CULTURA

Profissionais da cultura em tempos de quarentena

Entre a pouca iniciativa do poder público e a dificuldade em construir alternativas descentralizadas, os profissionais da cultura buscam saídas emergenciais
Por Matheus Chaparini / Publicado em 19 de maio de 2020
Elisandro Hauschild vive da música e nunca teve outra profissão. Dos 13 aos 28 anos, tocou em conjuntos de baile pelo interior do estado. Nos últimos anos, finalmente conseguiu a estabilidade financeira, não sem muito

Foto: Patricia Lopes da Rosa/ Divulgação

Elisandro Hauschild vive da música e nunca teve outra profissão. Dos 13 aos 28 anos, tocou em conjuntos de baile pelo interior do estado. Nos últimos anos, finalmente conseguiu a estabilidade financeira, não sem muito

Foto: Patricia Lopes da Rosa/ Divulgação

Das categorias mais afetadas pela pandemia, artistas, técnicos e outros profissionais da área da cultura buscam meios de sustento com o cancelamento dos espetáculos. Entre a pouca iniciativa do poder público e a dificuldade em construir alternativas descentralizadas, os profissionais buscam saídas emergenciais, com a certeza de que a arte será ainda mais necessária no cenário pós-Covid.

Elisandro Hauschild vive da música e nunca teve outra profissão. Dos 13 aos 28 anos, tocou em conjuntos de baile pelo interior do estado. Nos últimos anos, finalmente conseguiu a estabilidade financeira, não sem muito trabalho.

“Eu vinha há seis anos com uma agenda muito boa, sempre lotada. Orgulhoso de estar vivendo do que eu escolhi, a música”, conta o artista de Lajeado.

Hauschild atua simultaneamente em pelo menos cinco funções no mercado musical. Se apresenta em eventos particulares, compõe, por conta própria e por encomenda, como luthier, faz regulagem e manutenção de instrumentos de corda e, em um estúdio caseiro, grava artistas locais, produz jingles para empresas e campanhas políticas e dá aulas.

Com a quarentena, viu sua renda minguar. Shows foram todos cancelados, clientes adiaram a manutenção de instrumentos; empresas deixaram de encomendar jingles e até as eleições de outubro já parecem incertas.

Foi nas aulas de música que encontrou alternativa à crise. Passou a lecionar pela internet. As aulas ocorrem por vídeo, ao vivo ou gravadas, e o material de apoio é enviado em links e arquivos PDF.

Quando a quarentena acabar, ele tem um novo produto a oferecer. As videoaulas vão permanecer e já tem ao menos um aluno matriculado.

“Eu estava na melhor fase da minha vida profissional e foi interrompida. Estou conformado de que vou trabalhar no vermelho até tudo isso acabar. Vou levar este ano inteiro para tentar equilibrar de novo e, no ano que vem, retomar no ponto em que estava”, projeta.

Para Hauschild, as pessoas não se dão conta de como a música faz parte do seu cotidiano. “Não existe um consultório médico, loja ou mercado que não tenha música, nem que seja na recepção. Não existe uma rádio, comercial ou novela sem música. Ela muda teu estado de espírito”.

Libras e linhas

Simone Dorneles, contadora de histórias bilíngue – português e libras – e tradutora de espetáculos e exposições artísticas para a linguagem de sinais

Foto: Igor Sperotto

Simone Dorneles, contadora de histórias bilíngue – português e libras – e tradutora de espetáculos e exposições artísticas para a linguagem de sinais

Foto: Igor Sperotto

Os profissionais do entretenimento estiveram entre os primeiros a terem as atividades interrompidas pela pandemia e estarão entre os últimos a voltar. O Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões (Sated) estima que a crise atinja cerca de 300 mil profissionais do setor no estado.

Com formação em Magistério e em Tradução e Interpretação de Libras, Simone Dornelles atua como contadora de histórias bilíngue – português e libras – e tradutora de espetáculos e exposições artísticas para a linguagem de sinais.

Além do cancelamento dos trabalhos com os quais contava, Simone pertence ao grupo de risco para o coronavírus. Com bronquite, adoeceu e foi diagnosticada com pneumonia viral, logo no início da pandemia.

“Foi desesperador estar doente, sentindo dores, e não ter perspectiva de quando voltar ao trabalho artístico-cultural e não saber como pagar as contas. Aluguel, comida, medicação, e agora? Como irei me manter”?

