SAÚDE

Joel de Andrade: doação de órgãos é resultado de humanização e solidariedade

O médico Joel de Andrade fala do caso positivo de Santa Catarina em palestra no auditório da Biblioteca do campus central da Unisinos
Por Gilson Camargo / Publicado em 11 de abril de 2023

Foto: Igor Sperotto

“Em SC, o coordenador de transplantes existe e ele tem um papel reconhecido. É muito comum no mundo dos transplantes aparecer aquela foto do paciente transplantado do lado do médico cirurgião. Mas em SC, com frequência aparecem as pessoas que estão envolvidas também na doação de órgãos”

Foto: Igor Sperotto

O coordenador da Central de Transplantes de Santa Catarina, Joel de Andrade, convidado do projeto Cultura Doadora, da Fundação Ecarta, para ministrar uma Aula Magna sobre doação e transplantes de órgãos na Unisinos, falou na manhã desta terça-feira, 11, sobre o trabalho que mantém o seu estado como líder isolado em captação de órgãos para transplantes no país há 14 anos. Médico intensivista da UTI do Hospital da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Andrade está há 18 anos na coordenação do sistema catarinense, que tem como modelo a Espanha, país que é referência mundial em doação e transplantes de órgãos. Em entrevista coletiva a jornalistas do Extra Classe, Jornal do Comércio, Brasil de Fato, Matinal Jornalismo e Correio do Povo, Andrade destacou a importância da formação de profissionais e da atuação da rede coordenadores de transplantes que atuam na identificação de doadores e entrevistas com as famílias para viabilizar os transplantes. “Após o diagnóstico de morte encefálica, vem uma intervenção que é a mais complexa e sensível de todas, que é a entrevista familiar”, frisa.

Em 2022, o Rio Grande do Sul, que é referência em transplantes no país, teve 732 notificações de mortes encefálicas, condição para a doação de órgãos, mas converteu somente 197 em doadores efetivos, enquanto Santa Catarina, também com cerca de 700 potenciais doadores teve mais de 300 efetivados. Por que essa distorção?
Joel de Andrade – O tema da minha aula é o modelo de Santa Catarina. Mas eu conheço em linhas gerais os dados do Brasil e do RS. Em SC tivemos mais ou menos o mesmo número de identificação de mortes encefálicas que o RS, por volta de 700, e convertemos 329 em doadores, o que mostra que o processo de uma forma geral é bem mais eficiente em SC do que no RS. Que processo é esse? É o processo de doação e transplante. Ele começa com a identificação do potencial doador, a avaliação e a validação, a manutenção clínica, o diagnóstico de morte encefálica. Essas são etapas que vêm todas em paralelo. Quando está feito o diagnóstico de morte encefálica vem uma intervenção que é a mais complexa de todas, que é a entrevista familiar.

Por que a comunicação com os familiares é tão decisiva, como ela se dá e por que vocês substituíram a expressão “negativa familiar” por “não autorização”?
Andrade – O fim da entrevista familiar é um resultado binário: vai ou não para a doação. O que faz o resultado desse processo ser positivo ou não, o que faz o insucesso em alguma região e o sucesso em outra é o controle e a eficácia em cada etapa desse processo, notadamente na entrevista familiar. Quanto mais treinada, mais experiente, mais bem estruturada for a equipe de coordenação de transplantes, melhor a família será tratada, e melhor ela será acolhida, mais comunicação empática ela receberá, portanto, o resultado tende a ser positivo. Quando isso é ruim e a percepção da família é que eventualmente o tratamento é quase que comercial, a família recua e diz não. Aí entra a questão da nomenclatura. Quando você diz “negativa familiar”, você pega um processo inteiro e bota a culpa num elemento, que é a família. Mas muitas vezes, a família é vítima desse processo, além de toda a circunstância negativa envolvida na perda de um familiar.

