ECONOMIA

Sem vacinação em massa, a economia não decola

Para além da pandemia, políticas econômicas recessivas de Bolsonaro e Guedes aprofundam o desemprego, a quebradeira e a desindustrialização
Por Flavia Bemfica / Publicado em 17 de março de 2021

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Em poucos momentos tanto quanto neste início de ano, representantes de setores antagônicos na sociedade tiveram um entendimento tão linear da situação econômica do país. Da esquerda à direita na política, nos departamentos de economia das universidades, em entidades representativas de empresários ou empregados, entre donos do chamado “dinheiro grosso”, analistas de investimentos, profissionais liberais ou proprietários de pequenos negócios, a avaliação é de que, para além da crise sanitária, a economia vai mal. Que não há o que a coloque de pé sem uma imunização em massa contra a covid-19. E que o governo, ao invés de cumprir seu papel, segue a fazer movimentos que aumentam ainda mais a instabilidade. Em uma expressão usada por economistas para identificar estratégias de governos que dão a sensação de crescimento econômico, sob Bolsonaro o país não experimenta nem o “voo de galinha”

“Toda discussão de conjuntura passa pelo controle da pandemia. É assustador observarmos um agravamento em um momento no qual se projetava que ela estaria controlada ou, pelo menos, na parte mais baixa da curva. Mas o descontrole nas medidas de circulação e distanciamento e o ‘abrir tudo’ nos fizeram perder em todas as pontas. Perdemos centenas de milhares de vidas, a contaminação aumentou e isso levou a um colapso na economia em geral”, avalia o diretor técnico do Dieese, Fausto Augusto Junior.

“Está muito bem desenhado um cenário bastante difícil à atividade econômica na primeira metade de 2021. O mundo inteiro passou pela pandemia, mas a forma como lidou com ela foi, de modo geral, muito diferente da nossa. Experimentamos de tudo sem conseguir definir uma estratégia eficiente para salvar a economia. Se a saúde das pessoas vai mal, não tem como a economia ir bem. O novo auxílio emergencial vai fazer com que o tombo talvez seja menor, pode evitar uma recessão, eventualmente algum setor até pode se beneficiar, mas é um efeito que não perdura, não vai fazer deslanchar”, projeta o economista Fabio Bentes, da Divisão Econômica da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

No ano passado, após um abril deprimente, as vendas do varejo começaram a acelerar em maio, turbinadas, conforme os analistas econômicos, por fatores como o auxílio emergencial, a antecipação do 13º salário de aposentados e pensionistas e os saques emergenciais do FGTS.

Mas, em dezembro, tradicional mês de bonança em função das compras de Natal, ao invés de seguirem aumentando, elas registraram uma queda de 6,1%, a pior em quatro anos. O auxílio já estava reduzido, o dinheiro da antecipação do 13º havia sido gasto, e o calendário de pagamentos do saque emergencial do FGTS havia terminado em novembro. Segundo Bentes, dezembro, com seus resultados minguados, já serviu como uma espécie de prévia do que é a economia brasileira hoje sem algum tipo de medida extraordinária para estimular a atividade.

Três meses depois, indicadores negativos se multiplicam. É fato que existem também números a apontar estabilidade, às vezes recuperação, mas, via de regra, relacionadas ao desempenho de setores ou companhias voltados para o mercado externo ou, então, que atendem a uma pequena parcela endinheirada da população, onde a crise não bateu com a mesma força.

Ante a inexistência de uma política realista para o enfrentamento da questão sanitária, o país voltou a ser assombrado por antigos fantasmas: o empobrecimento das famílias, a desindustrialização, a inflação e o desemprego. “O fato é que não estamos debatendo o modelo da política econômica, porque não há um modelo. São feitos anúncios ao ‘sabor do vento’. Agentes econômicos pensam a longo prazo e precisam de previsibilidade. Não temos isso hoje. Devido à pandemia, sim, mas, também, muito por causa do jeito anárquico no qual o governo opera”, lamenta Fausto Junior.

Empobrecimento das famílias

A falta de gestão da pandemia levou a economia ao colapso, diz Junior, do Dieese

Foto: Adonis Guerra/ SMABC

A falta de gestão da pandemia levou a
economia ao colapso, diz Junior, do Dieese

Foto: Adonis Guerra/ SMABC

Estudos feitos em 2020 já comprovavam que a pandemia do coronavírus só fez aumentar a desigualdade no país. A chegada de 2021 não trouxe mudanças positivas. Em fevereiro, a Intenção de Consumo das Famílias (ICF), medida pela CNC, caiu 0,6% na comparação com janeiro. Em relação a fevereiro de 2020, o tombo foi de 25,3%. O fator de maior influência para o resultado negativo foi o mercado de trabalho. “Não há lastro para o consumo. O que seria o lastro? Um mercado de trabalho em expansão. Mas o que temos é uma taxa de desemprego altíssima: são 14 milhões de desempregados. E temos inflação”, explica o economista Fabio Bentes.

