EDUCAÇÃO

Orientação sexual em aula para prevenir violências

O debate sobre gênero e diferenças deve estar na agenda de profissionais da educação e da sociedade para enfrentar a intolerância
Por Clarinha Glock / Publicado em 10 de outubro de 2019

Imagem: Reprodução

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Projeto de lei “escola sem partido” e atos de censura recentes reforçam a necessidade de se ampliar a discussão nas escolas

No dia 3 de setembro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro determinou ao Ministério da Educação elaborar um projeto de lei contra a ideologia de gênero no ensino fundamental. A decisão, comunicada por Twitter, foi motivada pela ação, momentos antes, do governador de São Paulo, João Doria, que mandou recolher um livro de Ciências do 8º ano da rede estadual paulista que mencionava a diversidade sexual e explicava termos como transgênero, homossexual e bissexual. “Não concordamos e nem aceitamos apologia à ideologia de gênero”, escreveu Doria no Twitter.

“O Parlamento, de modo geral, vive um bombardeio constante pelo discurso falacioso da ideologia de gênero”, diz a deputada federal Maria do Rosário (PT/RS). Em seu mandato, a parlamentar trabalha para evitar a aprovação de projetos de Escola sem Partido e do ensino domiciliar, que, a seu ver, estão relacionados à busca pelo controle absoluto da educação. “O pior que pode acontecer é a escola se submeter a pressões por denuncismo”, enfatiza. Maria do Rosário, que também é professora, lembra que é dentro da sala de aula, falando sobre temas como sexualidade, que se pode detectar casos de abusos e outras violências. Ela integra o Fórum de Combate à Intolerância e ao Discurso de Ódio, o qual, entre outras ações, lançou um canal para acolher denúncias de perseguição a professores e professoras nas escolas.

O fato é que, mesmo que em 2017 o Ministério da Educação tenha retirado o termo “orientação sexual” e tópicos relacionados a “gênero” da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que passou a valer neste ano, o tema deve ser falado em sala de aula, respeitando as diferenças, diz a professora Cecília Farias, integrante da direção do Sinpro/RS. “Não tratar da questão é desconsiderar a realidade”, afirma.

Conteúdos pedagógicos relacionados à orientação sexual integram o currículo das 56 escolas municipais de Ensino Fundamental de Porto Alegre como tema transversal, a exemplo de áreas como culturas indígenas e africanas, segundo a Secretaria Municipal de Educação (Smed). Através do programa Galera Curtição, realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde, estudantes conversam sobre sexualidade, gênero, prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, bullying, violência, uso abusivo de álcool e outras drogas e preconceito racial, por meio de jogos e brincadeiras. Já passaram pelo programa 20 mil estudantes.

Nas escolas estaduais, a diversidade sexual e questões de gênero estão presentes na formação de professores e professoras e nos projetos em sala de aula feitos em parceria com universidades, Secretaria de Saúde, Ministério Público, Procuradoria Geral, ONGs, informa Helena Martins, articuladora de temas transversais de educação e direitos humanos da Divisão de Políticas Específicas para a Educação da Secretaria Estadual de Educação (Seduc). “O tema é abordado sempre que há interesse”, garante Marta Ribeiro Bulling, chefe da Divisão de Normatização e Políticas Educacionais. A abordagem é natural e amparada pelo direito à igualdade presente na Constituição Federal, bem como em Pareceres do Conselho Estadual de Educação (CEEEd/RS), no Referencial Curricular Gaúcho, e no Plano Estadual de Educação. Um Parecer do CEEEd/RS regulamentou o uso do nome social na escola e nos certificados de conclusão para estudantes transexuais e travestis.

Preconceito se combate com informação

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Na prática, no entanto, situações de discriminação por orientação sexual acontecem diariamente, às vezes de forma velada, outras nem tanto, em escolas públicas e privadas, e mesmo em universidades. Sal Facco era estudante de Pedagogia na Faculdade de Educação da Ufrgs quando ouviu de uma colega de turma: “Tu é gay? Tu me enganou, deixou eu gostar de ti! Não posso me relacionar com pessoas gays, o pastor não permite!”. O choque inicial quase fez Sal desistir do curso. Mesmo sendo bissexual assumida, foi a agressividade de quem até então convivia com ela de forma pacífica que mais lhe machucou. Uma conversa com seu professor, que mobilizou a faculdade para discutir o respeito à diversidade, ajudou-a a seguir em frente. Hoje Mestranda em Educação, recorda que foi a colega que a discriminou quem saiu. “Ela disse que só voltaria quando eu não estivesse mais ali estudando”, conta. A moça havia relatado que fazia parte de uma igreja que incentivava jovens a entrarem na Pedagogia para, depois, darem aulas nas escolas evangélicas. Após um tempo, voltou para a faculdade e se graduou.

