CULTURA

Wu Ming Entre a “arte” e a guerrilha literária

Marco Aurélio Weissheimer / Publicado em 28 de dezembro de 2002

Contar histórias é uma das práticas mais antigas do mundo. Uma prática fundamental de qualquer comunidade. Todos nós contamos histórias e gostamos de ouvi-las também. Sem elas, não estaríamos conscientes do nosso passado nem das nossas relações com o próximo ou com o mundo. Mas contar histórias, ao contrário do que querem alguns, não é uma atividade destinada a seres iluminados, inspirados por um gênio divino ou algo do tipo. É sempre um trabalho, que faz parte da vida de uma comunidade tanto quanto o de apagar incêndios, fabricar cadeiras ou plantar alfaces. Em outras palavras, o bom contador de histórias não é um artista, mas sim um artesão da narração. Essas são algumas idéias do grupo cultural italiano Wu Ming (expressão chinesa que significa algo como “sem rosto”, “sem nome”, “sem autoria definida”), um experimento político-literário que vem causando grande repercussão na Europa por seus princípios e práticas em favor da criação de uma nova linguagem narrativa e contra a transformação da cultura em mercadoria.


Os fundadores do Wu Ming são Roberto Bui, Giovanni Cattabriga, Luca Di Meo, Federico Guglielmi e Riccardo Pedrini. Todavia, esses nomes têm pouca importância e talvez sejam eles mesmos fictícios. Todos os seus trabalhos são assinados por Wu Ming, expressão chinesa freqüentemente utilizada para designar publicações dissidentes e clandestinas. Um dos criadores do Wu Ming esteve recentemente em Porto Alegre. No dia 15 de novembro, Roberto Bui realizou uma palestra na Casa de Cultura Mário Quintana, onde falou um pouco sobre a história e o trabalho do grupo. Embora tenha se apresentado como Roberto Bui, não há como saber com certeza se esse é seu nome verdadeiro, ou se designa uma personagem, alter ego ou pseudômino. Essa proliferação de identidades fictícias é uma das marcas do grupo. Em suas aparições públicas, eles não permitem fotografias ou filmagens. Seu lema é: “estar presente, mas não aparecer; transparência com os leitores, opacidade para com a mídia”. Tudo para não cair no “culto entediante da personagem”, um dos traços fundamentais da indústria cultural contemporânea. A palestra de Bui serviu também como introdução oficial do mais novo eixo temático do Fórum Social Mundial: “Cultura, Mídia e Hegemonia”.

Formado em 1994, em Bolonha (Itália), o grupo conseguiu sobreviver até hoje em países como Espanha, França, Inglaterra e Brasil graças à Internet, instrumento de disseminação de suas idéias e também palco de ações políticas e literárias. Seguindo a lógica da “guerrilha semiológica”, o grupo começou a aparecer em diferentes contextos da geografia global, sempre através de um personagem único, um ente coletivo que identifica o trabalho de vários escritores e ativistas políticos. Entre as ações já realizadas pelo grupo estão manifestos, histórias em quadrinhos, performances de rua, notícias falsas disseminadas na mídia, sermões pseudo-religiosos transmitidos pelo rádio e outras ações que faziam um chamado permanente: é preciso transformar. Embora pouco conhecido no Brasil, o trabalho do grupo começa a ganhar simpatizantes por aqui.

O começo com Luther Blissett

Imagens copyleft adaptadas do
site oficial do Wu Ming

Na primavera de 1994, um grupo de jovens escritores italianos iniciou, na cidade de Bolonha, um experimento político-literário em busca de um novo tipo de discurso narrativo. Cansados da retórica oficial da esquerda italiana, eles resolveram investir na criação de uma linguagem baseada na produção de mitos e símbolos, a partir do imaginário popular e da história da sua comunidade. Nascia o projeto Luther Blissett, nome que designava um bandido virtual imaginário. Para os integrantes do projeto, não se tratava simplesmente de um experimentalismo estético. Eles estavam interessados em questionar alguns princípios básicos da indústria cultural contemporânea, como o direito da propriedade intelectual, e também a linguagem política utilizada pela esquerda oficial italiana. As obras desse grupo de escritores sempre foram assinadas coletivamente: primeiro por Luther Blissett, depois por Wu Ming.

A experiência de Luther Blissett foi bem-sucedida e deu origem a um novo projeto, o Wu Ming, um coletivo literário que pretende, entre outras coisas, desenvolver uma nova linguagem compromissada com uma ação transformadora na sociedade. Em sua passagem pela capital gaúcha, Roberto Bui contou um pouco dessa história. Segundo ele, o Projeto Luther Blissett trabalhou no sentido de criar uma linguagem narrativa baseada em imagens, ícones e na reelaboração de mitos populares. Para os criadores do projeto, a linguagem política corrente, descritiva e propagandística está baseada em um modelo fossilizado e ineficaz, que não consegue comunicar as paixões, emoções e sentimentos de uma comunidade. “Nós acreditamos”, observou Roberto Bui, “que o que mantém uma comunidade unida e coesa é a sua própria história, a história na qual a comunidade se reconhece como tal”.

Assim, a primeira fase do projeto foi totalmente dedicada à criação de uma linguagem baseada na narração de histórias. Uma dessas histórias ” que alcançou grande sucesso na Europa ” foi a narração das aventuras de um bandido virtual imaginário, Luther Blisset, definida por seus criadores como “uma experimentação sobre o ato de narrar, de contar histórias”. Quando foi lançado na Itália, ninguém sabia quem era o autor da obra. A imprensa chegou a especular que se trataria de uma criação de Umberto Eco. Na verdade, tratava-se de uma criação coletiva de um pequeno grupo de jovens escritores.

