MOVIMENTO

Garimpo aterroriza indígenas no Vale do Javari

Funai perdeu o controle da situação na região. Grupos isolados sofrem ameaças de massacres por grileiros, mineradores e caçadores, e animais de caça de áreas indígenas são vendidos em feiras nas cidades
Por Cristina Àvila, de Brasília / Publicado em 12 de setembro de 2017
Etnias isoladas que vivem no baixo e médio Javari sofrem cerco e garimpeiros e agricultores e a iminência de massacres

Foto: Funai/ Divulgação

Etnias isoladas que vivem no baixo e médio Javari sofrem cerco e garimpeiros e agricultores e a iminência de massacres

Foto: Funai/ Divulgação

Os índios isolados do Vale do Javari estão sendo perseguidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai), inclusive com uso de aeronaves para sobrevoo, e a sua localização facilitaria novos assassinatos na região em que um massacre foi noticiado e depois desmentido na semana passada pelo Ministério Público Federal do Amazonas. A denúncia de perseguição da Funai a etnias isoladas é de uma liderança que prefere não se identificar, integrante da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava). O massacre investigado pelo MPF teria ocorrido há cerca de um mês, mas não há informações sobre número de mortos ou a que etnias pertencem. Se confirmado, esse seria o segundo genocídio cometidos por invasores contra povos indígenas esse ano no Vale do Javari. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), outros dois massacres de indígenas por garimpeiros são investigados na região – onde os cortes orçamentários promovidos pelo governo federal desestruturaram o trabalho de proteção etnoambiental.

A liderança indígena ouvida pelo Extra Classe concluiu que os sobrevoos de aeronaves pela Funai deixa as aldeias a mercê dos invasores, pois facilita a localização dos grupos isolados por grileiros, agricultores e garimpeiros. A Funai não retornou a solicitação de esclarecimentos sobre a denúncia. O indígena considera que o extermínio dos povos indígenas interessa aos exploradores de riquezas florestais, pois as comunidades representam um obstáculo à obtenção de autorizações a empreendimentos econômicos. O Vale do Javari é a região com maior presença de povos indígenas isolados do mundo. São cerca de 15 referências, em um total de 110 existentes na Amazônia brasileira. O contato com isolados há décadas é condenado por antropólogos e indigenistas, e deixou de fazer parte das políticas da Funai, que optou pela vigilância dos limites das áreas em que circulam.

População indígena é vista como obstáculo por exploradores da floresta

Foto: Mário Vilela/ Funai/ Divulgação

População indígena é vista como obstáculo por exploradores da floresta

Foto: Mário Vilela/ Funai/ Divulgação

Próximo ao Peru e Colômbia, o Vale do Javari, no Amazonas, já é um lugar de livre trânsito de garimpeiros, caçadores e pescadores. “Eles matam os parentes, depois os documentos vão dizer que lá não é terra de índio”. Essa liderança da Univaja nasceu, cresceu e contribuiu com a definição dos limites do território demarcado em 2001. “Não sofremos só massacre físico, mas massacre institucional. O massacre criou força no governo Temer. E as denúncias de mortes são já do ano passado. Mas ninguém faz nada”, relata.

O extermínio de índios isolados foi previsto, em maio, pelo então presidente da Funai Antônio Fernandes Toninho Costa, no momento em que ele pediu demissão do cargo. “Uma catástrofe”, sinalizou Costa, referindo-se aos cortes de orçamentos determinados pelo governo federal, que afetaram 12 Frentes de Proteção instaladas no país para garantir a sobrevivência dos povos isolados. Segundo o ex-presidente da Funai, as políticas governamentais contribuem com o acirramento dos conflitos. Ele ainda citou que, no mês anterior a sua saída, o repasse financeiro à Funai caiu de R$ 9 milhões para cerca de R$ 4 milhões.

A liberdade de entrar e sair da Terra Indígena Vale do Javari é flagrante nas feiras de cidades como Benjamin Constant, Atalaia do Norte e Tabatinga. “Chegou o tracajá! Olha o jabuti!”, gritam feirantes animados com o produto caro e disputado pela freguesia. Os animais são vendidos entre R$ 80,00 e R$ 110,00 cada. “Semana passada chegaram em Atalaia 37 sacos de ovos de tartaruga. Não sei quantos ovos cabem em cada um… são sacos desses grandes [tipo 60 quilos, refere]. E tem muitos outros animais na feira, como tatu, paca. Tá lá, na nossa cara!”, diz o líder da Univaja.

Segundo ele, são fartas as denúncias feitas pelas organizações indígenas, e há algumas ações do Ministério Público e da Polícia Federal que provocam o recuo de balsas de garimpos nos rios, mas depois voltam, pois não há ação continuada. “Em junho e julho estive no rio Curuçá, numa unidade de vigilância da Funai. Não tinha nenhum funcionário, só um índio Marubo e dois Kanamari. Nem comida tinham. Passando ali por eles, barcos com 50, 100 homens com armas, gelo, com tudo. Como os parentes vão parar um barco pra fiscalizar? Eles riem na nossa cara e na cara do poder público. Não sei qual o papel da Funai. A gente liga, não tem ninguém. Nem chefe tem na região”, relata.