Em SC, o percentual de famílias que ao final das entrevistas não autorizam a doação de órgãos da pessoa que está em morte encefálica foi reduzida de cerca de 70% para 27,4% nesses últimos 18 anos. A que o senhor atribui esse desempenho?
Andrade – Investimos desde 2010 muito pesado em cursos de comunicação de notícias e situações críticas. E ensinamos, com instrutores treinados pelo pessoal da Espanha, que é a grande referência em transplantes no mundo, os itens de comunicação entre família e equipe de saúde. Isso permite que os coordenadores de transplantes de SC, quando conversam com as famílias, tenham o perfeito discernimento do ponto em que a família aceitou a notícia de morte, já a absorveu, e desse modo é possível propor, oferecer a possibilidade de doação. Quando você oferece a possibilidade de doação enquanto a família ainda não aceitou a notícia de morte, o resultado será negativo porque, como a família vai doar se acredita que o paciente ainda está vivo? Enquanto a mãe diz “o João é”, “o João está”, “o João permanece”, ela está dizendo, em outras palavras: “o João está vivo”. Quando a família usa verbos no passado, ela está aceitando que o seu ente querido está morto. Acredito que no Brasil, inclusive em regiões de SC, os coordenadores cruzam a linha e oferecem antes. Isso é o que a gente fazia em 2007 e tinha 70% de não autorização familiar. Hoje são entre 180 e 200 coordenadores de transplantes em ação na nossa rede de 66 hospitais, mas temos 2,4 mil pessoas treinadas em comunicação e más notícias, foram treinadas de 24 em 24, veja a quantidade de cursos que foram feitos… Com isso a gente tem melhores resultados. Como qualquer área de atuação, a coordenação de transplantes depende de educação, treinamento, organização, experiência de quem faz. O que nós temos lá (em SC), eu posso te garantir, são vários desses itens cumpridos. Aqui (no RS), não posso avançar em análise porque não é um território que eu conheça tão a fundo.

Foto: Igor Sperotto

“Todos os anos ocorrem escapes, mortes de pacientes com lesão neurológica colocados em cuidados paliativos ao invés de morte encefálica por decisão médica e que por isso não se tornaram doadores”

Foto: Igor Sperotto

Além da não autorização, o que impede mais doações de órgãos?
Andrade – Uma das questões mais sérias é o escape, a morte encefálica que deixou de ser identificada. Em 18 hospitais que correspondem a 80% do nosso movimento de doação, a gente faz auditoria, ou seja, toda morte de paciente pacientes conectado a aparelhos é auditada. Descobrimos todo ano umas 200 mortes a mais além daquelas que foram detectadas e um quarto dessas mortes têm sido de pacientes que tiveram uma lesão neurológica catastrófica e que não se recuperariam, mas que foram colocados em cuidados paliativos. Estamos trabalhando em uma estratégia de convencer os médicos a produzir os diagnósticos desses pacientes para que eles possam ser considerados doadores.

Qual a sua opinião sobre a possibilidade de registrar em cartório o desejo de doar órgãos, adotada no RS?
Andrade – Não existe nada semelhante em SC. Procuramos adaptar nesses 18 anos os elementos do melhor sistema de gestão de transplantes do mundo, no qual não existem esses recursos. Os recursos que existem são basicamente focados em treinamento e educação.

Qual a importância da formação de coordenadores de transplantes nesse processo?
Andrade – Se você tem uma loja e quer implementar as vendas, contrata vendedores. No sistema de transplantes, o protagonismo é do coordenador de transplantes que, dentro do hospital, tem como função principal trabalhar numa das unidades críticas, sejam enfermeiros ou médicos de emergência ou enfermeiros e médicos de UTI ou de centro cirúrgico. Secundariamente, ele faz a procura dos doadores, ou seja, pacientes que não irão se recuperar neurologicamente. Se você quer ver as coisas funcionando tem que andar dentro desse modelo em que existam coordenadores de transplantes. Porque eles não são importantes só para a entrevista. A entrevista é somente uma das etapas que eles têm que vencer. Mas todo o processo, desde a detecção de morte encefálica até a conservação dos órgãos dentro do centro cirúrgico é o coordenador quem faz. É fundamental que essa figura exista. Se é uma coisa que eu tenho orgulho nos últimos 18 anos é de ter cristalizado essa figura dentro de uma região. Em SC, o coordenador de transplantes existe e ele tem um papel reconhecido. É muito comum no mundo dos transplantes aparecer aquela foto do paciente transplantado do lado do médico cirurgião. Mas em SC, com frequência aparecem as pessoas que estão envolvidas também na doação de órgãos, porque isso se aprende lá fora. Como dizem os espanhóis, que detém o modelo que nós seguimos, sin donante, no hay transplante.

