MOVIMENTO

Segregação e racismo contra indígenas no sul do Brasil

Racismo, agressões e até assassinatos marcam o cotidiano de várias comunidades indígenas nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná
Por Cristina Ávila / Publicado em 12 de agosto de 2016
Em um dia frio de inverno deste ano, os índios se reúnem em volta do fogo em que cozinham uma carne de porco. Enquanto esperam a comida ficar pronta, uma cuia de chimarrão passa de mão em mão, o k’ãã, a bebida tradicional indígena, como mostra Karaí, um Mbya nascido em aldeia paraguaia e que mora no acampamento da BR-290.

Foto: Cristina Ávila

Em um dia frio de inverno deste ano, os índios se reúnem em volta do fogo em que cozinham carne de porco. Enquanto esperam a comida ficar pronta, uma cuia de chimarrão passa de mão em mão, o k’ãã, a bebida tradicional indígena, como mostra Karaí, um Mbya nascido em aldeia paraguaia e que mora no acampamento da BR-290

Foto: Cristina Ávila

Relatório preliminar divulgado na sexta-feira, 12 de agosto de 2017, em Brasília, pelo Grupo de Trabalho (GT) sobre os Direitos dos Povos Indígenas da Região Sul, cita discursos de parlamentares da bancada ruralista do Congresso incitando os conflitos e provocando o confinamento dos índios nas áreas em que vivem. No Rio Grande do Sul não há demarcação de terra desde 2003.

Cerca de 2 mil indígenas vivem em pelo menos 22 acampamentos nas margens de rodovias ou em áreas ínfimas no estado.

Crianças indígenas apanham de colegas e de funcionários de escolas, sem que ninguém interfira. Elas comem a merenda depois dos outros alunos e suas redações são motivos de deboche, exibidas como provas de que não merecem viver nos territórios tradicionalmente ocupados por suas famílias.

Em alguns municípios, há mobilizações populares financiadas por prefeituras e com apoio de policiais federais para despejo dos índios de suas aldeias. Eles são proibidos de circular em várias cidades da Região Sul. O racismo se evidencia principalmente no Rio Grande do Sul.

“Evitamos a ideia de apartheid porque não há lei que o configure, mas há clima favorável para que leis desse tipo sejam aprovadas”, denuncia Cristhian Teófilo, relator do Relatório do Grupo de Trabalho (GT) sobre os Direitos dos Povos Indígenas da Região Sul, criado por comissão permanente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos.

O documento foi apresentado preliminarmente em reunião ordinária do CNDH, em Brasília, em 12 de agosto. “Constatamos até mesmo violência contra mulheres durante o parto”, enfatizou ele.

Cristhian Teófilo, da Associação Brasileira de Antropologia

Foto: Cristina Ávila

Cristhian Teófilo, da Associação Brasileira de Antropologia, relator do GT

Foto: Cristina Ávila

O relator Cristhian Teófilo é representante da Associação Brasileira de Antropologia no Grupo de Trabalho que mergulhou na apuração de denúncias ouvidas pelos conselheiros durante viagens que fizeram às aldeias dos três estados, além de consultas a boletins de ocorrência, inquéritos, pedidos de habeas corpus para lideranças indígenas, vídeos de atrocidades registradas pelos próprios índios, matérias na imprensa, relatos de servidores públicos, dossiês de ativistas de direitos humanos e em outras fontes.

Segundo o GT, o racismo resulta em agressões e assassinatos, que não são casos isolados: têm “caráter padronizado, com participação direta e indireta de autoridades locais, propiciando situações de segregação étnica sociologicamente análogas nos três estados e, possivelmente, reconhecíveis em outros estados e regiões do país”.

Entre as principais causas está a paralisação dos processos de demarcação de terras indígenas. O documento acentua que desde 2003 nenhuma terra indígena da Região Sul foi registrada no Serviço de Patrimônio da União (SPU). No Rio Grande do Sul, a última regularização fundiária foi a Terra Indígena Nonoai, em Nonoai, em 16 de setembro de 2003.

A omissão do Estado brasileiro para garantir o usufruto das terras aos índios, como garante a Constituição, se traduz em incentivo à violência, especialmente em áreas visadas pela expansão agrícola, por empreendimentos privados e grandes obras de infraestrutura.