Em 2020, foi o auxílio emergencial que, em grande medida, sustentou ‘renda’ e consumo. Espécie de unanimidade entre pesquisadores e políticos, ele evidencia, porém, o fosso entre as medidas paliativas transitórias, que ajudam a turbinar a popularidade do governo, e a inexistência de políticas de combate à desigualdade e distribuição de renda. Em fevereiro, pressionado por uma reedição do auxílio, o governo enviou ao Congresso Nacional uma minuta de PEC na qual, “em troca” de nova rodada do benefício, ressuscitou a velha tentativa do corte em políticas essenciais: propôs a extinção dos gastos mínimos constitucionais da União, dos estados e municípios em saúde e educação.

“O auxílio tem um papel: resolve muito individualmente, faz economias locais rodarem quando o dinheiro não está circulando porque não há investimento. O problema é que precisamos sair dele para uma política, uma renda básica de cidadania, com mecanismos sistemáticos de distribuição de renda, ou seja, enfrentar a desigualdade social”, assinala Fausto Junior. Ele ressalva, contudo, que não há indicativo de que o atual governo vá fazer isso.  “Ao ‘abrir’ o Orçamento, observamos que o dinheiro para financiar as iniciativas que dão mais popularidade sai das políticas sociais, da saúde, da educação. Quando o governo retira dinheiro de uma política social para alocar em outra, está transferindo recursos entre parcelas pobres da população”, explica.

“Ao contrário do que muitos afirmam, há muita riqueza financeira no país. Só em posse do sistema financeiro, são R$ 20 trilhões. Não falta poupança. E não há problema de rolagem da dívida. Mas, infelizmente, no Brasil, segue forte o pensamento de só reduzir o gasto fiscal, desconsiderando seus impactos. É um grande equívoco”, completa o professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Ufrgs Maurício Weiss.

Desemprego, jornadas e salários

Da mesma forma em que manteve a economia girando via auxílio emergencial, o governo federal assegura que outra iniciativa, o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, o BEm, evitou a escalada do desemprego. O ministro da Economia, Paulo Guedes, que se orgulha de ter baixado o custo dos empregos no país, anuncia agora que o programa será retomado.

O BEm tem entusiastas à direita e à esquerda, apesar de suas consequências evidentes, como queda nos rendimentos e fragilização de direitos relativos ao mundo do trabalho. Encerrado em dezembro, ele permitiu acordos individuais e coletivos entre empregadores e empregados tanto de suspensão de contratos como de redução da jornada de trabalho e dos salários em até 70%. As contribuições para a previdência e o FGTS no período foram reduzidas nas mesmas proporções. Para aderir, as empresas não precisaram comprovar queda na atividade ou no faturamento. Dos salários, parte do que os empregadores deixaram de desembolsar foi compensada por pagamentos feitos pelo Tesouro em contas cadastradas para os empregados. Conforme os números oficiais, o custo, em recursos públicos, foi de R$ 33,5 bilhões.

A forma como o governo flexibilizou normas trabalhistas tendo como justificativa a pandemia, entretanto, acabou por chamar a atenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que está solicitando informações e esclarecimentos ao governo brasileiro após queixas das centrais sindicais.

Fuga de investimentos e desindustrialização

Fábrica da Ford em Camaçari (BA): uma das três unidades que a multinacional fechou no país antes de começar a operar na Argentina

Foto: Ford/ Divulgação

Fábrica da Ford em Camaçari (BA): uma das três unidades que a multinacional fechou no país antes de começar a operar na Argentina

Foto: Ford/ Divulgação

Considerado uma prévia do PIB, o IBC-Br, divulgado pelo Banco Central em fevereiro, apontou que, mesmo com auxílios e desonerações, a economia do país encolheu 4,05% em 2020. No final de janeiro, a Conferência da ONU para Desenvolvimento e Comércio divulgou que, em 2020, os investimentos estrangeiros diretos no Brasil somaram US$ 33 bilhões. Foi uma queda de 51% em comparação com 2019 e o resultado mais baixo desde 2009. Em tempo: os investimentos estrangeiros diretos são aqueles não vinculados à especulação, como expansões de capacidade produtiva de fábricas ou a abertura de filiais.