Embora neste caso o preconceito estivesse associado à religião, nem sempre isso acontece. A pedagoga Maria Beatriz Guterres, que era assessora da Smed e participou do projeto de formação de educadores, em parceria com o Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual nos anos 1990 até 2001, foi testemunha de como uma freira que dirigia uma creche comunitária conveniada, mantida por uma instituição religiosa, enfrentou a agressividade de um pai revoltado porque seu filho havia se fantasiado com roupas femininas em uma brincadeira na turma de educação infantil. “As crianças podiam se fantasiar e se pintar, e levar a fantasia para casa. Um menino levou uma saia, blusa, colares. No outro dia, o pai mandou um bilhete desaforado, dizendo que não queria que seu filho se afeminasse. Foi à escola, ofendeu a professora”, conta Maria Beatriz. A freira, calma e objetivamente, conversou com esse pai e reiterou que a instituição acreditava na importância do lúdico e da brincadeira, e que não seria o fato de o menino vestir uma fantasia que iria determinar sua opção sexual.

“A escola deve ser um espaço de representatividade da sociedade”, resume Cheila Schröer, diretora da Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental Centro Integrado de Desenvolvimento, de Porto Alegre, onde a Filosofia faz parte do currículo, e alunos e alunas aprendem a se comunicar por Libras, independentemente de haver estudantes surdos nas turmas. “Nas aulas de Filosofia, as crianças também aprendem a se preparar melhor para uma relação consigo e com as outras pessoas”, diz Cheila. Quando a escola, com 30 anos de atuação, recebeu pela primeira vez um casal de homens que havia adotado uma menina, e eles riscaram na ficha de matrícula o item “pai/mãe” e colocaram apenas seus nomes, a diretora percebeu que era preciso mudar. Agora, a ficha pede a identificação de “responsáveis” pela criança. Recentemente, a escola ofereceu um curso aberto à comunidade sobre nomenclatura da diversidade. Aos poucos, todo mundo vai aprendendo a lidar com as diferenças. Por exemplo: Cheila descobriu que um estagiário vai fazer a cirurgia de retirada de mama para confirmar sua identidade masculina nascida num corpo de mulher. A diretora lhe disse que teria o tempo que precisasse para se recuperar. “Ele ficou aliviado”, relata.

Tentativas de suicídio podem estar ligadas à repressão e ao bullying

Na Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental Centro Integrado de Desenvolvimento, de Porto Alegre, a Filosofia faz parte do currícu lo e os alunos aprendem a se comunicar por Libras, mesmo quando não há estudantes surdos nas turmas. “A escola deve ser um espaço de representatividade da sociedade”, diz a diretora Cheila Schröer Imagem

Foto: Igor Sperotto

Na Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental Centro Integrado de Desenvolvimento, de Porto Alegre, a Filosofia faz parte do currícu lo e os alunos aprendem a se comunicar por Libras, mesmo quando não há estudantes surdos nas turmas. “A escola deve ser um espaço de representatividade da sociedade”, diz a diretora Cheila Schröer

Foto: Igor Sperotto

Um dos resultados da falta de diálogo e de respeito às diversidades é a violência. Uma pesquisa nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil, realizada entre dezembro de 2015 e março de 2016, pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, analisou as respostas de 1.016 estudantes LGBT entre 13 e 21 anos. Os dados coletados através de redes sociais e e-mail mostraram que cerca de 73% que se identificavam como lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais foram agredidos verbalmente, e 36% foram agredidos fisicamente nas escolas nesse período. Alguns que sofreram mais agressões evidenciaram depressão e desejo de cometer suicídio.

“Pergunte aos psiquiatras que atendem nos plantões de saúde mental da Vila Cruzeiro e IAPI sobre o número de casos de tentativa de suicídio entre jovens”, sugeriu a mãe de uma estudante de escola particular com quem a reportagem do Extra Classe conversou sobre orientação sexual nas escolas. Ela integra um grupo de cerca de 50 mães, cujos filhos e filhas já tentaram suicídio – alguns por intolerância de gênero e de orientação sexual. “O sofrimento é recorrente”, desabafa.

Em Porto Alegre, os postos de Pronto Atendimento localizados nos bairros IAPI e Vila Cruzeiro são a porta de entrada para o atendimento via SUS nesses casos. Levantamento feito pela Coordenação de Doenças Crônicas e Agravos Não Transmissíveis da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre sobre notificações de violência interpessoal e autoprovocada registradas pelos serviços de saúde mostrou o aumento de tentativas de suicídio entre jovens de 10 a 19 anos, passando de 232 notificações em todo o ano de 2017, a 317 em 2018 e chegando a 201 até 7 de setembro de 2019. Quando a análise leva em conta a orientação sexual, é possível identificar que a violência autoprovocada por jovens bissexuais e homossexuais passou de 23 casos relatados em todo o ano de 2017, para 40 em 2018 e 39 até 7 de setembro deste ano.

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