COLUNISTAS

Aprendendo a praguejar

Por Luis Fernando Verissimo / Publicado em 1 de dezembro de 2023

 

Ilustração: Edgar Vasques

Ilustração: Edgar Vasques

“Bárbaros” era o nome dos gregos para quem não falava grego. Ficou sendo o nome de todos que produzem ruídos estranhos em vez da nossa língua e, não tendo uma cultura inteligível, só podem ter uma cultura inferior, ou cultura nenhuma.

Em troca do ouro que levava do Novo Mundo, a Europa trouxe uma língua de gente e a palavra de Deus e a  certeza de que a troca era justa. Com a linguagem, vinham a História e o discernimento da alma e a possibilidade de uma civilização.

O fato de o Mundo Novo já ter civilizações, e uma História, apenas contada de outro jeito, era inconcebível.

Para muitos, continua inconcebível.

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A Tempestade não é exatamente uma metáfora sobre o colonialismo. Como é a última peça de Shakespeare, talvez seja mais uma reflexão sobre o sortilégio da arte e o poder do artista de criar mundos. Termina com Próspero, o autor-feiticeiro, pedindo a indulgência do público para os excessos da sua imaginação, e suas preces para salvá-lo do desespero. “And my ending is despair, unless I be relieved by prayer.”

Ariel, Caliban, Miranda, a tempestade, a ilha são caprichos literários, frutos da linguagem, essa civilização à parte em que os poetas podem tudo.

Mas as alusões às terras recém-descobertas (nem tão recém assim, cem anos já tinham se passado desde a viagem de Colombo quando A Tempestade foi encenada pela primeira vez) são claras, e dizem que Shakespeare se inspirou para a sua trama no naufrágio de colonos ingleses a caminho da Virgínia perto das Bermudas.

Caliban, principalmente, ficou consagrado como a representação da mistura e fascínio e repulsa que o selvagem provocava na Europa da época. Perguntava-se então que espécie de homem era o selvagem, e era o mesmo que perguntar que espécie de selvagem podia ser o homem.

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Antes dos descobrimentos, discutia-se o que definia o homem em relação aos animais.

Segundo alguns apressados, o homem era a única criatura com bunda. Uma decorrência da sua inédita estatura ereta.

Aí os primeiros exploradores chegaram ao Bornéu e descobriram orangotangos tão eretos quanto o homem, e decididamente bundudos.

A articulação vocal seria outra habilidade exclusivamente humana, um critério rapidamente destruído com a descoberta do papagaio. Mas produzir sons diversificados não significava ter uma linguagem, uma cosmogonia e e uma história registrada, além de mitos e rituais.

Os “índios” descobertos por Colombo eram gente ou não eram? Só em 1537 um “edicto” papal deu a resposta oficial. Eram.

Mas continuavam sendo bárbaros no sentido grego, incapazes de uma civilização consequente até que aprendessem a língua do conquistador.

Esse critério perdurou por muito tempo depois de 1537.

O livro de um pesquisador húngaro chamado Emil Torday sobre uma comunidade indígena africana que retinha uma história detalhada e aferível do seu próprio desenvolvimento causou espanto e desdém nos meios científicos europeus quando foi publicado, não na era elizabetana, mas em 1925.

Ainda se acreditava então que os povos primitivos não tinham nada parecido com uma ciência do passado e que um sentido histórico, e com ele a possibilidade do autoconhecimento e do progresso, era uma dádiva do colonizador branco e da sua linguagem.

Ainda era esse o espírito das comemorações da descoberta da América em 1992. Quando só o que se estava comemorando era a entrada da América nos livros de Próspero. praguejar

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A ilha de A Tempestade fica, segundo a lógica, no Mediterrâneo, já que os náufragos viajavam da Tunísia para a Itália quando Próspero conjurou o seu destino.

Dirigiam-se a Milão, para onde o próprio Próspero declara que irá no fim da peça, para uma aposentadoria merecida, durante a qual “cada terceiro pensamento será da minha sepultura”.

Tudo se arruma no final. Os amantes se casam, os inimigos se reconciliam, o autor renuncia às suas bruxarias e anuncia seu silêncio.

Ariel, o fruto bom da sua imaginação, ganha a liberdade. Mas Caliban, o fruto monstruoso, só troca de mestres. Numa versão da peça que vi, há anos, em Paris, Peter Brook colocou atores do Terceiro Mundo em todos os papéis, menos no de Caliban, que era branco.

Mas nem travestido e politicamente corrigido Caliban escapava do seu destino. Na linguagem civilizada do Ocidente, Caliban será sempre ou servo ou monstro. praguejar

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A revolta contra o eurocentrismo, o multiculturalismo, etc. mostram que levou tempo, mas Caliban finalmente dominou a linguagem que o dominava. Como ele mesmo diz a Próspero, na peça:

“Você me ensinou a linguagem e meu lucro nisso é que aprendi a praguejar”.

Os “bárbaros” do mundo todo, reagindo à sua exclusão de um centro que fica com todo o ouro e em troca lhe impõe sua cultura e seus valores, estão praguejando como gente grande.

* As crônicas desta coluna são republicações do acervo do autor. 

Luis Fernando Verissimo colabora mensalmente com o Extra Classe desde 1996.

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