EDUCAÇÃO

Todos perdem quando não há liberdade para aprender e ensinar

Painelistas do Sinpro/RS Debate abordaram as estratégias de movimentos que promovem ataques e censura contra professores e reforçam a defesa da liberdade de cátedra
Por Gilson Camargo / Publicado em 27 de abril de 2024
Todos perdem quando não há liberdade para aprender e ensinar

Foto: Leonardo Savaris

Russel, Cecília, Júlio e Ronai, na abertura do Sinpro/RS Debate sobre a liberdade de ensinar e aprender

Foto: Leonardo Savaris

A liberdade de ensinar e aprender foi tema do Sinpro/RS Debate realizado na manhã de sábado, 27 – de forma híbrida: presencial, na Sala de Eventos da sede estadual do Sindicato dos Professores, em Porto Alegre; e virtual pelo Google Meeting.

O debate integra uma série de ações do Sinpro/RS em resposta à crescente perseguição ideológica aos professores e ao cerceamento de ideias praticados por ativistas conservadores e militantes extremistas nas escolas públicas e privadas do Rio Grande do Sul.

Durante mais de três horas, os ataques à liberdade de ensinar e aprender foram analisados pelos painelistas Júlio Sá, fundador da Associação Mães e Pais pela Democracia (AMPD), o professor e escritor Ronai Rocha e a mestre e doutora em Educação pela Ufrgs e professora da Faced/Ufrgs, Russel Dutra da Rosa.

A diretora do Sinpro/RS, Cecília Farias, coordenadora do debate, citou episódios de censura a livros e a conteúdos de aulas, perseguição ideológica, ameaça, intimidação de professores que são atendidos pelo Núcleo de Apoio ao Professor Contra a Violência (NAP), mantido pelo Sindicato.

“Assistimos nas redes sociais cenas que nos remetem à Idade média: livros jogados no lixo, professores massacrados pelo tribunal das redes sociais e normalmente demitidos das escolas”, destacou.

Na manifestação dos painelistas, a constatação de que todos perdem com o cerceamento à liberdade de ensinar e aprender que, entre outras consequências, sufoca os alunos, mina o pensamento crítico e leva professores à autocensura e ao adoecimento.

Liberdade e valorização

Todos perdem quando não há liberdade para aprender e ensinar

Foto: Leonardo Savaris

Júlio Sá: “O enfraquecimento da escola passa pela desvalorização do professor enquanto profissional”

Foto: Leonardo Savaris

“Os professores têm sido atacados, têm sofrido o cerceamento da sua liberdade de cátedra, e isso é um prejuízo não só para quem ensina, mas principalmente para os alunos e para a educação como um todo”, destacou o advogado Júlio Sá, conselheiro do Conselho Municipal de Educação de Porto Alegre e fundador da Associação Mães e Pais pela Democracia (AMPD).

Ao iniciar o painel de abertura do debate, ele lembrou que a AMPD começou a ser articulada logo após o segundo turno da eleição presidencial de 2018. “Em 29 de outubro de 2018, nossos filhos se reuniram vestidos de preto numa escola de Porto Alegre como sinal de resistência. Ali surgiu a ideia de nós pais e mães organizarmos uma associação para defender a democracia porque tínhamos certeza que dias muito ruins estavam por vir, o que realmente se concretizou naqueles quatro anos de desgoverno que tivemos”, relatou.

Fundada em fevereiro de 2019 com o propósito de ser uma entidade que defendesse o direito à educação livre, plural, laica, inclusiva e democrática, a AMPD atuou em diversas frentes como a campanha Educar com Liberdade do Fórum de Combate à intolerância, fez o contraponto e ajudou a derrotar o movimento escola sem partido que mais tarde ressurgiria com outros nomes como a atual Frente parlamentar contra a doutrinação no ensino, fez oposição ao ensino domiciliar no RS, entre outras atuações.

Sá recordou que a entidade ajuizou ação civil pública contra o retorno às aulas presenciais no momento mais crítico da pandemia e depois pela obrigatoriedade do uso de máscaras nas escolas, o que havia sido abolido pelo governo do estado.

“Obtivemos uma liminar para manter fechadas as escolas no auge da pandemia, na bandeira preta, quando morriam 500 pessoas por dia, num contexto em que não existiam vacinas. Nós fomos muito atacados, havia grupos de pais de extrema direita que entendiam que nós não tínhamos o direito de fechar as escolas. Na verdade, quem fechou as escolas foi o judiciário a partir de uma ação judicial proposta pela AMPD porque nós entendemos que naquele momento o risco à saúde era muito maior e havia um direito que se sobrepunha ao da educação que é o direito à saúde e à vida”, lembrou. Como resposta a essa atuação, surgiu um movimento de contraponto “que cinicamente se chamava de Lugar de criança é na escola. Ora, quem sempre defendeu isso fomos nós, que fomos contra o hommeschooling, mas lugar de criança só é na escola se não tiver acontecendo um incêndio, um tiroteio, ou num momento em que tinha uma pandemia não era o local mais apropriado”, explicou.