Quando o tema é o risco da desindustrialização, o ano começou particularmente desanimador. Os dados referentes à produção industrial do Brasil em 2020 mostram que, apesar de em dezembro ter havido alta (a oitava consecutiva), no ano a queda foi de 4,5%, disseminada. Nos primeiros dias de janeiro, a Ford anunciou o fim da produção de veículos no Brasil e o fechamento de fábricas em três estados, repetindo estratégia da Sony e da Mercedes-Benz em relação à produção de automóveis. Uma semana depois, levantamento da CNC para O Estado de São Paulo mostrou que, desde 2015, o país registra queda no número de indústrias: 36,6 mil encerraram as atividades no período, sendo que 5,5 mil delas no ano passado. No final de 2014, o Brasil tinha quase 385 mil estabelecimentos industriais. Agora, seriam 348 mil.

Uma semana após o anúncio da Ford, o presidente do Ipea, Carlos Von Doellinger, em entrevista ao Valor Econômico, citando como exemplo a Austrália, defendeu que o Brasil foque em setores econômicos nos quais é mais competitivo, como produção de alimentos, mineral e energia, deixando de fomentar a indústria manufatureira. “A Austrália tem características que a distinguem do Brasil, como uma população bem menor, mas é mito a afirmação de que não existiria indústria forte lá. Eles detêm, por exemplo, uma indústria de tecnologia bastante avançada, maior que a brasileira em termos de percentual do PIB. Além disso, não existe um país desenvolvido no mundo com alta população que não tenha indústria forte. A indústria garante uma quantidade muito significativa de empregos”, rebate o professor Weiss.

Descontrole de preços e inflação

Ao demitir Roberto Castello Branco (foto) e nomear um general para a presidência da Petrobras, no dia 19 de fevereiro, Bolsonaro derreteu R$ 100 bilhões em valor de mercado da companhia – que teve lucro líquido de R$ 7,1 bi em 2020

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Ao demitir Roberto Castello Branco (foto) e nomear um general para a presidência da
Petrobras, no dia 19 de fevereiro, Bolsonaro derreteu R$ 100 bilhões em valor de mercado
da companhia – que teve lucro líquido de R$ 7,1 bi em 2020

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

A escalada dos preços, que começou puxada pelos alimentos em plena pandemia em 2020, toma, neste início de 2021, um rumo ‘perigoso’, na avaliação dos analistas. O mote foram quatro reajustes seguidos no preço da gasolina e três no do diesel entre o início de janeiro e a metade de fevereiro, seguidos pela intervenção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no comando da Petrobras. Na última semana de fevereiro, o Boletim Focus, divulgado pelo BC com as expectativas do mercado, cravou sete semanas de alta nas projeções para o IPCA do ano. O IPCA representa a inflação oficial do país. O Ipea também refez para cima suas estimativas na Nota de Conjuntura divulgada ao final do mês.

A pandemia aprofundou a desigualdade social. Com 14 milhões de desempregados e inflação em alta, a intenção de consumo das famílias caiu 25,3%

Foto: Igor Sperotto

A pandemia aprofundou a desigualdade social. Com 14 milhões de desempregados e
inflação em alta, a intenção de consumo das famílias caiu 25,3%

Foto: Igor Sperotto

A aceleração ocorre após um 2020 em que os brasileiros sentiram no bolso alta de 14,09% nos preços de alimentos e bebidas, com disparada em alguns itens básicos, como óleo de soja (103,79%), arroz (76,01%) e batata (67,27%). Em conjunto, alimentação e bebidas, habitação e artigos de residência responderam por quase 84% da inflação no ano passado. O IGP-M, índice que indica o comportamento da macroeconomia porque, além dos preços ao consumidor, cobre também os do atacado e os custos de construção, fechou o ano com alta acumulada de 23,14%.

De acordo com Fausto Junior, no caso da inflação, há uma diferença determinante entre a situação atual e o passado recente. Antes, o país vivia a chamada inflação de demanda, com preços subindo em função do aumento do consumo. Agora, apesar de as pessoas não estarem comprando, haver queda na renda e no poder aquisitivo das famílias, os preços seguem em alta. É a chamada inflação de custo. Os preços sobem porque há um impulso de custo, relacionada ao câmbio, com desvalorização do real, e a elevação do preço das commodities no mercado internacional. “Nesta situação, políticas monetárias do tipo subir a taxa de juros vão ter pouca eficácia, porque deprimem mais ainda a economia, mas não conseguem, de fato, controlar os preços”, alerta.

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