GERAL

Esses moços, pobres moços

César Fraga / Publicado em 8 de outubro de 2000

A “onda jovem”, fenômeno de crescimento populacional na faixa etária entre 15 e 24 anos detectado pelos demógrafos, tem aspectos preocupantes. Pesquisas indicam o crescimento da violência provocada por jovens que tem como principais vítimas a própria juventude com uma média de 42 mortes por dia

Nunca fomos tão jovens, tão violentos, tão sem emprego e tão sem educação. Nunca, numericamente, o Brasil teve tantos habitantes na faixa etária entre 15 e 24 anos. Nunca tantos jovens ficaram sem acesso a escola e, em conseqüência, a empregos dignos. Com isso, agrava-se uma atmosfera propícia ao aumento da violência, violência esta de que os jovens não apenas são os principais atores, mas as primeiras vítimas.

Vivemos um momento de pico de população jovem, a chamada “onda jovem”, segundo expressão cunhada pelos demógrafos. Conforme Felícia Reieber Madeira, demógrafa da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE/SP), o principal motivo foi o alto índice de fecundidade do início dos anos 80. Ao todo são cerca de 32 milhões em todo Brasil, conforme as estimativas baseadas em dados do IBGE, representando 19,8% de toda a população brasileira que gira em torno de 167 milhões de habitantes. Apesar da proporção já ter sido maior na década 80, quando representavam 21% (cerca de 25 milhões) de 119 milhões de habitantes, numericamente é bastante superior. Para Madeira, tal pressão demográfica é uma forte agravante para a já difícil situação enfrentada pelos jovens brasileiros nesta virada de milênio. “Trata-se de um fenômeno populacional sui generis na história do país”. A constatação é de Jacobo Weizenfilsz, coordenador de desenvolvimento Social da Unesco e autor dos relatórios Mapa da Violência I e II, o último publicado na segunda quinzena do mês de setembro. O mais grave de tudo isso é que sofremos de uma falta de políticas públicas para atender e entender toda essa gente, o que, para ele, não é exclusividade do Brasil, mas um fenômeno mundial. “Como conseqüência das novas tecnologias de produção e da globalização do mercado nunca se exigiu tanto preparo para o ingresso no mercado de trabalho e nunca se ofereceu tão poucas condições para isso”, detona o pesquisador. Ele diz que já existem poucos empregos para quem tem nível médio de escolaridade e até superior. “E o que resta para quem não tem escolaridade nenhuma?”, pergunta sem dar respostas. “Não bastasse isso há também a síndrome da eterna juventude”, introduz. E, acrescenta que associada à essa síndrome, há uma série de exigências sociais vinculadas a símbolos de sucesso. A pressão social fica sendo muito grande em relação a isso. Em contrapartida há cada vez menos canais legítimos para que este sucesso seja alcançado. “Para ser alguém deve-se usar determinado tênis, roupa ou freqüentar tais e tais lugares. Só que o trabalho, como atividade socialmente aceita, que deveria ser a via legítima para a obtenção deste sucesso, é cada vez mais escasso. Com isso, ficam as vias ilegítimas, o roubo, a prostituição, o tráfico e por aí vai”, diz Weizenfilsz.

Atualmente, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, cerca de 8 milhões de jovensjovens6 estão fora do mercado formal de trabalho. Um dado otimista. Conforme estimativas do IBGE e do MEC, apenas 30% dos jovens entre 15 e 20 anos têm acesso a escola de nível médio (2º grau), cerca de 9,6 milhões. Os 70% restantes, que totalizam 22,4 milhões de adolescentes, não tem nem terão escolaridade suficiente para enfrentar um mercado de trabalho que é altamente competitivo. Isso sem contar que escolaridade de nível médio em hipótese alguma é uma garantia efetiva de colocação neste mesmo mercado, mas sim uma condição para isso. “Isso vai contra o próprio texto da LDBEN (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que inclui em seu texto, que o exercício da cidadania e a formação para o trabalho são responsabilidade do sistema de educação”, diz professora Zuleide Araújo Teixeira, pedagoga e assessora de educação da bancada do PT no Senado Federal. De acordo com o estudo realizado pela Unesco, cada vez mais as possibilidades sociais ilegítimas se tornam alternativas recorrentes. Elas ficam sendo institucionalizadas para certas camadas sociais, como o narcotráfico e outras atividades ilegais.