Júlio assinalou que em 2023 a entidade conquistou a presidência do Conselho de Educação de Porto Alegre. Junto com diversas entidades da educação, a AMPD aderiu à Frente pela Liberdade de Aprender e Ensinar que “foi gestada no Sinpro/RS para lutar pela defesa do direito sagrado da liberdade de cátedra, porque esse direito vem sendo atacado neste momento”, destacou. O painelista lembrou o caso de um professor de História do Colégio Anchieta que em novembro de 2023 teve sua fala sobre o conflito Israel-Hammas gravada em vídeo e descontextualizada e sofreu um “linchamento” no “tribunal das redes sociais”. Em desagravo ao professor, o Sinpro/RS, em parceria com Cpers-Sindicato, Adufrgs Sindical, UNE e UEE, Associação de Mães e Pais pela Democracia, Associação dos Professores do Colégio Militar, Simpa e Atempa promoveram uma Manifestação pela Liberdade de Ensinar e Aprender.

“O professor não faz o que quer em sala de aula, ele segue um Projeto Político-pedagógico que é uma construção coletiva, envolve as diversas instâncias da escola. Assim como o médico, o professor não faz o que quer. E assim como um pai e uma mãe não podem interferir na prática médica, eles também não podem dizer ao professor como ele deve ensinar o seu filho”

Ensinar e aprender

Júlio Sá ressaltou que a Frente parlamentar contra a doutrinação no ensino, movimento que substituiu o escola sem partido, “é muito perigosa porque ela tem um objetivo que num primeiro momento todos nós queremos, ninguém é a favor de doutrinação em escola, mas ouvindo as entrevistas dos seus representantes e principalmente vendo quem está por trás disso, que são os deputados da extrema direita, inclusive de outros estados, que criaram sites para receber denúncias, que fomentam a gravação de aulas e de professores num denuncismo sem nenhum cabimento, nós entendemos que ali havia violação a uma série de princípios constitucionais”. Junto com o Sinpro/RS e demais entidades, foi feita uma representação ao MPF. “Também fomos à Assembleia Legislativa pedir à presidência que interfira junto a essa frente parlamentar para que ela se limite a atuar dentro da legalidade”.

A forma de cercear o direito de ensinar e de aprender vem de várias maneiras, alertou o palestrante. “A que está virando moda é a de cercear, censurar livros. Nós tivemos numa grande escola de Porto Alegre a retirada do livro O Diário de Anne Frank (colégio Marista Rosário, em 2021), recentemente o premiadíssimo livro do Jeferson Tenório (O avesso da pele) naquele episódio de Santa Cruz do Sul, onde a Frente pela Liberdade de Aprender e Ensinar  Direito realizou um ato de desagravo com a presença de mais de cem pessoas. Virou moda essa gente da extrema direita capturar temas que são sensíveis aos costumes e aí distorcendo esse tema, jogar para a sua bolha numa série de inverdades e assim ganhar audiência. A verdade é essa: esses vereadores, deputados que tratam da ideologia de gênero, da doutrinação, na verdade eles já sacaram que isto é uma forma de fazer sucesso nas suas bolhas e transformar isso em capital eleitoral”, explicou.

Em seguida, o palestrante citou a legislação que trata do tema da liberdade de ensinar e aprender e enumerou artigos da Constituição que versam sobre liberdade de cátedra.

“Os artigos 205 e 206 explicitam a liberdade de aprender e ensinar, pesquisar, divulgar o pensamento, a arte e o saber e o pluralismo das ideias e de concepções pedagógicas. É na nossa Carta maior que está garantido esse direito que não é um direito sagrado do professor, mas é sobretudo um direito do aluno”, sublinhou.

No encerramento, Júlio Sá listou “efeitos nefastos” do cerceamento da liberdade de aprender e ensinar, que reduz o pensamento crítico, manipula informação e fragiliza a democracia, entre outras consequências.

“Os alunos podem não desenvolver plenamente suas habilidades de pensamento crítico essenciais para questionar informações e tomar decisões. O cerceamento também limita a criatividade, sufoca o aluno. A censura e a autocensura são o ponto mais preocupante, porque quando a gente tem a censura se pode agir e denunciar, mas a autocensura é o grande perigo, temos professores que estão adoecendo, deprimidos, com medo. O professor pode optar por não dar a sua aula de forma livre com o receio de ser a bola da vez no tribunal injusto das redes sociais”, concluiu. Para ele, “o enfraquecimento da escola passa pela desvalorização do professor enquanto profissional”.

