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Golpe branco

Por Flávia Bemfica / Publicado em 11 de abril de 2016

Um dia após uma aparente distensão no cenário político com a saída do PMDB do governo, na abertura da sessão do STF do dia 30 de março, o ministro Marco Aurélio Mello afirmou que o impeachment não será capaz de resolver a crise política que paralisou o país e que, “sem fato jurídico” para afastar a presidente, o processo “transparece como golpe”. A tese da falta de fundamentação jurídica – não comprovação de crime de responsabilidade por parte da presidente da República –, para muitos, confere ao processo de impeachment em curso na Câmara dos Deputados ares de golpe de Estado. Mas há quem defenda o rito com base nas “pedaladas fiscais”. Nesta entrevista, o Extra Classe traz a análise do filósofo e professor da USP, Vladimir Safatle; do advogado e especialista em Direito Eleitoral com atuação na defesa de casos de cassação de mandatos políticos, Antônio Augusto Mayer dos Santos; e de Marcello Lavenère, advogado, ex-presidente nacional e conselheiro da OAB que, em 1992, foi autor do pedido de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello.

Golpe branco

Foto: Igor Sperotto

Atos em defesa da democracia e contra o impeachment mobilizaram 25 capitais e 31 cidades no dia 31 de março e houve manifestações de brasileiros em diversos países. Acima, Porto Alegre, que reuniu 80 mil pessoas

Foto: Igor Sperotto

Extra Classe – Há risco de golpe institucional no Brasil?
Vladimir Safatle – Sim, é bastante claro o desejo de golpe. Para os que o articulam, o impeachment aparece com uma capa de salvação que poderia paralisar as investigações da Lava Jato. É uma conspiração aberta, não fazem mais questão de esconder. Sacrifica-se um dos participantes do consórcio do poder, no caso, o PT, para que tudo continue funcionando da mesma forma. É uma ‘solução’ antiga.

Antônio Augusto Mayer dos Santos – Não. Chamar o processo de impeachment de golpe é uma heresia jurídica. Porque a abertura do processo de impeachment se justifica. Houve descontrole de natureza grave. Então, dizer que é golpe é ignorância. Quem está dizendo isso vai ter que produzir uma prova muito boa. Não há risco de golpe institucional. Que golpe é esse que a Constituição prevê e que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem capacidade para conduzir?

Marcello Lavenère – O afastamento de um presidente que não seja dentro do que está previsto na Constituição é um golpe. Há um comportamento de controle da Polícia Federal, do Ministério Público, do juiz Sérgio Moro, que traz violações muito graves da Constituição. O processo de impeachment é conduzido pelo presidente da Câmara dos Deputados, um cidadão absolutamente carente de altura moral para conduzir o processo, e que é réu. Ao mesmo tempo, o vice-presidente da República monta seu próximo gabinete, há esvaziamento da base do governo no Congresso e uma campanha muito forte e homogênea dos principais meios de comunicação, articulados com partidos de oposição. Trata-se o tema como se daqui a 15 dias a presidente não fosse estar mais no cargo e se tenta apressar um processo que, em um rito correto, regular, leva entre oito e dez meses. Então, todo esse quadro preocupa os setores democráticos porque caracteriza um golpe terrível, cria um clima em que é possível admitir o risco de um desequilíbrio maior, do que se possa chamar de golpe institucional.

Golpe branco

Foto: Guilherme Prado/ PSol/ Divulgação

Vladimir Safatle

Foto: Guilherme Prado/ PSol/ Divulgação

EC – Caso o impeachment aconteça, o que é possível esperar para depois dele?
Safatle – Hoje há 90% de chances de que o impeachment ocorra. Se acontecer, vai jogar o país em uma era de instabilidade e violência muito grande. É um enredo de golpe florentino. O vice-presidente, Michel Temer (PMDB), e o pessoal com que ele se articula para galgar o poder, pensam como se estivessem na República Velha, quando o país era governado por um acordo entre oligarquias que ignoravam a população. Esta, por sua vez, era completamente diferente. Alguém acredita mesmo que um vice que possui 1% de aprovação e vai ganhar o governo de uma forma ilegítima vai governar porque fechou
um acordo ‘de oligarquias’? O que vai acontecer é que as pessoas vão continuar saindo às ruas para defender seus direitos. E ele vai fazer o quê? Transformar o país em um Estado policial?

