SAÚDE

Doação de órgãos deve ser política de Estado, defende Joel de Andrade

Por Valéria Ochôa / Publicado em 1 de outubro de 2020

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

O médico intensivista Joel de Andrade, 55 anos, é uma autoridade quando se trata de sistema de doação de órgãos e transplantes no país. À frente da coordenação de Transplantes de Santa Catarina há 15 anos, ele tirou o estado da posição de dependente da doação de órgãos de outros estados e o levou à liderança na doação de órgãos do país, reduzindo a negativa familiar de 70% para 25%. Nesta entrevista, realizada ao longo de setembro – mês em que se comemora o Dia Nacional da Doação de Órgãos –, entre conferências, reuniões de equipe, plantões, viagens pelo estado, Joel conta como Santa Catarina deu essa virada e faz um detalhamento do modelo de coordenação de transplantes implantado. Ele destaca: a doação de órgãos em Santa Catarina passou de política de governo para política de Estado, cujas principais decisões são tomadas pelo seu corpo técnico. Joel assinala, ainda, que além de salvar vidas, a realização de transplantes expressa uma economia importante aos cofres públicos.

Extra Classe – O estado de Santa Catarina despontou, nos última década, na liderança em doação de órgãos, superando o Rio Grande do Sul, referência na área. Mesmo com a pandemia, mantém um número expressivo de doações. A que se deve esse resultado?
Joel de Andrade – A liderança de Santa Catarina no cenário da doação de órgãos – proporcional à sua população, que é como se mede a atividade da doação de cada região, em um país ou do país em relação ao mundo –, se deve essencialmente a um fator: a escolha do modelo de coordenação de transplantes que Santa Catarina fez. É bastante curioso, porque nós fizemos essa escolha orientados por um médico gaúcho, o Dr. Valter Garcia (Nota do editor: especialista em transplantes de órgãos desde a década de 1970 e atual chefe do serviço de transplante renal do hospital Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre), que dez anos antes tinha passado um bom período no País Basco, uma das principais regiões de doação da Espanha, e aprendido sobre o modelo espanhol. Pouco tempo depois, eu fui à Espanha, conheci o modelo e começamos um caminho aqui que eu resumo em duas atividades essenciais: organização do sistema, avaliando cada etapa do processo, e como torná-la melhor e mais eficiente, desde a identificação de potenciais doadores, passando pelo diagnóstico de morte encefálica, a entrevista familiar e a distribuição dos órgãos; e, para torná-la melhor, investindo naquilo que, eu acredito, seja a primeira intervenção a ser realizada para melhorar o sistema de transplantes, a educação. Nós fizemos isso à exaustão. Hoje, Santa Catarina tem dois cursos estaduais por ano de coordenação de transplantes, de dez a 15 cursos regionais e mais algumas atividades esporádicas que são desenvolvidas em todo o estado com os coordenadores de transplantes.

EC – A educação a que te referes está voltada a quem?
Joel – Toda a nossa atividade de educação está voltada para o treinamento dos coordenadores de transplantes. Com isso, o sistema foi progressivamente crescendo, melhorando. Para se ter uma ideia, em 2007 nós tínhamos 70% de não autorização familiar. A partir de 2008, passamos a realizar educação mais sistemática e, em 2010, incorporamos o curso de comunicação de notícias de situações críticas, realizado por instrutores espanhóis que treinaram multiplicadores aqui, e passamos a treinar quase 700 profissionais de saúde de Santa Catarina com essa atividade. Assim, e com outras várias iniciativas de correção de rota, saímos dos 70% de não autorização familiar para 25% no último ano. Agora, no meio da pandemia, subiu um pouquinho… para próximo de 30%.

EC – E em relação aos percentuais de perdas de órgãos?
Joel – Quanto à manutenção clínica do potencial doador, ou seja, as medidas clínicas que são tomadas para que os órgãos se mantenham em boa qualidade, nós tínhamos, em 2010, 30% de perda por parada cardíaca. Implementamos a diretriz de manutenção do potencial doador e, em cima dessa diretriz, trabalhamos uma divisão de tarefas junto às coordenações com a incorporação de um tutor/monitor da manutenção. Com isso, baixamos as perdas de 30% para menos de 5%, que é nossa taxa atual, sendo que a Espanha, que tem os melhores resultados do mundo, tem uma taxa por volta de 3%. Ou seja, resultados muito bons.