Como vocês adaptaram o modelo espanhol para a realidade catarinense? Quais as estratégias?
Andrade – O que é a base do modelo espanhol? É uma rede de coordenadores, que estão dentro de cada hospital. Como na Espanha, nós buscamos que os coordenadores sejam na sua maioria médicos ou enfermeiros de unidades de crítica, ou seja, eles não devem ser do ambulatório dessa ou daquela especialidade, mas de uma unidade onde potencialmente existem doadores. Eles são integrados entre si e com o sistema, existe uma característica de educação e treinamento muito forte. Como já foi dito, os transplantes são uma área que ensina muito para poucos. Então é muito importante investir em treinamento e capacitação. Ordinariamente nós temos dois encontros estaduais por ano que reúnem por volta de 200 coordenadores de transplantes e 10 encontros regionais. Então o nosso investimento em educação é bastante grande. Na Espanha eles dão muita importância ao relacionamento com a imprensa. Existe um seminário anual de preparo de jornalistas para falar do tema doação e transplantes que é organizado pela Organização Nacional dos Transplantes (ONT) em parceria com alguma das coordenações regionais. Além disso, as pessoas que atuam dentro do sistema elas têm uma remuneração. Na Espanha, mais de 90% das estruturas de saúde são públicas. Todos vivem de salário, mas para essa atividade específica eles criaram um pagamento adicional que não é muito dinheiro, mas é distribuído conforme a atividade de cada instituição. Isso tudo a gente foi copiando e tentando somar dentro de um modelo que remunera os coordenadores de transplantes. Diferente da Espanha, que paga por procedimento, nós pagamos um valor fixo para fazer a coordenação. Surpreende por que o sistema espanhol não é tão difundido. Eles têm quase 30 anos como os melhores resultados do planeta. Hoje quando a gente fala dos melhores resultados do Brasil, por volta de 45 por milhão de habitantes, a Espanha antes da pandemia já tinha quase 50 doadores por milhão de habitantes e eles têm muito menos mortes encefálicas do que nós. Quer dizer, o resultado deles é impressionante e é feito dentro de uma estrutura pública, mas essa característica de rede de coordenação é muito forte. Funciona muito bem pra eles.

Qual o custo para o sistema de saúde desse baixo desempenho do Brasil em transplantes?
Andrade – No Brasil não se quantifica isso. Nós fizemos esses cálculos há uma década em Santa Catarina e era escandalosa a desproporção entre o que nós economizamos para o sistema de saúde só transplantando os pacientes renais em relação aos gastos que se tem com diálise que são crescentes. De longe vale muito a pena investir em transplantes. Para se ter uma ideia mais precisa, os 162 transplantes de rim feitos até outubro de 2020 significaram uma economia projetada de R$ 6,2 milhões em hemodiálise. Em 2019, foram 310 transplantes, ou seja, R$ 11,8 milhões de economia. O custo do sistema estadual de transplantes, incluindo a central de transplantes e a remuneração dos coordenadores em toda a rede hospitalar, é de R$ 6,5 milhões ao ano. Na Espanha, só o transplante renal viabiliza todo o sistema de transplantes do ponto de vista de resultado financeiro.

No caso dos transplantes, quem deve ter prioridade nos investimentos em educação?
Acredito que vale a pena investir em educação em vários níveis, universitário, médio, fundamental, quando nós tivermos o outro esforço de educação muito bem organizado. Onde eu quero chegar? Não é possível que a gente comece educando fundamental, médio, universitário e esqueça que o principal efeito da educação vem do treinamento de profissionais que hoje estão à frente dos serviços críticos.

Por quê?
Andrade – Poderíamos criar um slide como fizeram há 18 anos, que eu achei uma coisa escandalosa, que dizia: “família peregrina e não consegue doar órgãos”. Não podemos criar cidadãos conscientes do ‘dever’ de doar quando a estrutura hospitalar não está preparada para oferecer os elementos de diagnóstico de morte encefálica e entrevista para doação adequada. Existem nesse momento famílias que estão ingressando em hospitais do país com pacientes neurocríticos que serão entrevistadas por pessoas que não têm nenhuma habilidade humana para fazer esse tipo de entrevista. Resultado: provavelmente vamos ter um não redondo que vai ser computado como “negativa” dessa família. Então, defendo que o primeiro dinheiro da educação tem que ir todo para treinar os profissionais de saúde. Uma vez que a gente tenha uma estrutura bem formada poderá pulverizar esse investimento e treinar. Em SC existe uma Lei sancionada pelo governo do estado que cria a educação para a doação de órgãos no ensino fundamental e médio, mas eu não conheço nenhum efeito maior dessa lei.

Foto: Igor Sperotto

“Como dizem os espanhóis, que detém o modelo que nós seguimos, sin donante, no hay transplante”

Foto: Igor Sperotto

E quanto à inclusão da matéria nos currículos da área da saúde?
Andrade – Me parece uma excelente ideia, mas o médico e o enfermeiro que estão na graduação serão os profissionais do futuro nos hospitais. Então é fundamental investir também na qualificação de quem já está em campo.

Afinal, não adianta sensibilizar para a doação de órgãos se o sistema de transplantes não funcionar…
Andrade – Existem estudos mostrando isso. Na Espanha, fizeram três pesquisas de opinião com 12 anos de diferença entre a primeira e a última e constataram que a opinião da população não mudou em nada nesse período, mas a não autorização das famílias caiu de 25% para 15%. Como explicar isso? Treinamento de profissionais de saúde e manutenção das equipes treinadas.

