CULTURA

O rap que veio da aldeia indígena

Por Gilson Camargo / Publicado em 18 de agosto de 2020

Foto: Reprodução/Kunumi for Forest Warrior/Divulgação

Foto: Reprodução/Kunumi for Forest Warrior/Divulgação

O protesto solitário do indiozinho Jeguaka Mirim escancarou ao mundo, durante a cerimônia de abertura da Copa do Mundo de 2014, na Arena Corinthians, em São Paulo, a síntese da luta dos povos indígenas por terra e direitos. “Demarcação já!” estava escrito na faixa que ele estendeu por breves instantes antes de a mensagem ser recolhida por seguranças. Inebriada pela química e pelo negócio do futebol, a mídia nativa ignorou ou deu apenas comentários em tom de censura.

Mas as imagens do gesto de rebeldia do menino guarani registradas por correspondentes estrangeiros correram o mundo, divulgadas pelas emissoras de tevê europeias que não estavam nem aí para as proibições da Fifa. Ele virou celebridade, gravou vídeos, deu entrevistas e passou a compor música de protesto em defesa dos direitos dos povos indígenas.

Em uma das primeiras gravações, divide um rap com Criolo. O filme Kunumi, o raio nativo, produzido na Holanda, foi exibido na Europa e nos cinemas do Sesc em São Paulo. Assim nasceu o rapper MC Kunumi, que hoje tem 19 anos, canta e escreve livros em guarani para denunciar violações e reivindicar direitos indígenas.

Jeguaka Mirim mora na aldeia Krukutu, localizada às margens da represa Billings, na região metropolitana de São Paulo, a segunda maior aldeia da capital, que concentra 13 mil indígenas. As aldeias Krukutu e Tenonde Porã tiveram suas pequenas áreas regularizadas em 1987, após décadas de luta, e conformaram as duas únicas opções de habitação no Território Indígena até 2013, quando os povos indígenas começaram a reocupar o território tradicional a partir do reconhecimento de seus limites em relatório publicado pela Funai.

Há na aldeia diversas estruturas importantes, resultado da luta das lideranças pelo respeito aos direitos, como o Posto de Saúde, o Centro de Educação e Cultura Indígena (Ceci) e uma escola estadual indígena. O pai dele, Olívio Jekupe, 54 anos, formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), tem 19 livros publicados sobre cultura, língua e lendas dos guaranis, e lançou em abril o e-book Literatura nativa em família, em parceria com a companheira Maria Kerexu, e os filhos Jeguaka e Tupã.

“Nós, Guaranis, sempre existimos, resistimos há mais de 500 anos, nativos e originários dessa terra Brasil. Desprezaram nossa ciência e tecnologia, o conhecimento milenar da floresta. Nosso povo foi oprimido e dizimado porque não aceitou ser escravizado”, declara Kunumi em seu clip cantado em português e guarani Guerreiro da floresta (Xondaro Ka’aguy Reguá/Forrest Warrior), lançado em maio. “E agora vemos na tevê alertas de aquecimento da terra. Extinções em massa, e continuam destruindo nossos rios e nossas matas. E pra você sou eu que estou errado por usar internet e não andar pelado?”, indaga.

Nesta entrevista por WhattsApp – que se estendeu por dias, porque a internet na aldeia é instável –, Jeguaka Mirim, o MC Kunumi, relata que desde criança acompanha o pai quando ele ia dar palestras “pra eu conhecer os lugares e também falar um pouco sobre como é que eu vivo, como é a vida de um indígena jovem na aldeia”.

Começou a escrever aos nove anos, uma história indígena que virou o primeiro livro, Kunumi Guarani (Panda Books, 2014)

Foto: Reprodução/Divulgação

Começou a escrever aos nove anos, uma história indígena que virou o primeiro livro, Kunumi Guarani (Panda Books, 2014)

Foto: Reprodução/Divulgação

Literatura

Começou a escrever aos nove anos uma história indígena que virou o primeiro livro, Kunumi Guarani (Panda Books, 2014). O segundo livro Contos dos curumins guaranis (FTD, 2014), foi escrito em coautoria com o irmão, Tupã.

No clip, ele aparece em meio à floresta para evocar uma antiga lenda guarani sobre um jovem que emerge das águas para salvar a aldeia e denuncia: “Em 2019, voltamos ao passado. Invadiram nossas terras e o meu povo foi assassinado. Queimaram crianças e o medo foi instaurado. Nossos direitos foram revogados e diante disso eu vejo o mundo calado”. Confira trechos da entrevista a seguir.

Aldeia e periferia

“O jovem indígena de uma aldeia e um jovem negro da periferia sofrem preconceitos diferentes. Contra o negro, é por causa da cor da pele. O jovem indígena, quando vai na cidade é discriminado porque acham que ele não sabe nada, não tem religião, nem deus, e que o índio é atrasado. Mesmo quando ele tem estudo e se apresenta bem vestido, falando bem o português é discriminado: falam que esse indígena perdeu sua cultura”.