A questão da doação de órgãos em Santa Catarina deixou de ser uma política de governo, uma política míope para durar três ou quatro anos, e passou a ser uma política de Estado, cujas principais decisões são tomadas pelo seu corpo técnico e sempre levadas e aprovadas pela Comissão Intergestores Bipartite

Foto: Mafalda Press

A questão da doação de órgãos em Santa Catarina deixou de ser uma política de governo, uma política míope para durar três ou quatro anos, e passou a ser uma política de Estado, cujas principais decisões são tomadas pelo seu corpo técnico e sempre levadas e aprovadas pela Comissão Intergestores Bipartite

Foto: Mafalda Press

EC – Quem são os protagonistas desta decisão de qualificar o sistema de doação de órgãos e de transplantes em Santa Catarina? Como ocorreu e como se mantém, já que a coordenação da Central de Transplantes é vinculada à Secretaria de Saúde do estado e, por consequência, pode ser uma indicação política?
Joel – A história da qualificação do Sistema Estadual de Transplantes de Santa Catarina é bastante particular. Entre 2004 e 2005, foram feitas algumas reuniões, cujo tema era discutir o porquê de os catarinenses terem que sair de Santa Catarina para buscar transplantes em outros estados, principalmente no Rio Grande do Sul, no Paraná e em São Paulo. Chegou-se à conclusão de que nós tínhamos um sistema muito frágil, muito ruim. E algumas decisões foram tomadas. Como a maior parte dos pacientes em morte encefálica encontrava-se em Unidades de Terapia Intensiva e todos os gestores anteriores do sistema estadual de transplantes tinham sido transplantadores, uma das decisões foi a opção de buscar um intensivista para o cargo. Fui convidado para assumir a coordenação em maio de 2005. Inicialmente eu neguei, mas depois me convenceram a ficar pelo menos um período de três meses para tentar fazer um diagnóstico e então encaminhar as questões. Eu fiquei. Poucos dias depois eu montei uma reunião com os principais atores do sistema, e incluí o Dr. Valter Garcia, para tirarmos as diretrizes iniciais. Começamos a executar e os resultados começaram a melhorar. Quando chegou ao final dos três meses, pedi para continuar e se passaram praticamente 15 anos desde que fui nomeado coordenador de transplantes.

EC – Como se deu a efetivação do modelo adotado mesmo com as mudanças de governo?
Joel – Sucederam-se vários governos, inúmeros secretários de saúde e aconteceu uma coisa muito interessante: desde lá do início, a maior parte das decisões que foram tomadas foram técnicas e foram respeitadas. O serviço foi ganhando melhores resultados e as decisões foram cada vez mais técnicas. Chegou a um ponto que isso transicionou de uma política de governo, que era inicialmente, algo feito e desenhado para resolver o problema naquele governo, para uma política de Estado. E, desde então, o sistema de transplantes sempre teve a sua opinião e as suas posições respeitadas e, continuamente, vem crescendo.