O relatório do CNDH cita nomes de parlamentares da bancada ruralista do Congresso Nacional e discursos feitos por eles em cidades sulistas do interior, estimulando os conflitos e provocando o confinamento dos índios nas áreas em que vivem. “Por medo de ataques racistas”, atesta Cristhian.

Em outro relatório, ainda inédito, que será lançado provavelmente em setembro pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) sobre a violência contra índios, constam cinco mortes por agressões, em regiões interioranas da Região Sul, no ano passado.

O registro é do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), de 2015, mas não é divulgado sem a pressão do CIMI, que o publiciza bianualmente, apelando juridicamente à Lei 12.527/2011, que garante o acesso à informação. O DSEI é vinculado ao Ministério da Saúde.

Nessa estatística não são explicados os motivos das mortes, nem locais. Mas sabe-se que consta dessa conta o assassinato de Vitor Pinto, bebê Kaingang de dois anos de idade, que foi degolado enquanto mamava no peito da mãe, em Imbituba (SC), em dezembro do ano passado. Foi esse crime que provocou organizações indígenas e o Cimi a pedirem a criação do GT no Conselho Nacional de Direitos Humanos.

Adelar Cupsinski, assessor jurídico do CIMI

Foto: Cristina Ávila

Adelar Cupsinski, assessor jurídico do CIMI

Foto: Cristina Ávila

“A questão racial é impressionante. É dramática. Principalmente no Rio Grande do Sul”, acentua o coordenador do GT, Adelar Cupsinski, que é assessor jurídico do Cimi e também viajou com os colegas conselheiros. “É uma tragédia de invisibilidade, que pretendemos revelar com o trabalho que está sendo feito pelo Conselho Nacional de Defesa dos Direitos Humanos”.

O GT prepara o documento final com recomendações de providências a serem tomadas.

Segundo o Cimi, existem no Rio Grande do Sul 90 territórios indígenas – o que inclui aqueles reivindicados pelos índios como tradicionais, mas que não foram ainda reconhecidos oficialmente. Desses, apenas 17 são registrados no SPU e em cartórios de registros de imóveis, o que é feito na última etapa dos processos demarcatórios.

Questionada sobre as causas da morosidade na demarcação das terras no Rio Grande do Sul, a Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e responsável pelos processos demarcatórios, respondeu ao jornal Extra Classe – por correio eletrônico – que “a TI Irapuá se encontra declarada, conforme Portaria do Ministério da Justiça no 569, de 11 de maio de 2016”.

E que a próxima etapa é a publicação do decreto de homologação pela Presidência da República, “ato que a Funai não possui ingerência”. A mensagem diz ainda que neste ano foi delimitada a TI Mato Castelhano (Kaingang), conforme despacho do presidente da Funai no 39, de 10 de maio de 2016. E que há 24 outras TI a serem analisadas, com oito já em GTs de estudos no RS. E que há 470 reivindicadas por diversos povos indígenas no país.

Abandono e invisibilidade

O cacique Werá foi ameaçado por um homem armado

Foto: Cristina Ávila

O cacique Werá foi ameaçado por um homem armado

Foto: Cristina Ávila

Crianças, com pouca roupa apesar do frio do inverno, correm assustadoramente desprotegidas pela margem da BR-290, em Cachoeira do Sul, a quase 200 km de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, na rodovia que segue para a Argentina.

Foi ali, na área do acampamento, no km 299, que o cacique Werá, há poucos dias, foi ameaçado por um homem armado de revólver. Mas ele não recua. Junto com 16 famílias, ignora agressões e aguarda o retorno ao seu tekoha, a terra indígena Irapuá, que foi invadida pela pecuária, do outro lado da estrada.

Há mais de 30 anos o cacique Werá mora em acampamentos na beira de estradas do Rio Grande do Sul, na resoluta lida de articular lideranças indígenas pela retomada de territórios tradicionais do povo Guarani Mbyá. Werá é Silvino da Silva na carteira de identidade, necessária para relações fora das aldeias.