Dependendo de onde se mora, basta dar uma volta na quadra para perceber os efeitos imediatos desta onda. Embora os jovens que se mantém na marginalidade sejam considerados minoria em relação ao seu universo, quando observado em números absolutos mostra-se alarmante. “De repente, os jovens em geral se tornaram críticos terríveis de todas as instituições: igreja, família, escola e poderes públicos”, constata Jacobo. “Nunca os jovens foram tão descrentes, inclusive da própria democracia. Embora a maioria prefira esta forma de regime político, 30% a 40% é indiferente. Eles não têm sequer uma concepção de mundo formulada”.

Parte da pesquisa foi realizada em três cidades satélites de Brasília apontadas como áreas de maior índice de violência: Samambaia, Ceilândia e Planaltina, mas também há dados relativos a várias capitais brasileiras. Só em Brasilia 810 jovens foram entrevistados, onde 1% se assumiu como participante de gangues. Este número levado ao universo maior apontaria uma projeção de cerca de 320 mil jovens em todo o país, integrantes de gangues. “Neste caso não importa se a proporção é pequena, o fato é que em uma cidade com massa crítica de 30 mil jovens, pelo menos 300 estão dispostos a atividades ilegais e até violentas. Imagine 300 pessoas espalhadas em uma cidade querendo confusão”, explica o pesquisador. Problemas como o tráfico e a prostituição já existiam, porém tendem a se agravar devido a pressão demográfica desta faixa etária.

Jovens morrem mais

A taxa global de mortalidade da população brasileira também mostra dados preocupantes. Para se ter uma idéia, em 1980 havia 633 óbitos para cada 100 mil habitantes, destes 128 de cada 100 mil eram jovens. Isso, proporcionalmente a faixa etária entre 15 e 24 anos, era um pouco maior do que a taxa encontrada hoje. Conforme dados do Data SUS – Ministério da Saúde, em 1998 caiu a taxa geral de mortalidade para 574 pessoas a cada 100 mil habitantes. Porém subiu sensivelmente o índice de mortes entre jovens entre 15 e 24 anos, para 140 a cada 100 mil habitantes. Se por um lado a população aumentou e a mortalidade geral reduziu, a mesma lógica não se aplica à juventude, que cada vez morre mais. De acordo com o Mapa da Violência II, estes dados podem ser usados como referência para 2000 com algum acréscimo. Conforme o coordenador de desenvolvimento social da Unesco os homicídios e os acidentes de trânsito são os campeões e principais responsáveis por esta realidade. Em alguns locais do país, como São Paulo, Recife e Rio de Janeiro, chega a mais de 50% o índice de homicídios vitimando pessoas entre 15 e 24 anos. Já no trânsito, a média é de 19,6 a cada 100 mil.

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A taxa de óbitos por homicídios na população geral acusa cerca de 25 a cada 100 mil habitantes. Na população jovem, 47,4 a cada 100 mil habitantes. Conforme estas estatísticas um cálculo simples nos leva a um número absurdo. Quinze mil jovens foram assassinados em média, em 1998, em todo o Brasil, o equivalente a quase uma lotação do ginásio Gigantinho. Isso representa 42 mortes por dia. “A mídia destaca que em geral os jovens são os principais responsáveis pela violência, mas também são eles as primeiras vítimas. Se incrementa cada vez mais o número de mortes entre jovens e isso não é destacado”, justifica Jacobo.

