POLÍTICA

Protestos contra a falta de luz e água, a nova realidade dos serviços privatizados

Após temporal que arrasou a Grande Porto Alegre na noite de 16 de janeiro, moradores bloqueiam ruas e fazem barricadas na capital e região contra desabastecimento
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 19 de janeiro de 2024
Protestos contra a falta de luz e água, a nova realidade dos serviços privatizados

Foto: Redes Sociais/ Reprodução

Em diversos bairros de Porto Alegre, a exemplo do morro da Vila Maria da Conceição, moradores montaram barricadas em protestos contra a demora da Equatorial Energia em restabelecer o abastecimento

Foto: Redes Sociais/ Reprodução

Os protestos em várias regiões do estado e em Porto Alegre devido à demora no reestabelecimento da energia elétrica pela Equatorial e a RGE, passados três dias do temporal que atingiu o estado são um fenômeno inédito no Rio Grande do Sul, afirmam especialistas gaúchos do setor elétrico.

Quando a empresa era estatal, explica um servidor aposentado da Companhia de Energia Elétrica (CEEE), havia quedas no abastecimento devido a temporais, mas nem nos casos mais extremos a sensação de abandono chegava perto do que é agora. Outra diferença é que, antes da privatização, os serviços de manutenção funcionavam: era comum a população se deparar com equipes trabalhando nas ruas, contrapõe.

Na terça-feira, 16, chuvas torrenciais com rajadas de vento que ultrapassaram 100 quilômetros por hora surpreenderam a população da Região Metropolitana de Porto Alegre. No rastro do temporal, uma pessoa morreu em Cachoeirinha, houve alagamentos, queda de árvores, postes da rede elétrica e muita destruição com maior ou menor intensidade por todo o estado.

A região mais atingida pelo apagão na capital foi a zona Sul. Mais de 1,1 milhão de consumidores ficaram sem luz no estado nas primeiras horas de temporal. Na quarta-feira, 17, a CEEE Equatorial ainda contabilizava pelo menos 600 mil clientes sem luz em sua área de abrangência. A previsão é que o corte no abastecimento se estenda até o final de semana em algumas regiões.

Na tarde de quinta-feira, 18, ocorreram diversos protestos de moradores contra a falta de energia elétrica e de água na capital. No bairro Santana, moradores bloquearam a rua Leopoldo Bier. Na zona Sul, a av. Divisa, no Cristal, foi fechada a partir das 18h por populares, e a av. Icaraí teve o trânsito bloqueado nas proximidades da Dr. Campos Velho. Na Restinga, a população armou barricadas para denunciar o descaso no abastecimento.

O governador Eduardo Leite (PSDB) reuniu-se com a presidente da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs), Luciana Luso de Carvalho, na sexta-feira, 19, para tratar  do apagão nos serviços de energia elétrica no estado.

No final da tarde, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), por meio da Defesa Civil Nacional, reconheceu a situação de emergência em 22 cidades gaúchas.

Com a CEEE estatal seria diferente

Um servidor aposentado da Companhia de Energia Elétrica (CEEE) que chegou a exercer cargos na mais alta administração da empresa antes da privatização recorda que, de fato, houve casos de demora para o religamento da energia após eventos climáticos extremos na época da empresa como estatal.

“A diferença, é que a população até reclamava, mas nunca chegou ao que está acontecendo agora, porque, simplesmente, via as equipes trabalhando nas ruas”, afirma o servidor, que trabalhou durante 25 anos na estatal. Como atua como consultor do setor elétrico nacional, pediu para não ser identificado.

Na condição de quem conhece o setor elétrico, ele é categórico ao afirmar que não é cedo para deduzir que a CEEE estatal faria diferente da concessionária Equatorial, como insinuou uma colunista do jornal Zero Hora em meio ao caos que se seguiu ao temporal.