Sem renda, solicitou o auxílio emergencial de R$ 600 do governo federal no dia 7 de abril. Passadas mais de duas semanas, o pedido seguia em análise, junto a outros milhões.

Após se curar da pneumonia, passou a costurar máscaras de pano, com sua máquina caseira. No entanto, vê dificuldade em concorrer com as empresas que possuem equipamento industrial, grande produção e conseguem preço mais baixo.

“Neste momento tão complicado para nós trabalhadores da área cultural, sentir na carne o quanto somos deixados de lado, o quanto somos invisíveis para o governo e boa parte da sociedade é triste e angustiante”, lamenta.

Estado acena com FAC de R$ 3 milhões

No começo de abril, a Secretaria Estadual da Cultura anunciou um edital emergencial do Fundo de Apoio à Cultura (FAC). Com R$ 3 milhões em recursos, a iniciativa vai contemplar projetos culturais digitais de até R$ 1,5 mil.

Até o momento, a iniciativa ainda não saiu do papel. A Secretaria não apresentou uma projeção de quando será aberto o edital.

Município arrecada cestas básicas

Em Porto Alegre, a Prefeitura arrecada cestas básicas e encaminha a profissionais do setor afetados pela pandemia. O projeto é realizado pela Secretaria Municipal de Cultura e Fundação de Assistência Social. As doações podem ser feitas no Museu Joaquim Felizardo, na rua João Alfredo, na Cidade Baixa.

A campanha surgiu de demandas das entidades representativas dos artistas e profissionais do setor, que fazem o acompanhamento e o cadastro daqueles que estão em situação vulnerável.

Em busca de saída

Para artistas com milhões de seguidores, patrocínio e grande estrutura, as transmissões ao vivo tornaram-se uma forma de manter a relevância, arrecadar doações e ganhar dinheiro em meio à quarentena. Grupos de comunicação também pegam carona na onda dos festivais on-line. Para profissionais de atuação local, as lives acabam sendo um trabalho sem retorno financeiro direto.

A ideia de um canal comum, onde os artistas se apresentem e compartilhem público e visibilidade, é defendida pelo músico Diego Silva. Ele quer incluir bares e restaurantes, que podem vender por tele-entrega durante os espetáculos. A proposta do canal Virtual – reexistência cultural reuniu 80 interessados e mais de mil seguidores, mas ainda não decolou.

“Em vez de fazer lives cada um na sua bolha, a ideia é todos tentarem levar sua bolha para fortalecer um canal coletivo. Até porque a bolha se esgota rapidamente”, diz.

Sem esquecer da “graxa”

Além dos artistas, o cenário cultural gera trabalho a diversos outros profissionais necessários aos espetáculos. São técnicos, roadies, bilheteiros, seguranças, o “povo da graxa”, como são carinhosamente chamados.

A vaquinha virtual Faça o show continuar já arrecadou mais de R$ 13 mil, que serão convertidos em cestas básicas para auxiliar os trabalhadores do entretenimento em Porto Alegre e região Metropolitana. O objetivo é alcançar R$ 16 mil.

Artistas cobram soluções dos governos

A Rede de Artistas de Teatro de Porto Alegre – MOVE, que reúne cerca de 300 artistas, se mobilizou para cobrar medidas emergenciais dos governos. “Da mesma forma que o setor do comércio sofre duros golpes em seus rendimentos, o setor cultural passa por dificuldades”, defendem no texto.

A carta assinada pelo coletivo traz sugestões de onde poderia vir o auxílio. À Prefeitura, os artistas sugerem a utilização do Funcultura e do Funproarte. Cada fundo recebe anualmente 3% do valor repassado à capital pelo Fundo de Participação dos Municípios. De acordo com a carta, só em 2020, o valor recebido pelos dois fundos é de R$ 3,5 milhões.

Ao Estado, apontam os recursos do Fundo de Apoio à Cultura, um total de R$ 10 milhões e sugerem um socorro de três meses de um salário mínimo à pessoa física e quatro salários a espaços culturais.

O documento foi encaminhado ao governador, Eduardo Leite, secretária estadual de Cultura, Beatriz Araújo, prefeito da capital, Nelson Marchezan Júnior e secretário de Cultura, Luciano Alabarse.

Comentários