EC – Como foi o desempenho ao longo desses 15 anos? Esteve sempre na coordenação?
Joel – Em seis meses já éramos o segundo melhor estado no Brasil, perdendo apenas para o Rio Grande do Sul; no ano seguinte, éramos o melhor estado do Brasil. Nesses 15 anos, por 12 fomos o melhor estado do país em doação de órgãos para transplante e, nos outros três, o segundo melhor. Ou seja, no final de 2005, ficamos atrás apenas do Rio Grande do Sul; no final de 2010, de São Paulo; e, no final de 2018, do Paraná. E eu repito: a questão da doação de órgãos em Santa Catarina deixou de ser uma política de governo, uma política míope para durar três ou quatro anos, e passou a ser uma política de Estado, cujas principais decisões são tomadas pelo seu corpo técnico e sempre levadas e aprovadas pela Comissão Intergestores Bipartite (CIB), que tem sido uma parceira incrível em todos esses anos. Essa parceria foi muito importante com a comissão porque as nossas decisões, quando eram individuais, eram frágeis. Agora, amparadas e aprovadas pela CIB, para serem revertidas teriam que ser revertidas dentro da política estadual que envolve a Secretaria de Estado da Saúde e a do município. Usamos isso a nosso favor. Em 2006, na primeira mudança de gestão, após o início da nossa gestão, nós aprovamos o Plano Estadual de Transplantes, discutido e aprovado na CIB, que o tornou muito mais forte. Tirando o curto período em que fui superintendente, em 2008, em todo o restante fiquei na coordenação estadual de transplantes ou na gerência da Central Estadual de Transplantes (NE: Comissão Intergestores Bipartite é o fórum de negociação entre o estado e os municípios na implantação e operacionalização do Sistema Único de Saúde, SUS. Como colegiado bipartite, a CIB é composta paritariamente por nove representantes da Secretaria de Estado da Saúde e por nove do Conselho de Secretários Municipais de Saúde. A CIB/SC foi criada em 1993, atendendo ao disposto da Portaria Ministério da Saúde 545/93).

Foto: Igor Sperotto

Além de salvar vidas, a atividade de transplante pode significar uma receita significativa para o sistema estadual de saúde

Foto: Igor Sperotto

EC – Frequentemente a falta de recursos é usada para justificar centrais de transplantes inoperantes. Qual o investimento do governo em Santa Catarina?
Joel – Quanto aos recursos, nós fomos extremamente competentes desde há muito tempo ao tomar duas medidas: a primeira, essencialmente abandonamos toda e qualquer ideia que parecia requerer grande montante de investimento. Ou seja, fomos privilegiando sempre o que era mais barato e efetivo. E fomos hábeis em mostrar para a gestão o valor que tinha nosso trabalho. E eu dou um exemplo, que é essencial. Há pelo menos 12 ou 13 anos nós fizemos as contas do quanto os pacientes transplantados de rim, só de rim, representavam de economia de diálise. E o valor era impressionante. O orçamento anual do sistema de transplantes era infinitamente menor do que a economia que representava para Santa Catarina os pacientes que tinham deixado a diálise através dos transplantes. Essas contas sempre nos ajudaram a ter acesso privilegiado aos financiamentos. Para se ter uma ideia mais precisa, em 2020 (até o momento) foram feitos 162 transplantes de rim, o que significa uma economia projetada de R$ 6,2 milhões em hemodiálise. Em 2019, foram 310 transplantes, ou seja, R$ 11,8 milhões de economia. E essa economia é cumulativa ano a ano. Os ganhos são surpreendentes. Não existe lógica para não fazer o sistema de doação de órgãos e de transplantes funcionar. Para ter uma ideia da dimensão desses valores, o custo do sistema estadual de transplantes, incluindo a central de transplantes e a remuneração dos coordenadores em toda a rede hospitalar, é de R$ 6,5 milhões ao ano. Por outro lado, a atividade de transplante pode significar uma receita significativa para o sistema estadual de saúde.

EC – E a segunda medida?
Joel – Fomos o primeiro estado brasileiro a pagar os coordenadores hospitalares de transplantes. Isso ocorreu em 2013, retroativo a 2012, com o dinheiro federal destinado à criação das organizações de procura de órgãos (OPOs). Tivemos resultados maravilhosos em termos de coordenação, quando passamos a remunerar essa atividade. Destaco: fizemos isso com o mesmo dinheiro que os outros estados usaram para implantar as OPOs. Em Santa Catarina, temos quatro pessoas contratadas para as OPOs, que supervisionam o sistema estadual de transplante e servem de interface entre as coordenações hospitalares e a central de transplante. Também, remuneramos mais de 100 pessoas através do processo de redistribuição do dinheiro que veio para a montagem das OPOs.