Cerca de 2 mil índios vivem em pelo menos 22 acampamentos nas margens de rodovias ou em áreas ínfimas de territórios tradicionais no Rio Grande do Sul, segundo Roberto Liebgott, coordenador do Regional Sul e vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

De vez em quando, se abre a janela de um carro que passa e dela voam pacotes de mantimentos ou roupas. Cidadãos apressados não perdem tempo em parar, e consideram assim realizada a tarefa de ajudar os índios, sem perceber que junto com o ato solidário também descarregam gestos ofensivos para quem recebe os presentes como se fossem lixo. Os indígenas os aceitam. Constrangidos, mas aceitam, pois são raros os apoios que chegam de fato. Algumas organizações da sociedade civil se mobilizam e algumas prefeituras do estado oferecem assistência à saúde.

Na BR-290, os Mbya lutam por um de seus mais antigos territórios no estado, a terra indígena Irapuá. Identificada há três décadas pela Funai, foi agora em 2016 declarada como de uso tradicional pelo Ministério Público Federal.

O território é localizado em uma área de proteção ambiental da mata ciliar do rio Irapuá e protege espécies da fauna ameaçadas de extinção. A sentença do MPF prevê a demarcação pela União até 2017; mas admite recurso jurídico.

Um processo com mais de 30 anos de espera, para a garantia de 222 hectares, de um território original que era de 4 mil hectares. “É uma terra boa. Tem taquara, peixes, rios, nascentes, caça. Tem bastante material. E tem também paca, tatu, capivara, quati. E muito mel da yra-puá”, uma abelhinha miúda que dá no oco das árvores e produz um mel muito bom”, relata o cacique Werá.

Os Guarani estão acampados nesse local da BR-290 desde o início dos anos 1970. O coordenador do Cimi, Roberto Liebgott, conta que em todo esse tempo houve diferentes acampamentos nesse trecho da rodovia, com diferentes famílias. Mas, os Mbyá nunca arredaram o pé do propósito de recuperar seu território.

A exposição dessas pessoas maltratadas reflete o descaso não só com os Guarani, mas com os Kaingang e Charrua, que enfrentam tempestades embaixo de lonas pretas, frios glaciais no inverno e calores infernais no verão.

Segregação e racismo contra índios no sul do Brasil

Foto: foto Cristina Ávila

Foto: foto Cristina Ávila

Devido a tantos anos de acampamento, os Mbya que estão na BR-290 já haviam conquistado escola, plantavam roças na beira da estrada, moravam em casas feitas de barro e tinham acesso a fontes de água nas nascentes do rio Irapuá. Perderam tudo.

Em junho de 2014 eles foram removidos pelo governo do Estado para uma pequena área distante 60 Km da terra reivindicada. Em fevereiro deste ano regressaram para o antigo acampamento, de onde acabaram sendo expulsos por fazendeiros. Suas antigas habitações e plantações foram destruídas. Tratores passaram por cima de toda a estrutura que lhes garantia o mínimo de alimentos e conforto.

Essa aldeia improvisada na beira da rodovia tinha uma opy, a casa cerimonial onde se reuniam em torno dos pajés para rezar.

A luta pela sobrevivência

O cotidiano Guarani é povoado de conexões com o mundo espiritual. Os pajés são figuras centrais, responsáveis por mobilizar o cosmo nas lutas pela sobrevivência. Eles estão sempre presentes nas reuniões com o poder público. Viajam frequentemente a Brasília e já passaram noites rezando em vigílias em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) e Congresso Nacional. Se há resultados práticos da fé, um deles é a garantia de coesão do grupo.

A força de resistência Guarani é impressionante. Eles foram um dos primeiros povos a serem contatados e massacrados pelos europeus que chegaram ao Brasil há mais de 500 anos, e mesmo assim até hoje se comunicam apenas na língua materna, que é “viva e plena”, como dizia Aryon Dall´Igna Rodrigues, especialista em linguística que criou o Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília, nos anos 1990.

Os Mbyá são silenciosos. Permanecem durante várias horas em um ambiente de pleno silêncio. Assim, parecem manifestar a importância das palavras. Quando um estranho chega, não fazem perguntas. E, quando questionados, a resposta pode vir no dia seguinte.

