AMBIENTE

Governo quer mudar Código Ambiental sem passar pelo Consema

Projeto do Executivo que flexibiliza a legislação ambiental no estado foi elaborado sem consulta à sociedade e enviado ao Legislativo para votação em regime de urgência
Por Marcia Santos / Publicado em 4 de outubro de 2019

Eduardo Leite e secretários apresentaram aos deputados as mudanças que o governo quer fazer na legislação ambiental

Foto: Itamar Aguiar/Palácio Piratini

Foto: Itamar Aguiar/Palácio Piratini


Eduardo Leite e secretários apresentaram aos deputados as mudanças que o governo quer fazer na legislação ambiental

Surpreendido com a notí­cia de que a minuta de um novo Código Ambiental já está na Casa Civil, ou seja, pronta para ser enviada como projeto de lei para ser votado na Assembleia Legislativa, um grupo de analistas ambientais da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), que trabalha com licenciamento nas mais diversas áreas, se orga­nizou para denunciar a falta de transparência e cobrar espaços de discussão. “O que está aconte­cendo é uma ilegalidade, (a pro­posta) deveria passar pelo Conse­lho do Meio Ambiente (Consema), o que não aconteceu. É um atrope­lo, ninguém está sendo chamado para debater”, aponta o geólogo e engenheiro de segurança do trabalho Nilo Sérgio Barbosa, um dos integrantes do coletivo.

O projeto de reformulação do Código Ambiental, de autoria do Executivo, propõe a revogação da Lei 11.520/2000. Com mais de 480 inserções e supressões de trechos da Lei original, a proposta foi apre­sentada pelo governador Eduardo Leite (PSDB) em um café da manhã com deputados e coordenadores de bancada no Galpão Crioulo do Pa­lácio Piratini, no dia 20 de agosto.

O governo “vendeu” a proposta aos parlamentares com o argumen­to de “modernização” para o desen­volvimento de empresas e “prote­ção” ambiental, e há quem aposte que a iniciativa deixa o caminho livre para os projetos de mineração do Polo Carboquímico: o RS é alvo de 166 projetos de extração de car­vão, fosfato, titânio, cobre e zinco. Entre as modificações, a Licença Ambiental por Compromisso (LAC), ponto mais criticado por técnicos e ambientalistas, foi defendida pelo secretário de Meio Ambiente e In­fraestrutura, Artur Lemos Júnior. “É diferente do ‘autolicenciamento am­biental’, porque, neste caso, o em­presário faria tudo sozinho. No caso da LAC, vai existir um órgão fazen­do questionamentos e exigências e, aí sim, o empreendedor obterá a licença e poderá iniciar o empreen­dimento”, defendeu. De acordo com a pasta, o projeto está na Casa Civil e deve ser remetido à Assembleia para votação em outubro.

No artigo 53, inciso VI, o “novo” Código Ambiental estabelece um “procedimento eletrônico e auto­mático autorizando a instalação e a operação da atividade ou em­preendimento, mediante declara­ção de adesão e compromisso do empreendedor aos critérios, pré­-condições, requisitos e condicio­nantes ambientais estabelecidos pela autoridade licenciadora e respeitadas as disposições defini­das pelo Consema”.

SEM DEBATE – “Quando se manda para a Casa Civil, não se ouve mais ninguém. É um despre­zo muito grande a um corpo téc­nico e à sociedade. Ela é que vai sofrer as consequências”, critica Barbosa. Luis Fernando Perello, biólogo e doutor em ecologia, co­lega de Nilo, questiona: “A quem interessa não ter transparência, não discutir com a sociedade algo que vai afetar a todos? Tudo está sendo muito rápido e com um de­créscimo de qualidade. Não ha­verá mais uma descrição do que será feito”, aponta.

No início, o grupo foi formado por seis profissionais, agora já são cerca de 60 analistas – de um total de 210 distribuídos em todo o esta­do. E se somaram a eles técnicos da Sema. O corpo técnico passou a fazer uma leitura criteriosa do pro­jeto. “Concluímos que ele não tem a estatura técnica que interessa para o estado fazer uma boa ges­tão ambiental”, explica o biólogo.

Barbosa e Perello participaram do longo processo de debates que resultou na elaboração do atual Código Ambiental, em vigor desde 2000. “Quando ele foi produzido, foram ouvidos todos os segmentos da sociedade. Foi uma discussão ampla, levou 10 anos para ser produzido, do embrião ao texto fi­nal. É um regramento que abarca todas as atividades ambientais, antes fragmentadas”, recorda Pe­rello. “Pelo vanguardismo, nosso Código foi copiado por outros es­tados brasileiros.”

Perello questiona pressa e falta de transparência

Foto: Igor Sperotto

Perello questiona pressa e falta de transparência

Foto: Igor Sperotto

Enquanto houver um documen­to como o atual Código Ambiental, os técnicos atuarão com respaldo, declara Nilo Barbosa. “Nós somos os operadores desses artigos, não podemos ficar fora da discussão. Porque o Código Ambiental trata de licenciamento e também de toda uma gestão ambiental no estado. Somos obrigados a tomar decisões em cima exatamente desses artigos”, ressalta.

Para dar uma dimensão do que os especialistas falam, em 2018 fo­ram concedidas 11,5 mil licenças em todo o estado. Em 2019, até o momento, foram emitidas 10.433 licenças, “tudo conforme o regra­mento do Código atual”, destaca Perello. Ainda, em 2018, foram ex­pedidos 2.162 autos de infração e, em 2019, 1.851 até setembro. “A cada cinco licenciamentos emiti­dos, há um auto de infração, e nós não gostaríamos de ver aumenta­dos os autos de infração.” Não se­rão os técnicos a fazerem a lista das atividades a serem licenciadas. “Já olhamos o projeto e temos opinião formada sobre vários artigos. Para nós, ao contrário do nome da mi­nuta, que chamam de moderniza­ção, não moderniza absolutamente nada. Em alguns casos, inclusive, retrocede”, diz Barbosa.