Foto: Igor Sperotto

Os coordenadores não vão dentro das UTIs buscar um potencial doador, eles trabalham na UTI

Foto: Igor Sperotto

EC – Qual é a estrutura do sistema de doação de órgãos e de transplantes de Santa Catarina, quantos profissionais estão envolvidos diretamente?
Joel – Na gestão da Central de Transplantes somos 25 pessoas: três médicos, dois administradores, cinco auxiliares administrativos e 15 profissionais da enfermagem (técnicos e enfermeiros). Além desses, contamos com nove estudantes de medicina que nos auxiliam nos plantões à noite.

EC – Quais são as principais medidas para o estabelecimento de uma estratégia efetiva na área da doação de órgãos no país?
Joel – Não existe um só caminho, mas o melhor passa por escolher, como em qualquer outro ramo de atividade humana, um modelo de gestão. Os dois modelos de gestão de sistema de transplante mais conhecidos do mundo são o americano, baseado nas organizações de procura de órgãos, com estruturas grandes, com 40, 60, 80 hospitais; e o espanhol, baseado na presença, dentro de cada hospital doador, um grupo de profissionais de saúde – preferencialmente médicos e enfermeiros, por uma razão de competência e de alcance em todas as etapas do processo –, que trabalham como responsáveis pela procura de órgãos dentro de cada instituição. O recrutamento desses profissionais considera a sua origem em Unidades de pacientes críticos. Dessa forma, os coordenadores não vão dentro das UTIs buscar um potencial doador, eles trabalham na UTI. E quando um paciente, que apesar de todo o tratamento, evolui para morte encefálica e é detectado, o processo tem início. Na Espanha, os profissionais de coordenação são remunerados e tem uma gestão profissional de suas atividades. As mortes encefálicas dentro de cada instituição são auditadas para se saber se estão sendo comunicadas à coordenação de transplante ou se elas estão escapando… um escape é morte encefálica não identificada, por consequência não comunicada ao sistema de transplante. É uma perda que não retorna. Além disso, tem o envolvimento enorme do poder público com a educação dos profissionais de saúde no processo de doação e transplante – em cada uma das etapas: identificação, validação, diagnóstico de morte encefálica, manutenção clínica, entrevista familiar; depois, na logística necessária para preparar a recepção, na retirada e na distribuição. Todo esse processo é reavaliado e treinado à exaustão.

EC – No Brasil, em muitos estados, o coordenador de transplante trabalha sem remuneração específica alguma.
Joel – O que é muito ruim, porque, dentre outras coisas, não se pode cobrar resultados de quem trabalha voluntariamente. Então, esse é um grande erro.

EC – O que mais destacaria como fundamental?
Joel – Outro aspecto importante é uma relação aberta, contínua, franca com a imprensa e os meios de comunicação. Tudo deve ser bem comunicado, os resultados, as vitórias, mas também os eventuais erros e problemas que ocorrem no sistema. A Organização Nacional de Transplantes da Espanha tem um serviço de atenção à imprensa que funciona por 24 horas por dia. Tem sempre alguém pra conversar com a imprensa e preparado pra fazer isso. Também, uma interação muito especial com as sociedades científicas, médicas, que têm interface importante para o sistema de transplante. Por exemplo, a Sociedade Espanhola de Medicina Intensiva tem uma relação clara e antiga com a Organização Nacional de Transplantes, que além de outras questões, financia vários cursos e outras atividades educacionais. Uma racionalização do modelo de coordenação. Enfim, toda uma questão que passa por muita organização, muita educação e treinamento dos profissionais, desenvolvimento técnico e científico, levando a um melhor resultado. Este é o caminho que o Brasil deve buscar. Grande parte dos resultados ocorridos em Santa Catarina é fruto de adaptações do modelo espanhol. Muita gente me dizia que seria impossível porque Santa Catarina não é a Espanha. Nós provamos que é possível e hoje temos resultados que são muito semelhantes aos deles, em condições que não são semelhantes. Ou seja, as condições de trabalho que se tem na Espanha são superiores às que nós temos aqui.

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