As palavras têm sentidos complexos. Os nomes das crianças revelam, por exemplo, as regiões celestiais de onde provém a sua alma. Também trazem significados que caracterizam vocações e até caminhos que vão trilhar na vida. Quem dá o nome é o rezador da comunidade, que os conhece por meio de visões. A criança também pode fazer essa revelação aos pais, por meio de sonhos.

As crianças Guarani não falam português. De acordo com Aryon, os Mbya falam um dos dialetos do idioma Guarani, que pertence à família Tupi-Guarani, do tronco linguístico Tupi.

A língua é falada por diferentes grupos no Brasil, Paraguai, Argentina, Uruguai e Bolívia, sendo que no Paraguai é uma das línguas oficiais, junto com o espanhol. Os adultos muitas vezes falam três idiomas: guarani, português e espanhol, devido a seu hábito cultural de frequentemente viajar entre esses países, já que sua territorialidade extrapola limites geográficos e se baseia na busca não apenas de condições de moradia, mas do exercício de sua identidade e vivência dos lugares sonhados.

A dinâmica Guarani é profética, apocalíptica e se dá em torno de caminhadas migratórias na busca da terra sem mal, que se localiza além-mar. O mito fundador foi pela primeira vez registrado por Curt Nimuendajú, alemão de sobrenome indígena, adotado como um filho recém-nascido por um cacique e sua mulher, em 1906. O casal foi guia do antropólogo na descoberta das riquezas culturais de seu povo, que sofria ataques mortais dos colonizadores.

Na atualidade, especialistas consideram que os Guarani continuam na busca mítica do tekoha, porém em áreas efetivamente “terrestres”, economicamente produtivas e sustentáveis, onde possam exercer religiosidade e cultura. Desses territórios depende a sua sobrevivência física e possibilidades como cidadãos brasileiros.

ENTREVISTA | Roberto Liebgott

O legislativo age de acordo com dividendos a serem obtidos

“Os poderes públicos se baseiam em um mercado livre, e os governantes se submetem a esse mercado e a seus valores. A terra vale dinheiro, e por isso os conflitos agrários se desenrolam por séculos, mesmo nos governos de esquerda”, exclama Roberto Liebgott, coordenador do regional Sul e vice-presidente do Cimi, instituição que em 1974 incentivou a realização da primeira Assembleia Indígena com diferentes povos do país. O encontro que se repetiria regularmente e se transformaria em intenso fórum político, levando ao cenário nacional lideranças como Raoni Txukarramãe.

Extra Classe – Como se posicionam os poderes legislativo e judiciário nas questões que se referem aos indígenas?
Roberto Liebgott – Não se exercem mandatos em torno de ideias. As câmaras legislativas, das municipais ao Senado, geralmente agem de acordo com dividendos a serem obtidos. As minorias que exercem mandato digno acabam com propostas rejeitadas. As terras indígenas são atrativas pelas potencialidades de geração de energia, extração de minérios e para a agropecuária. E é com esses parâmetros que os poderes funcionam. De modo mercantil. E tudo isso se reflete na Justiça. As terras indígenas são invadidas e uma reintegração de posse, quando é decidida, leva décadas para ser cumprida. Nesse meio tempo, os índios ficam doentes, são assassinados e violentados em suas culturas, obrigados a andar pelas cidades em busca de sustentabilidade e ou acampados na beira das estradas. Os governos não entendem e não querem entender o modo como os povos indígenas se relacionam com a terra, com suas ancestralidades, mitos, religiosidade. Tudo se relaciona e se vincula com a terra.

EC – Não é por acaso que tramita a Proposta de Emenda à Constituição 215.
Liebgott – No Congresso Nacional há mais de 100 proposições para alterações de artigos que se referem aos direitos indígenas. No Judiciário, decisões isoladas tentam dar novas interpretações a direitos que já são garantidos pela Constituição. E a PEC 215 é uma das propostas mais escandalosas, um novo incentivo à barbárie que já se assiste contra os índios. De acordo com essa proposta, a União perde a prorrogativa de demarcar terras, passando-a ao Congresso. Pode-se imaginar o resultado. Se essa proposta passa, os deputados vão fazer negócios com seus compadrios nos estados, com aqueles que têm ódio dos índios e ganas em tomar suas riquezas. É um novo impulso aos assassinatos.

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