 O surgimento de Wu Ming

A partir daí, o grupo sentiu a necessidade de dar um passo à frente. Segundo o relato de Bui, Luther Blissett era uma narração indiscriminadamente aberta, necessária durante a primeira etapa da experiência, que durou de 1994 a 1999. Com a publicação do romance Q (publicado no Brasil com o título de Q, O Caçador de Hereges, pela editora Conrad), na primavera de 1999, o grupo começou a pensar na idéia de uma oficina literária, de um laboratório artesanal literário. “Percebemos a necessidade de desenvolver uma maior autodisciplina, um melhor método na construção de nossa história. Método como o que utiliza um carpinteiro para a construção de uma mesa uma série de técnicas, de conhecimentos e de práticas para investir em nossa produção e qualificá-la”, conta Bui.
A Internet teve (e tem) um grande papel neste processo. Os criadores de Luther Blissett e de Wu Ming acreditam que, a partir da rede mundial de computadores e do desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação, foi se constituindo um novo espaço produtivo comunitário, de caráter coletivo, horizontal e não-hierárquico. O projeto Wu Ming nasce com um diagnóstico preciso sobre o atual estágio da indústria cultural: “A cultura da era industrial era mais centralizada. Hoje, a indústria cultural está se disseminando, sobretudo no espaço urbano, de um modo muito mais horizontalizado, com uma relação mais flexível entre as pessoas. Isso é muito semelhante à cultura popular pré-industrial, uma cultura descentralizada, sem atribuição autoral rigorosa”, explica Bui.

Os criadores do Wu Ming acreditam que há hoje uma tarefa muito semelhante àquela colocada para os artistas do período renascentista, a saber, encontrar uma linguagem que expresse a dimensão do imaginário que leve em conta essas transformações sociais e tecnológicas. Essa é uma das razões pelas quais o grupo está interessado no fenômeno da literatura brasileira de cordel, uma manifestação de cultura popular horizontal, criada desde baixo, de uma forma difusa.


Proclamação da Multidão da Europa

A partir do sucesso de Luther Blissett, a idéia de desenvolver uma nova linguagem narrativa começou a influenciar outros movimentos sociais e culturais na Itália, o que levou o grupo a aperfeiçoar a proposta. Eles passaram a trabalhar em um romance e na reelaboração de mitos que pudessem ser utilizadas pelos movimentos que haviam se aproximado do espírito do projeto. Um exemplo disso, relata Bui, foi a Proclamação da Multidão da Europa, uma espécie de poema de cordel sobre as revoltas camponesas no continente, estabelecendo uma linha de continuidade entre insurreições do passado e a luta atual dos movimentos sociais. Essa obra teve muita influência na preparação da grande mobilização de Gênova, em junho de 2001, durante o encontro do G-8 (grupo que reúne os países mais ricos do planeta). A idéia básica era simples: reelaborar mitos, sob uma forma narrativa, a partir do imaginário popular.


Contra a propriedade privada intelectual

A questão da autoria, da propriedade intelectual, ocupa um espaço central no trabalho desses jovens escritores italianos. Roberto Bui observa que a propriedade privada das idéias representa um dos principais obstáculos para o desenvolvimento de uma comunidade. “A superstição da propriedade privada, no contexto de uma cultura de massas, representa, ao nosso ver, uma contradição em termos, pois, se a cultura é de massa, a propriedade dessa cultura não poder ser privada”, defende. Por essa razão, todos os trabalhos do Wu Ming são livres de copyright (a marca da propriedade intelectual privada), um princípio que representaria um limite ao livre progresso das idéias. Contra o copyright, eles adotaram o princípio do copyleft (um trocadilho com as expressões inglesas “right”- direita e “left” ” esquerda) que defende que as idéias e o patrimônio cultural em geral são de propriedade coletiva de toda a humanidade. Todos os trabalhos do grupo são livremente reprodutíveis e utilizáveis.

A dimensão coletiva da criação individual

A idéia de que as produções culturais devem ser consideradas como patrimônio coletivo da humanidade está diretamente associada à concepção que os criadores do Wu Ming têm a respeito da criação. Eles acreditam que, mesmo a criação individual, tem uma dimensão coletiva. “Não existe o gênio que trabalha sozinho na sua torre de marfim, isolado da sociedade, que cria obras-primas a partir do nada. Essa é uma superstição idealista e romântica. Os autores individuais vivem no mundo, sendo influenciados por milhares de sugestões, conversações e percepções que não são rigorosamente suas. Um autor é uma espécie de terminal que reduz criativamente um complexidade de informações e de imagens, estabelecendo uma síntese que é sempre provisória. Quando um escritor escreve, todo o mundo escreve com ele”, explica Bui.

Os integrantes do grupo não são contra o ato individual de escrever. Eles fazem isso, na verdade. Mas fazem questão de dizer que quem escreve sozinho, sempre escreve junto com o mundo que o circunda. Para eles, a indústria cultural tem a necessidade de alimentar a superstição do gênio individual para organizar estratégias de marketing em torno de indivíduos supostamente de inteligência superior aos demais, de indivíduos a serem adorados e consumidos pela massa. “Essa é a finalidade da indústria cultural”, resume Roberto Bui. “O que combatemos é o culto autoritário do autor. Isso pode ser superado se compreendermos que, mesmo o autor singular, escreve coletivamente”, conclui.

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