Identidade 

 “Hoje eu sou conhecido em muitos lugares do Brasil, principalmente nas aldeias indígenas guarani e de outros povos. Fico muito feliz porque as minhas músicas, a mensagem que eu levo, são muito importantes para a sociedade, porque a letra é de protesto, de luta, e também tem uma força que conscientiza as pessoas que os indígenas são povos que sofrem e precisam de terras pra viver. Nós, indígenas, lutamos muito para demarcar nossas terras para que nossas crianças sejam felizes. A gente luta para preservar nossa cultura, nossa língua, que pra nós são muito importantes. Uma cultura antiga, milenar dessa terra”.

Protesto na Copa

Foto: Reprodução/YouTube

Foto: Reprodução/YouTube

“A gente foi pra representar os povos indígenas. Eu ia soltar a pomba, representando a paz. Junto tinha uma menina negra, um menino branco e um indígena, que era eu. Liderança aqui da aldeia teve a ideia de algum de nós fazer um protesto. Tinha uma faixa escrito ‘Demarcação já’. A gente foi com a faixa escondida, porque aquilo era um protesto que não tava previsto e eles não iam gostar. A gente entrou no campo e tava nas minhas mãos soltar aquela faixa. Eu tava com medo, mesmo assim mostrei pra todo mundo. O pessoal aplaudiu. Fiquei muito feliz, só que o meu coração tava muito acelerado. Eles me tomaram a faixa, só que não precisava mais, já tinha mostrado, em questão de segundos. Voltamos pra aldeia. Meu pai achou estranho porque na tevê não tinham mostrado. No outro dia ‘veio’ muitos jornalistas de fora do Brasil, querendo saber sobre o protesto. Todos jornalistas europeus. Nenhuma mídia brasileira teve interesse”.

Multimídia

“Esse videoclipe é muito bom porque é uma música que eu canto só em guarani com legenda em português. Hoje tenho vários clipes no Youtube, várias músicas nas plataformas digitais, documentários. O primeiro álbum foi Meu sangue é vermelho, matéria rima e o segundo Todo dia é dia do índio”.

Rima e luta

“Quando comecei a cantar rap muita gente me criticou, até mesmo indígenas falaram que isso não podia, só que fui mostrando que o rap é uma arte, assim como a literatura nativa que eu faço pra preservar nossas histórias indígenas. Escrevo rap pra defender meu povo. Eu já gostava dos Brô MCs, primeiro grupo de rap indígena do Brasil. Eu tava lendo um livro do meu pai chamado 500 anos de angústia (Ed. Scortecci, 2019) em 2013 e decidi escrever também, poesias, depois decidi cantar essas poesias e ficou muito bom, ficou da hora né? Quando fui ver, era rap, porque tinha muitas rimas e também eram letras de luta, de defesa dos povos indígenas. Decidi cantar rap e me apelidei de Kunumi MC, Kunumi significa jovem”.

Narrativa

“Pra mim todos os meus rap são muito fortes, todos são importantes, porque cada música fala de um jeito diferente. Eu fiz uma parceria com Criolo, gravei uma música junto com ele, que se chama Terra, ar, mar. Ele já tinha contato com os indígenas e ficou muito feliz por ter me conhecido. E eu também. Falando da demarcação. A primeira coisa que a sociedade tem que entender pra respeitar os povos indígenas é que nós também somos gente, somos seres humanos. A gente também sofre. Por isso eu digo que é importante meu rap chegar aos ouvidos dos não indígenas, para que eles entendam o que eu estou falando, a luta que eu estou fazendo, a causa em defesa do meu povo indígena”.

Medo 

 “Muita coisa me assusta no Brasil, mas no momento, o que mais me assusta é a chegada do coronavírus, que pode pegar todo mundo. Nós estamos mais tranquilos, porque vivemos na natureza, mas também não podemos nos descuidar. A gente tem que respeitar a natureza, porque pertencemos a ela. E hoje vemos a consequência”.

Demarcação

“Todos os indígenas acreditam muito que a natureza tem vida. Hoje a gente tá tentando demarcar as terras indígenas pra viver, mas pra natureza poder viver também. O não indígena, quando tem uma pequena área, ele destrói toda a mata. Numa aldeia indígena a gente não tem coragem de matar, destruir, derrubar árvores, principalmente pra progredir com isso. A gente vive tranquilo na natureza, então isso é progredir, não derrubar árvores pra vender madeira. A demarcação é importante para garantir nosso território e a gente acredita que pode salvar a natureza. O aquecimento global tá acontecendo porque tem pouca floresta no mundo”.

Ameaças

“Recebemos muitas ameaças, principalmente dos políticos. A gente vive com medo dos ruralistas e de outros grupos, temos medo, porque a nossa terra pode ser roubada, como já foi muito roubada. Hoje tentamos demarcar apenas uma pequena área pra poder viver”.

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