EC – Por que, no seu entendimento, entre tantos indícios de políticos envolvidos com esquemas de corrupção e investigados, há atualmente foco sobre o Executivo?
Safatle – É algo esperado. Vivemos o mais longo período de democracia, com eleições, ou seja, pouco mais de 30 anos. E, neste tempo, o mesmo partido está à frente do governo há 14 anos. Há, no sistema presidencialista, a tendência a dar mais peso à responsabilidade do Executivo. E há uma sequência de casos de corrupção. Não concordo, por exemplo, que a população esteja em um surto de irracionalidade. Todo mundo esperava que em 2016 fôssemos a quinta economia do mundo. Então, foi se criando um sistema de frustrações. Você espera chegar a um ponto, mas, além de não alcançá-lo, sai do ponto onde estava e desce, vai em sentido contrário.

EC – Entre todos os indícios que surgiram até o momento, há provas suficientes de que a presidente Dilma Rousseff cometeu algum crime?
Santos – A questão atrelada às pedaladas fiscais foi o fato gerador do impeachment. Sob o ponto de vista da Lei de Responsabilidade Fiscal, houve infração administrativa. O que configura infração tem desdobramento no campo político. Serve como respaldo técnico. As pedaladas são um ato administrativo altamente condenável. Além disso, a apuração do Tribunal de Contas da União (TCU), em todas as esferas, chegou à mesma conclusão. Tenho a convicção de que estão certos. Não consigo imaginar que as três esferas de exame dentro do Tribunal tenham falhado. O entendimento do TCU é técnico, mas a sua conclusão foi reforçada passo a passo.

Lavenère – Não. Contra a presidente inexiste uma acusação de crime até mesmo dentro das alas adversárias. Não há nenhum crime, nenhuma improbidade, nenhuma acusação de corrupção. As famosas ‘pedaladas’ foram assinadas também pelo vice-presidente, então, pela lógica, se a presidente for impedida, o mesmo vale para ele. O caso atual é absolutamente contrário do caso do Collor. Lá havia compra de objetos pessoais por empreiteiros, conluio com PC Farias, valores em contas pessoais no exterior. E o processo não foi contaminado por interesses partidários como ocorre hoje. A questão é que esse impeachment começou a ser construído antes mesmo de a presidente tomar posse, porque é uma decisão política de quem perdeu a eleição, apoiado pela imprensa golpista
que distorce as notícias e massacra a opinião pública dia e noite. Na semana seguinte à posse contrataram um renomado jurista de São Paulo para formular o pedido. Fazem o que já anunciavam fazer antes da eleição: Dilma não podia ser eleita; se fosse, não podia tomar posse; se tomasse posse, não governaria. Então, todo mundo sabe que é uma armadilha. Além disso, há interesses estrangeiros em tudo isso. Não é demais lembrar que a embaixadora norte-americana no Brasil é a mesma que estava no Paraguai quando um golpe tirou o presidente Fernando Lugo do cargo.

Golpe branco

Foto: Arquivo Pessoal

Antônio Mayer dos Santos

Foto: Arquivo Pessoal

EC – Mas há prova de crime? Ou um conjunto de indícios é suficiente para condenação?
Santos – Um conjunto de indícios coerentes e convergentes é suficiente para que um ministro possa tomar decisões. Caso contrário, teria que determinar só provas. A matéria é pacífica.

EC – A população está misturando os resultados da Operação Lava Jato e o processo de impeachment? O que leva a isso?
Santos – A população está fazendo uma grande confusão. Talvez isso seja extremamente razoável. As pessoas possuem uma noção rudimentar das coisas. Conversam, interagem e, obviamente, utilizam todos os mecanismos contemporâneos. Então, há um senso comum, que gira em torno de um mesmo assunto: corrupção. Há uma associação de ideias: uma coisa mais outra coisa deu nessa coisa que está aí. Está acontecendo uma convulsão e,
nela, as pessoas têm uma certeza: assim como está, não dá mais.

Lavenère – O Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal são instituições republicanas das quais o Estado brasileiro não pode prescindir. Mas precisam agir dentro
da lei. Quando denunciamos excessos, violações e abusos, não é uma crítica à instituição como um todo. Mas um juiz, no caso o Sérgio Moro, não pode se considerar imbuído do afã das investigações para ser o primeiro a praticar abusos. Até porque se as provas forem contaminadas, perdem a validade. Juízes não investigam, eles julgam. Se um juiz acredita que pode investigar, julgar e condenar, ele comete ilícitos. Fico entristecido
quando os superiores desse juiz demoram em lhe aplicar a devida censura. A mensagem que passa é que se pode fazer o que bem entender, ao arrepio da lei. A Lava Jato tem que ser prestigiada, mas os excessos devem ser repudiados. No todo, parece haver um estímulo aos conflitos. Há um clima de irracionalidade, ódio e intolerância pelos quais determinados setores são responsáveis. Há uma emissora televisiva hegemônica cujos comentários incitam revoltar a população. E os partidos de oposição também têm sua responsabilidade em toda essa situação.