Qual a abrangência da formação que vocês oferecem em SC?
Andrade – O que existe de diferente é que temos uma estrutura robusta de educação e treinamento para os profissionais de área crítica. Temos 200 coordenadores, mas a gente tenta treinar pessoas que vão muito além. Muitos médicos que fazem os cursos de diagnóstico de morte encefálica não têm nada a ver com a coordenação de transplantes, mas eles aprendem por serem de áreas críticas de hospitais correspondentes. Mas eu concordo com a iniciativa de ensinar a estudantes de graduação temas de doação e transplante – e é com muito gosto que eu venho hoje atender o convite de falar sobre isso na Unisinos. Mas como gestor do sistema insisto que a prioridade deve ser a formação de profissionais que estão nos hospitais.

Alguma ação contempla alunos da graduação?
Andrade – Nos cursos que a gente promove pela central estou impedido por lei de colocar estudantes como alunos inscritos porque eles não são profissionais de saúde em atuação, mas em formação. Agora nós temos através da ação das diversas coordenações de transplantes em SC muitas iniciativas que envolvem os estudantes de graduação. E iniciativas que levam ao conhecimento de diagnóstico de morte encefálica, de entrevistar familiar, de comunicação em situações críticas. Mas a nossa prioridade na central é sempre os profissionais, o que extrapola para o pessoal de área crítica, emergência, UTI, centro cirúrgico dos diversos hospitais. Interessa que o coordenador tenha máximas habilidades de comunicação, mas que o médico assistente daquela unidade trate bem a família do paciente para não reverter na entrevista. Humanizar as unidades de terapia intensiva, o cuidado humanizado empático é fundamental para que tudo ande bem.

O que é decisivo para a autorização das famílias?
Andrade – Muita gente vê a entrevista como um ato, mas ela é um processo. Quando a família chega no hospital e vai passar pela portaria e pergunta onde é a UTI, se o porteiro tratar a família mal essa será a primeira carga negativa que eles colocam na mochila e assim vai. A gente busca priorizar que os coordenadores seja profissionais de área crítica e que, pela proximidade com o paciente e os familiares, pode ser decisivo nesse processo de propor a doação, oferecer essa possibilidade sem nenhum grau de pressão. Doação é solidariedade, mas ela não brota na miséria. Ela é a extensão da solidariedade que você estabelece na relação com uma família que leva um ente querido a um hospital e ocorre a situação de morte encefálica. Nós profissionais de saúde temos viezes horríveis para isso. Falo isso como médico de UTI. Eu vejo pessoas morrerem toda semana. Mas para as famílias, aquela morte é a primeira que aquela pessoa viu. No fundo, o que faz a diferença é que ser humano e ético com todos, o processo reverte positivamente.

Como a questão dos transplantes em SC se consolidou como política de estado, ou seja, para além dos governantes?
Andrade – Quando me tornei coordenador de transplantes, SC tinha um governo que logo entrou na disputa pela reeleição e a gente não sabia se as coisas iam para a frente ou não. Na época, a gente escreveu o primeiro documento para tornar perene as modificações, chamava-se Política Estadual de Transplantes. O que aconteceu nos anos seguintes foi uma sequência de fatos e resultados progressivamente melhores, mais espaço para trabalhar e quando nós vimos tinham passado seis, sete secretários de saúde, tinham passado quatro ou cinco governadores e a coisa tinha consolidado.

O que representa para as políticas de transplantes a eleição de um governo democrático em nível federal na comparação com o último período, marcado por obscurantismo, negação da ciência e da vida?
Andrade – Confesso que os últimos anos me deixaram um pouco preocupado, porque o nível de diálogo entre as instituições reduziu bastante, nós sofremos alguma perda de espaço e de trânsito, mas SC se mantém firme com a mesma estrutura de técnicos, fazendo a gestão do sistema estadual de transplantes. Vejo com satisfação que tenha sido assim, porque a gente vê em muitos lugares, enquanto eu fiquei 18 anos na função, já rodaram sete coordenadores isso é muito ruim não dá sequência, não consegue fazer projetos de longo prazo. Mas de qualquer forma, a relação do Sistema Nacional de Transplantes com os entes federados, as coordenações estaduais ela carece de aprimoramento. Uma coisa que falta muito aqui no Brasil e que existe na Argentina com o Cofetra e na Espanha com o Conselho Interterritorial é que as decisões sobre a políticas de transplantes nesses dois países são tomadas pela somatória dos delegados que são formados pelos coordenadores de cada estado. Aqui fica muito na mão do coordenador nacional e muitas vezes a estrutura que se tem pra coordenar os transplantes do Ministério da Saúde é inferior a que o Rio Grande do Sul ou Santa Catarina têm para coordenar as suas estruturas estaduais. 

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