Quase diariamente encontramos nos jornais: fulano de tal, 18 ou 19 anos, é morto a tiros, geralmente em algum bairro da periferia. Desconfia-se de guerra de gangues. O motivo, na quase totalidade das vezes, é o narcotráfico. Assim era lido o nome de Alexandre de Souza na página policial de um diário da capital gaúcha. O rapaz foi encontrado morto, teria sido executado com um tiro na cabeça, em um final de semana de setembro. Apenas mais um caso para ser relatado sem destaque, em letras pequenas, ocupando três linhas de texto, o que denuncia, de certa forma, a trivialidade de uma ocorrência policial de rotina que sequer chama a atenção. Fora das páginas do jornal, em conversa com a polícia, o EC descobriu que Alexandre, mais conhecido como Bananinha, – que já havia sido preso por assalto – foi vítima de sua própria fúria. Após uma visita à namorada, no bairro Cavalhada, saiu dando tiros a esmo, sem motivo aparente. Teria sido advertido pela Brigada, mas estava a fim de confusão e seguiu seu intuito.

Segundo o relato da polícia, cerca de 10 moradores do local cercaram o rapaz e o executaram para evitar “danos maiores” na comunidade. Mais adiante, seguindo o texto do mesmo jornal, mais três linhas abaixo, outro rapaz morto – Vitor César da Silva, 18 anos, desta vez em um acidente de trânsito. Obviamente ambos fazem parte de uma mesma matéria em que vários outros óbitos foram relatados, sem maiores detalhes. São apenas mais dois casos que, se contabilizados, fariam parte de um universo único, o universo dos que estão excluídos das condições ideais para se tornarem adultos. Apesar de Porto Alegre apresentar os índices de violência juvenil mais modestos de todo o País, – 26,6% das mortes entre jovens são homicídios, 10% abaixo da média nacional das capitais, que é de 39,9% – esta realidade também se faz presente. O medo de morrer não tira J.S., o Ratinho, das ruas. Ele é um garoto franzino de 15 anos, como tantos outros, e circula diariamente em vários locais com afluência de outros jovens para poder exercer seu pequeno negócio. O garoto estudou apenas nas séries iniciais, vem da periferia e passa as madrugadas nos arredores dos bairros Bom Fim e Cidade Baixa, em Porto Alegre. Oferece aos passantes seus produtos: pequenas doses de cocaína e maconha que pega em consignação com outros traficantes. “Vai aí, é veneno puro”, diz ele, enaltecendo a qualidade das três “buchas” de cocaína que exibe na palma da mão aberta a R$ 10,00 cada. Volta e meia leva uns sopapos dos traficantes de rua mais velhos, na verdade só um pouco mais velhos. Ele sabe o risco que corre. Invariavelmente baixa a cabeça pela disputa de clientes, no máximo troca uns xingões. “Fico na minha para não me dar mal”, diz ele. Para o pesquisador da Unesco fica difícil prospectar um futuro otimista para esses garotos que invariavelmente tendem a fazer parte destas estatísticas cruéis.

Embora as taxas de homicídios entre jovens sejam baixas em relação ao resto do país, a pesquisa da Unesco aponta Porto Alegre em primeiro lugar nas estatísticas de sucídios em todas as faixas etárias e como terceiro colocado em incidência de suicídios entre 15 e 24 anos, com 12,6 a cada 100 mil habitantes. E, na média dos estados, o Rio Grande do Sul fica em segundo lugar na mesma categoria com 9,6 para cada 100 mil habitantes, o que é uma taxa considerada bastante alta pelos especialistas.

Em todo o Brasil cerca de 21,4 mil jovens morrem em acidentes de trânsito a cada 100 mil habitantes. No Rio Grande do Sul 20,2% das mortes do trânsito tem vítimas com idades entre 15 e 24 anos e está em 18º lugar em incidências deste tipo no país. Em Porto Alegre 26,8 jovens a cada 100 mil habitantes morrem vítimas de acidentes, ficando em 16º lugar entre as capitais.

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