). Atualmente, é palestrante da Escola Superior da Magistratura da AJURIS e da Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul.

 

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