“Trabalho para a iniciativa privada hoje, mas é claro que a CEEE faria diferente. Para começar, tinha quadros próprios e experientes. Hoje, grande parte dos problemas se dá pela terceirização desenfreada que foi promovida com a privatização. Assim, as equipes técnicas ao serem acionada em cima da hora, por falta de experiência e até de compromisso mesmo, acabam batendo cabeças e demorando para solucionar os problemas. O artigo, na minha opinião, só foi para passar pano”, avalia.

Protestos no RS, SP e Rio

Um dos primeiros protestos populares foi registrado no dia 17, em Viamão. Após 48 sem energia, ocorreram pelo menos 25 atos com direito a ruas bloqueadas em Porto Alegre e uma manifestação na noite de quinta-feira, 18, em Canoas.

Essas manifestações repetem o ocorrido em novembro passado em São Paulo e no Rio de Janeiro, quando populares se revoltaram contra a demora no atendimento da empresa italiana Enel, responsável por boa parte da distribuição de energia nos respectivos estados.

Os protestos tiveram momentos de tensão. Em São Paulo, um policial militar levou um tiro na perna ao tentar dispersar moradores que armaram uma barricada para protestar, após cinco dias sem energia elétrica.

Exemplo de proatividade

Ex-presidente da CEEE entre os anos de 1999 e 2022, Vicente Rauber lembra que logo no início de sua gestão na estatal, um forte tufão devastou o distrito de Águas Claras, em Viamão.

“Em 48 horas nós reconstruímos 70 quilômetros de rede. O diretor de distribuição da época, literalmente transferiu o seu gabinete para uma oficina lá em Águas Claras. Ele estava o tempo inteiro operando, mandando trazer material, mandando vir turmas das outras gerências”, relata Rauber.

Ele recorda que foi um “período desafiador”. A CEEE, então uma empresa verticalizada, com Geração, Transmissão e Distribuição, operando em um único CNPJ, vinha de um processo em que a sua distribuidora, nas palavras de Rauber, “a bilheteria do sistema”, tinha aberto dois terços de sua receita devido à privatização feita pelo governo Antônio Britto (PMDB) e ficado com 80% do passivo das áreas que foram vendidas para a RGE e a AES Sul à época.

Mesmo nesse cenário desfavorável houve iniciativas inovadoras por parte da estatal, como a contratação de um meteorologista que monitorava os principais serviços do país para acionar as gerências da estatal com o objetivo de montar planos de contingência de acordo com os alertas de necessidades.

“Tínhamos capacidade, mesmo nas piores situações, de restabelecer muito rapidamente a energia, porque nós já tínhamos turmas mobilizadas”, explica Rauber.

Outro tema enfrentado, lembra o ex-dirigente, são a gestão do espaço físico das redes. As árvores, por exemplo, “que são a grande questão que hoje se discute”, têm um papel fundamental, explica Rauber, lembrando que estatal de sua época tinha uma relação permanente com a Secretaria do Meio Ambiente de Porto Alegre e com os outros municípios para a realização de podas preventivas.

Também na época de CEEE do governo Olívio Dutra (PT) foi instalado o primeiro cabo ecológico na capital, uma fiação especial, protegida que, mesmo passando entre árvores, mitigava a possibilidade de curtos circuitos por ações do vento.

Serviço público na mão de empresas privadas

Para Rauber, “matematicamente” se comprova que serviços públicos essenciais não podem estar na mão de empresas privadas.

“A empresa privada só existe, só sobrevive, se ela maximizar o seu lucro. No caso da energia elétrica e da água, os serviços para serem entregues com uma boa qualidade e terem uma tarifa razoável, têm que ser públicos”, reflete.

Para o ex-presidente da CEEE, essa questão coloca a iniciativa privada numa contradição. “Veja, não estamos condenando as empresas privadas. Só dizendo que, para elas poderem existir, precisam ter lucro que agrade seus acionistas. Então, veja, se você coloca água e a energia elétrica na mão de uma empresa privada, ela terá, no mínimo, dificuldades para fazer um bom atendimento, fazer um atendimento universal”, pondera.

Ele conclui que, para aumentar os lucros, as empresas privadas recorrem ao corte de pessoal e à terceirização. “Essa é a realidade do setor elétrico nacional”.

Comentários