OPINIÃO

Ano Novo

Barbosa Lessa / Publicado em 22 de março de 2000

Este último reveillon nos envolveu com uma aura muito forte, sob o eco dos grandes veículos de comunicação, enfatizando não só a passagem do ano e da década e do século mas, principalmente, a aproximação do novo milênio. A nítida sensação de estarmos adentrando, vivos, o sem-fim da eternidade.

Tal vibração não apagou do meu passado, porém, a imagem de meu primeiro reveillon, em 1939, na Piratini da minha infância. A gente se divertia em qualquer dia e em qualquer hora, soltando pandorga ou jogando pião, mas por aquela época começaram a “pintar” as grandes datas comemorativas. O 6 de janeiro, Dia de Reis, com seus ternos musicais cantando de casa em casa e no final nos oferecendo a gostosa “mesa dos inocentes”, estava sendo substituído pelo 25 de dezembro, Dia de Natal, com um tal de Papai Noel vindo trazer presentes para nós, na casa de cada um. O Carnaval era gozado, com seus palhaços mascarados e com os irmãos Valente saracoteando em torno de um boi feito de pano, mas com chifres de verdade.

Aí ocorreu a fundação da Sociedade Recreio Piratiniense – o Clube, para os íntimos – o todos quantos tinham dinheiro para pagar a anuidade de inscrição e as mensalidades se apresentaram para participar de um baile fino, na passagem do 31 de dezembro para 1º de Janeiro, a exemplo do que ocorria nos elegantes salões de Pelotas. Antes, o barbeiro Seu Benvenuto (ou Venuto) foi contratado para formar uma orquestra completa, à base de instrumentos de sopro.

E, quando ele lascou a primeira valsa, lá estavam rodopiando o meu pai, a minha mãe, o meu irmão Paulo e eu, entreverados com os demais piretinienses, cada qual procurando exibir a mais civilizada elegância. E fiquei encantado ao dançar com a Ieda, depois com a Neuma e a Norma; minhas companheiras de brinquedo de roda até pareciam saída dos coloridos livros de contos de fadas. Beleza pura!

Ao longo do ano de 39 os bailes continuaram se realizando, mensal ou quinzenalmente, e assim continuou o fraternal convívio de pais e filhos no salão do Clube. O exemplo dos dançarinos mais hábeis ia nos animando a experimentar passos mais caprichados. Mas o emocionante, mesmo, era podermos dançar, de qualquer jeito que fosse, em pé de igualdade com os mais velhos. Aqui, deixávamos de ser tratados como crianças.

À medida que se aproximava o reveillón de 40, mais nos emocionávamos com a antevisão de uma confraternização inesquecível. Mas, em fins de outubro, entrou em cena o Juiz da Comarca, dr. Décio d´Ávila, anunciando a todo mundo que, por força da lei, daquele dia em diante estava proibida a participação de menores nos bailes dos adultos; quando muito, que se realizassem brincadeiras vespertinas, dedicadas especialmente aos piás e gurias. Foi a primeira vez que senti, na própria carne, o mandonismo do Estado. Quase entrei em depressão.

A título de compensação, fui dar uma olhada nos ensaios que Seu Venuto vinha realizando, com a orquestra, para introduzir recentes sucessos no repertório do reveillón. Então notei que o Aldrovando – também pistonista – fora relegado à condição de marcador de ritmos, baterista. No mesmo dia me ofereci para substituí-lo na bateria, na noite de 31 de dezembro para 1º de janeiro. “Porque preço?”, perguntou o Seu Venuto. “Um ou dois pilas, qualquer coisa que dê para tomar uns guaranás”.

Na grande noite, quando começaram a entrar no Clube os primeiros participantes do festão, o dr. Décio teve um sobressalto ao me enxergar. Perguntou- me, com cara de brabo, o que eu estava fazendo ali.

– Não vim dançar. Estou trabalhando na orquestra.

E, embora espectador, vibrei semiparticipando do reveillón de 40.

* Luiz Carlos Barbosa Lessa é jornalista, historiador, folclorista e escritor.

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