Garimpo ilegal e guerra entre etnias

Lideranças da região apontam que ao menos 20 indígenas Warikama Djapar teriam sido atacados e mortos entre maio e junho deste ano por um fazendeiro invasor da Terra Indígena Vale do Javari. A região tem 8,5 milhões de hectares e vem sendo invadida por grileiros, mineradores e caçadores

Foto: Funai/ Divulgação

Lideranças da região apontam que ao menos 20 indígenas Warikama Djapar teriam sido atacados e mortos entre maio e junho deste ano por um fazendeiro invasor da Terra Indígena Vale do Javari. A região tem 8,5 milhões de hectares e vem sendo invadida por grileiros, mineradores e caçadores

Foto: Funai/ Divulgação

Lideranças do Univaja reivindicam que as instituições públicas assumam investigações e posturas firmes frente à situação que se desenrola há vários anos na Terra Indígena Vale do Javari, como as mortes em uma verdadeira guerra entre os Matis e Korubo, que tem vítimas em ambas as etnias, recentes e antigas. As lideranças afirmam que não faltam pistas que levem aos culpados por instigar os conflitos, mas as autoridades nada fazem.

Na segunda-feira, 11, a Funai se manifestou por meio de nota oficial publicada em sua página na internet, dizendo que a seu pedido o Ministério Público Federal de Tabatinga e Política Federal, desde agosto, investigam o suposto ataque contra povos indígenas isolados que habitam a região do rio Jandiatuba, na Terra Indígena Vale do Javari. A área fica nas proximidades dos rios Jandiatuba e Jutaí, próximo ao Peru. A nota diz que garimpeiros foram presos e conduzidos a Tabatinga. Acrescenta que no final de agosto foi deflagrada uma operação de combate ao garimpo ilegal, que resultou na destruição de quatro dragas e multa de R$ 1 milhão, em ação com apoio do Ibama e Exército, no município de São Paulo de Olivença. “Apesar de dificuldades para chegar ao local (12 horas de barco nesse período de seca), a Funai está empenhando todos os esforços”, encerra a declaração do órgão federal responsável pela proteção dos índios.

E o mais grave: no mesmo dia, o Ministério Público Federal no Amazonas enviou nota oficial à agência jornalística Amazônia Real, de Manaus, afirmando que “errou” ao confirmar as mortes de índios isolados, denominados “flecheiros”, no rio Jandiatuba. A matéria veiculada pela jornalista Elaíze Farias havia provocado repercussão internacional e comoção nas redes sociais. O MPF informou que “não há confirmação de mortes de índios isolados no Amazonas” e “o que há é investigação em curso para apurar a denúncia de tais mortes, as quais ainda não foram confirmadas” (…) “há diligências em curso e não é possível fornecer detalhes sobre elas, a esta altura, para não atrapalhar as investigações”, diz a nota.

O bispo de Alto Solimões, Dom Adolfo Zon Pereira, também emitiu nota oficial, em repúdio à violência, denunciando “os prejuízos que a mineração provoca há anos no rio Jandiatuba” e lamentando “o patrocínio pelo poder público federal à mineração em detrimento das minorias, especialmente os povos indígenas”.

Nesta terça-feira, 12, o Cimi se manifestou igualmente por meio de nota, em que enfatiza que as providências tomadas em agosto de órgãos de fiscalização para conter as ações de garimpeiros foram motivadas pela notícia do massacre, mas que já haviam várias denúncias, inclusive de ameaças a moradores da região. “Embora não confirmados até o momento, indígenas relatam que outros dois massacres de povos isolados teriam ocorrido no interior da Terra Indígena Vale do Javari, na região do rio Jutaí”, afirma. O Cimi enfatiza que cortes orçamentários determinados por Michel Temer promoveram a desestruturação dos trabalhos de Bases de Proteção Etnoambientais no país.

O alto curso do rio Jandiatuba, ressalta o Cimi, encontra-se dentro dos limites da Terra Indígena Vale do Javari, mas o seu médio e baixo curso são hoje parte de uma reivindicação de reconhecimento como território dos povos indígenas Kambeba, Kokama e Ticuna do município de São Paulo de Olivença. “Há ao menos sete comunidades desses povos no baixo e médio Jandiatuba, que também sofrem com as consequências do garimpo. Os processos de identificação e delimitação dessa área encontram-se paralisados. A referida demarcação coibiria a entrada de garimpeiros e outros invasores na região onde se localizam os indígenas isolados, o que evitaria riscos a estes grupos”.

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