OPINIÃO

Cinco mitos sobre o abuso sexual na infância e adolescência

Por Carmen de Oliveira / Publicado em 21 de outubro de 2019

Foto: Creas/Divulgação

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Dados do Ministério da Saúde sobre a violência sexual em 2018 sinalizam a predominância na infância e adolescência (72% do total), sobretudo nas meninas (74% dos casos), com uma ocorrência precoce (51% antes dos 5 anos de idade) e tendência à repetição (42% são vítimas recorrentes).

Esta situação evidencia duas desigualdades básicas: de gênero (com a naturalização de uma sexualidade masculina invasiva) e de geração (pela imposição dos adultos, através da autoridade e uso da força). Assim sendo, as estatísticas sobre os abusos sexuais no país revelam o óbvio: o machismo e o adultocentrismo fazem mal às novas gerações. Por outro lado, há uma aguda contradição, como sugere o psicanalista Contardo Calligaris: quanto mais sexualizamos as crianças, mais queremos defendê-las do sexo, reforçando alguns tabus.

Destacamos, aqui, cinco mitos. O primeiro é a ideia da casa como um lugar protetivo, ao passo que a rua e as pessoas desconhecidas são vistas como fatores de risco. Contudo, a maioria dos abusos sexuais (70% do total) acontece no ambiente familiar, em situações de consanguinidade ou proximidade. Esta convivência diária com os seus agressores mobiliza sentimentos de desamparo e medo nas vítimas e perpetua esta violência, uma vez que em 1/3 dos casos o agressor abusou de outras pessoas no mesmo contexto doméstico. Por isto, costuma-se dizer que o abuso sexual não diz respeito somente ao agressor e à vítima, mas à família inteira.

Outro tabu se refere à suposta incapacidade das pequenas vítimas em “falar a verdade”. No caso das crianças, se diz que elas têm uma linguagem pouco desenvolvida e podem mentir ou fantasiar sobre a violência; enquanto que uma acusação feita por adolescentes é considerada suspeita porque eles teriam discernimento para recusar o abuso sexual. Ou seja, há uma dupla vitimização: dos abusos sexuais e da incredulidade dos adultos. Isto concorre para que esta forma de maus tratos seja uma das mais ocultadas, uma vez que a criança e o adolescente têm medo de falar e os adultos temem ouvir.

O terceiro mito se refere ao valor dado à denúncia, em especial nas campanhas educativas e na divulgação de canais para esta finalidade. Embora estas iniciativas favoreçam a mobilização social e a reversão da invisibilidade do problema (uma vez que a estimativa é de que apenas 10% das ocorrências sejam notificadas), nem sempre se leva em conta que o silêncio das vítimas está associado a sentimentos de culpa, vergonha e medo, bem como a fantasmas sobre a dissolução familiar.

Assim sendo, levar adiante a denúncia irá impor às vítimas protocolos de atendimento que nem sempre consideram esta complexidade e tampouco são adequados a uma escuta protegida. Além disto, elas enfrentarão outros constrangimentos, tais como a relutância dos profissionais em reconhecer o fato e a insistência dos tribunais na materialidade das provas, além dos impasses familiares quanto à punição do agressor, especialmente quando se trata do único provedor financeiro da família.

Portanto, os especialistas apontam que a prioridade deveria estar na revelação, através da confidência a pessoas da confiança, ou no processo de detecção, quando o meio familiar ou profissional identifica mudanças físicas e comportamentais, por exemplo. Entretanto, cabe ressalvar que em contextos com atitudes negativas acerca da sexualidade, a revelação e o processo de detecção serão mais raros, determinando um tempo maior de exposição à violência.

O quarto mito está associado à suposição de que o trauma infantil tende a ser esquecido com o passar do tempo. Muito embora diferentes teorias sobre o desenvolvimento humano apontem a plasticidade emocional da criança e do adolescente, as pesquisas indicam que o grau de reversibilidade das marcas deixadas pelo abuso sexual varia de acordo com a idade da vítima, a duração e o tipo do abuso, o grau de violência e a relação com o abusador. Outra variável é o cuidado disponibilizado, o que no Brasil se constitui em agravante do trauma pois ainda é pequena a oferta de acompanhamento após a denúncia (em menos de 10% dos casos há intervenção médico-social, policial ou judiciária), sendo raros os serviços especializados.

Por isto, é comum o agravamento dos sintomas, tais como transtornos de ansiedade e depressivos, agressividade, distúrbios alimentares, problemas escolares, retraimento a figuras masculinas, isolamento social e erotização do comportamento. E um ciclo de repetição acontece: mulheres que sofreram abuso sexual na infância têm mais probabilidades de estabelecer relações com homens abusivos e menor capacidade de proteger suas filhas.

O último mito são as restrições acerca da educação em sexualidade pois se supõe de que aumenta a atividade sexual. No entanto, a Unesco publicou um documento em 2014 (Orientações Técnicas de Educação em Sexualidade para o Cenário Brasileiro) com uma revisão de estudos em vários países, feita pela Universidade de Oxford. As pesquisas sinalizam que a falta de informação sobre a sexualidade é o que torna as novas gerações mais vulneráveis, ao passo que a inclusão curricular deste tema contribui para o adiamento do início da vida sexual, a redução do número de parceiros e o aumento do uso de métodos contraceptivos.

Em síntese, precisamos enfrentar a gravidade do abuso sexual no Brasil com mais ciência e menos dogmas. Do contrário, este problema permanecerá nas sombras e continuará a nos assombrar.

 

*Carmen de Oliveira é psicóloga. Escreve mensalmente para o site do jornal Extra Classe.

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