EC – O fato de as pedaladas terem ocorrido na gestão anterior não invalida o processo? O vice, Michel Temer (PMDB), pode ser responsabilizado também?
Santos – Não, não invalida, porque é a mesma presidente de duas gestões sem interrupção. É o princípio da continuidade administrativa. Ou, então, a reeleição não é para valer. Não tem peneira para este sol aí não. Quanto ao vice, ele não é ordenador de despesas, não pode ser responsabilizado. E ele é o sucessor natural. Em Brasília só se fala no governo Temer. Além disso, não tenho conhecimento de questões objetivas a respeito de investigações envolvendo o nome do vice-presidente.

EC – Um impeachment da presidente por pedaladas abre precedente para abertura de processos semelhantes contra governadores que tenham ‘pedalado’?
Santos – Sem dúvida. É evidente que se poderia solicitar pedidos de impeachment desses governadores. A situação é mais grave do que parece.

Golpe branco

Foto: Daniel Lavenère Bastos/ Divulgação

Marcello Lavenère

Foto: Daniel Lavenère Bastos/ Divulgação

EC – Como explicar o acirramento de posições, o aumento da intolerância, o discurso crescente do ódio e o rápido avanço da extrema-direita?
Safatle – O Brasil nunca foi um país. Sempre foi uma fenda. É uma sociedade ideologicamente dividida e isso perpassa todas as classes, não é restrito a uma ou outra. Isso explodiu agora e a esquerda colaborou bastante para que ocorresse, já que a sequência
de casos de corrupção é de fato assustadora. Com ela como motor, as pessoas estão expressando toda a sua insatisfação e, junto, todo o seu preconceito tosco. O Brasil está repetindo seu processo histórico. Nada disso me surpreende. Sabíamos que tínhamos uma direita forte, popular e violenta. O que aconteceu foi que, inicialmente, houve o agravante de a esquerda, na correlação de forças, estar muito mais fragilizada. A direita só ganhou força porque não havia um contraponto. É uma regra básica: você se segura quando vê que, do outro lado, tem alguém mais ou menos do seu tamanho. E, do outro lado, não estava aparecendo ninguém. Estava todo mundo com vergonha. Agora sim apareceu um eixo mais consistente que não é do da defesa de um partido ou de um governo. É o da defesa das garantias mínimas de democracia.

EC – Esse acirramento tende a permanecer?
Safatle – Ele não vai desaparecer amanhã. Seu surgimento está sendo gestado desde 2013. Víamos ali que as manifestações se dividiam em dois. Mas não há que se temer este tipo de situação. Ela é a expressão de uma sociedade profundamente dividida, em todos os seus níveis, mas em construção. E a população não é irresponsável. Ela é a fonte suprema do poder. Não concordo com a ideia de jogar para a população a responsabilidade pela situação atual, de afirmar que as pessoas não sabem votar. Dois fatores contrapõem
essa tese: o fato de possuirmos um processo eleitoral totalmente viciado e o índice de rejeição, de votos brancos e nulos, na eleição.

EC – Qual o papel do poder Judiciário em toda esta situação?
Safatle – Um dos princípios fundamentais da democracia é que as pessoas podem se defender quando são acusadas de algo. Nas últimas semanas ficou claro que o Judiciário não está cumprindo esse preceito. Você não pode fazer linchamento midiático com ninguém. Você não pode grampear advogado de investigado. Se, por algum motivo, o advogado passar a ser investigado, você precisa comunicar ao cliente, porque ele terá o direito de trocar. Então, hoje, o que se observa, é que o Judiciário é uma parte do problema e não da solução.

EC – Qual seria a solução?
Safatle – O Executivo não tem condições objetivas de se perpetuar. E o Congresso é uma distorção, um sindicato de ladrões eleito dentro de uma relação incestuosa com o empresariado. Neste contexto, a melhor saída hoje é a Presidência convocar um plebiscito para saber se ela e o Congresso devem permanecer, voltando o poder para a soberania popular. Se a população disser não, que sejam convocadas imediatamente novas eleições gerais. Uma coisa é você dar um golpe florentino. Outra é o poder instituinte falar o que quer. O presidencialismo é um sistema muito duro e, no nosso caso, ainda não temos o recall. Quem está menos interessada em eleições hoje é a oposição. Porque, com eleições, ela corre o risco de perder.

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