Parcelamento urbano e autolicenciamento

Entre as críticas dos especialis­tas, está a reformulação das regras para a divisão do solo em terrenos. “Todo o item do parcelamento ur­bano foi substituído. Agora, permite que áreas de preservação ambien­tal sejam afeitas a outras ativida­des”, destaca Nilo Barbosa. Os nove artigos sobre gerenciamento costeiro foram reduzidos a dois, os quais praticamente eliminam as obrigações de gerenciamento. “Isto é um retrocesso”, protesta Barbosa.

“Não há modernização, mas retrocesso”, alerta Barbosa

Foto: Igor Sperotto

“Não há modernização, mas retrocesso”, alerta Barbosa

Foto: Igor Sperotto

O novo Código ainda prevê a contratação de pessoa física ou ju­rídica para atuar no licenciamento a fim de cumprir novos prazos de emissão de licença. Os servidores da Fepam são concursados, trei­nados para trabalhar com licencia­mento. “Aí, amanhã, para atender a um prazo de emissão de licença que está muito mais preocupado com a velocidade do que com a qualidade da preservação, se abre uma contratação e chama alguém para fazer o licenciamento, o que pode fragilizar o processo”, descon­fia o geólogo e engenheiro de segu­rança do trabalho. Perello vê mais uma incompatibilidade na contra­tação de terceiros da iniciativa pri­vada: “Hoje é licenciador, amanhã está no lugar de quem pede licen­ciamento. É um absurdo”. Barbosa também aponta que a LAC fere o princípio da precaução. “Este prin­cípio existe justamente para que se possa antecipar episódios que tragam danos ambientais irrever­síveis. A LAC termina com isso. Será o caos. Ela já foi implantada na Bahia e em Santa Catarina. Há fortes críticas nos dois estados e do Ministério Público”, alerta.

No caso de empreendimentos que dependam de remoção ou reassentamento de pessoas, o Có­digo em vigência só libera a licença após a comprovação de que os ocu­pantes da área foram realocados para outro local com infraestrutura e mediante cronograma prevendo as etapas de assentamento. O novo projeto isenta o empreendedor des­sas obrigações ao estabelecer que o empresário, a Fepam e assenta­dos devem validar um projeto de assentamento. “Mas o que é e como validar?”, questiona Perello.

Os analistas argumentam que uma proposta que se diz ser moder­na não toca em uma das questões mais importantes da atualidade: as mudanças climáticas. Eles infor­mam que se agregaram ao grupo que analisa a nova proposta pro­fissionais da própria Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura que trabalham na questão florestal, de transporte de madeira, entre outros. Eles acreditam que o Código Flo­restal será o próximo a ser alterado.

Ameaça à consolidação de leis

Para o presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambien­te Natural (Agapan), Franciso Mila­nez, faltam debate e transparência por parte do governo em relação à proposta. Milanez argumenta que o Código Ambiental atual é uma consolidação importante de leis, que agora está sob risco. “Não se sabe exatamente quais são as pro­postas. Não chamaram ninguém para o debate. E a moda agora é apresentar vários projetos, em pa­ralelo, e não se consegue acompa­nhar nenhum”, critica. O ambien­talista lembra que a discussão de­mocrática que pautou a construção do Código em vigor não está acon­tecendo atualmente. “São propos­tas oportunistas, em geral fragmen­tadas, que dificultam a análise.” O autolicenciamento significa o fim da responsabilidade dos governan­tes, alerta.

“Essa proposta atende a inte­resses de entidades empresariais e empresários individuais que recla­mam que as leis do meio ambiente trancam o empreendedorismo. E os governos, apoiados por essas pessoas, têm esvaziado constante­mente os órgãos ambientais, como foi a destruição recente da Funda­ção Zoobotânica.” Alguns ambien­talistas chegam mesmo a dizer que a minuta que está na Casa Civil foi produzida com o assessoramento da Farsul e da Fiergs e que essa mudança interessa diretamente ao agronegócio e à indústria.

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Para servidores da Fepam, projeto representa “comprometimento com facilitações e descompromisso com os valores ambientais”

O projeto que modifica o Código Ambiental do RS, encaminhado pelo Executivo à Assembleia Legislativa para ser votado em regime de urgência mereceu manifestação dos servidores da Fepam. Confira a seguir a manifestação prévia seguida da íntegra de Nota Técnica referendada em assembleia realizada pela categoria no dia 1º de outubro:

O Projeto de Lei n° 431/2019, objeto desta análise, encerra uma das mais contundentes modificações e fragilizações do patrimônio ambiental do Estado do Rio Grande do Sul. Sob a égide da “modernização”, o documento mostra comprometimento com facilitações e descompromisso com os valores ambientais. Mantido como está, as consequências nefastas deste projeto de lei acabam por descontruir além da Lei Estadual n.º 11.520/2000, do Código Estadual vigente, também Código Florestal, Lei Estadual n.º 9.519/1992, além de desconsiderar o Capítulo VI da Constituição da República Federativa do Brasil – 1988.

Os empregados reconhecem a necessidade de atualizações, adequações e modernizações das legislações, pois elas devem acompanhar a evolução das sociedades. Porém, condenam frontalmente os encaminhamentos que não privilegiam a discussão com todos os interessados que fazem parte do tecido social.

Acesse a íntegra da Nota Técnica.

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