Mística escolar

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Foto: Leonardo Savaris

Ronai Rocha (D), professor e escritor: “mística da escola e cultura didático-pedagógica”

Foto: Leonardo Savaris

O professor e escritor Ronai Rocha lembrou ao iniciar o seu painel que os ataques aos professores e à liberdade de cátedra são resultado de um movimento que começou muito antes do Escola sem partido. “Se quisermos compreender e ter uma atuação de longo prazo, temos nos perguntar como é que nós chegamos a isso e fazer um diagnóstico profundo. E nós não chegamos a isso em 2019, tampouco foi em 2016. O começo dessa história é muito anterior. Basta lembrar que a origem do Escola sem partido é 2003, com o advogado Miguel Nagib”, destacou Rocha, citando seu livro Quando ninguém educa – questionando Paulo Freire (Contexto, 2017).

O ponto chave, enfatizou, “é a perda da mística da escola e do professor”. “No livro, eu falo em primeira pessoa. Em 1979 eu fui do comando de greve da UFSM e das grandes greves de Santa Maria. Fui secretário de formação do Partido dos Trabalhadores. Então eu falo de mim mesmo. Desta perspectiva de esquerda, de época, um belo dia dissemos assim: ‘vamos parar de nos chamar de professores; vamos nos chamar de ‘trabalhadores da educação’. Aquilo que eu chamo de perda da mística da escola é uma pedra com muitas facetas que começa pela forma como nós nos vimos constrangidos a fazer a nossa própria defesa sindical, na qual houve esse momento, falamos assim, ‘nós somos na verdade trabalhadores’. Tivemos que fazer isso. Foi bom? Foi. Mas a meu juízo isso trouxe um custo ao longo do tempo e esse custo se traduz pela erosão da mística escolar”, avalia.

Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e mestre nesta mesma ciência pela Ufrgs, o palestrante foi professor da UFSM e também escreveu os livros Escola Partida – ética e política na sala de aula (2020) e Filosofia da Educação (2022), ambos pela Editora Contexto.

Para Ronai, a participação da família na escola tem que se dar sob regras. “O espaço escolar é um espaço que pode ser facilmente rompido por pais e mães. E uma das coisas que se rompe facilmente é essa espécie de mística da ação do professor, que está ligada com a perda progressiva da cultura didático-pedagógica”, sinalizou.

Articulação externa

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Foto: Leonardo Savaris

Russel: “O direito à educação abarca um conjunto de outros direitos e está entre os direitos sociais”

Foto: Leonardo Savaris

Licenciada em Ciências Biológicas, mestre e doutora em Educação pela Ufrgs e professora da Faced/Ufrgs, Russel Dutra da Rosa discorreu sobre o direito à educação, analisou os ataques a esses direitos numa perspectiva de desordem informacional e também abordou formas de luta e resistência ao cerceamento da liberdade de cátedra e ao direito de ensinar e aprender.

“O direito à educação é um grande guarda-chuva que abarca um conjunto de outros direitos e está entre os direitos sociais”, disse, citando o artigo sexto da Constituição.

Os ataques ao direito à educação se utilizam de mecanismos de manipulação entendidos como desordem informacional e que vêm sendo enfrentados pelos professores. A estratégia mais utilizada é a apresentação de projetos de lei. Segundo Russel, desde 2014 foram apresentados 107 projetos nas câmaras de vereadores, 25 nas assembleias legislativas e 14 na Câmara dos Deputados.

“Embora o Miguel Nagib tenha proposto essa organização da escola sem partido a partir de 2003 eu não diria que foi só um descontentamento dele em relação à escola. Isso também é fruto de outros movimentos existentes nos Estados Unidos, já muito antigos, especialmente de tentativa de impedir o trabalho da área de Ciências Biológicas em relação à evolução das espécies”, afirmou, citando também o movimento No Indoctrination, que também já existia nos EUA antes do escola sem partido.

Outras organizações locais como o Brasil Livre, o Instituto da Liberdade, disse, são todos articulados a uma rede internacional chamada Atlas Network, “que tem entre os seus objetivos justamente atacar movimentos sindicais e da classe trabalhadora que arrancam com muita luta e sangue alguns poucos direitos nesses sistema de produção que a gente vive altamente excludente”.

Em contraposição a essas iniciativas que atuam diretamente sobre os professores e as escolas, tentando cercear a liberdade de ensinar e aprender, explicou ela, o Rio Grande do Sul teve o movimento Escola sem mordaça, que chegou a reunir 74 entidades e sindicatos que conseguiram impedir a aprovação e a vigência de pelo menos 16 projetos que haviam sido aprovados. “Mas eles voltam com novas formas e já existe até projeto de lei contra pedofilia na escola, coisas inacreditáveis de tão absurdas, mas que acabam capturando pessoas desavisadas”.

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