GERAL

Um cineasta rarefeito

Por Jacira Cabral / Publicado em 16 de agosto de 2007

Peter Greenaway sempre preferiu sentar na cadeira G17 das antigas salas de cinema, porque diz ser dali que os cineastas criam todas as suas cenas. Mas, com as novas tecnologias, ele mudou de assento e agora pensa a reinvenção da sétima arte a partir da poltrona daquele sujeito comum que abandonou as salas de um cinema que já morreu. “Dia 31 de setembro de 1983 é a data da morte do cinema, porque foi quando o zapeador do con-trole remoto passou a ser uma presença na sala de estar das pessoas.” Considerado um dos maiores realizadores de cinema da atualidade, Greenaway nasceu em 1942, em Newport, no País de Gales, e hoje mora em Amsterdã. Sua filmografia conta com 54 títulos. No Brasil, é mais conhecido por O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989), Afogando em números (1988) e Livro de cabeceira (1996). No início de julho ele esteve em Porto Alegre participando do evento Fronteiras do Pensa-mento/Copesul Cultural e promete voltar até o final do ano ao Brasil para o 16o Festival de Arte Eletrônica Sesc Video-Brasil, em São Paulo. Na seqüência, o Extra Classe transcreve a conversa do cineasta com jornalistas na Sala 2 do Salão de Atos da Ufrgs, quando fez questão de comentar que realizará seu próximo filme no Brasil: “Ano que vem, vamos realizar uma pornografia em São Paulo”.

Extra Classe – As pessoas continuam indo ao cinema com a mesma freqüência?
Peter Greenaway
– Estou convicto, por uma série de razões sociais, econômicas e culturais, que o cinema está em uma fase de declínio. Nas décadas de 40 e 50, a gente podia considerá-lo a forma definitiva de entretenimento do proletariado. Vamos esquecer aquele cinema com pretensões intelectuais. O cinema que nós temos hoje em dia se limita a ser uma forma de entretenimento despejada sobre o proletariado. Hollywood, hoje em dia, trabalha a partir deste pressuposto. Nós, agora, estamos no século 21 e há toda uma série de alternativas baratas relacionadas ao cinema. Poderíamos tranqüilamente fazer uma lista de alternativas, e todas elas seriam bem mais viáveis em termos de entretenimento, em termos de fascinação, do que em termos de cinema.

O senhor pode exemplificar algumas destas alternativas?
Greenaway
– Ano passado, Hollywood fez uma estimativa e apresentou alguns dados que mostram que 70% do público assiste os longas-metragens na televisão. Outros 20% assiste aos longas-metragens, produzidos por Holly-wood anteriormente, em DVD. E apenas 5% do total dos freqüenta-dores de cinema assistiu aos longas-metragens de Hollywood nestes estranhos prédios chamados cinema. E não são cifras inventadas por algum inimigo do cinema, mas apresentadas pelo centro do cinema, é a própria Hollywood que mostra que a fenomenologia clássica do cinema está desaparecendo.

O que tem causado esta debandada das salas de cinema?
Greenaway
– Existem situações sociais, econômicas e políticas, mas eu sou um cineasta do tipo meio rarefeito e preciso argumentar com base em razões estéticas. Acho que o cinema, como meio de comunicação de idéias, foi à falência. O cinema contemporâneo é tedioso e irrelevante. Acho que todos os estilos, os paradigmas tradicionais, tornaram-se totalmente previsíveis. Se hoje você vai ao cinema, se é que vai, após 10 minutos você sabe o que vai acontecer, como vai acontecer, e assim por diante. O cinema se tornou totalmente previsível.

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Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

O senhor tem falado que esta falência tem uma data-estopim.
Greenaway
– Dia 31 de setembro de 1983 é a data da morte do cinema, porque esta foi a data que, segundo a historiografia, o zapeador do controle remoto foi introduzido no cenário social e passou a ser uma presença na sala de estar das pessoas. O público-alvo primordial de Hollywood são homens jovens, na idade de 16 a 25 anos, mas podemos ampliar esta faixa etária e dizer que a maior parte da produção cinematográfica hoje em dia está direcionada para um público jovem, entre 13 e 30 anos. É o conhecido fenômeno da geração laptop, é toda uma geração de pessoas que já nasceram familiarizadas com a tecnologia digital. E este grupo está muito familiarizado com o fenômeno da interatividade e por isso estranha um fenômeno como o cinema onde o mundo está na sua frente. Você está numa sala escura e assiste as coisas passarem, e fica sentado durante 2 horas sem se mexer. E a menos que sejamos absolutamente nostálgicos e saudosistas, este mundo do cinema clássico desapareceu, acabou.

Esta talvez seja uma tarefa para a vanguarda.
Greenaway
– John Lennon disse que esta palavra vanguarda é um termo francês para a gente designar merda. Acho que o conceito de vanguarda é bastante desprezível, porque a vanguarda encontra-se apenas um centímetro à frente da burguesia. E essa é a posição que lhes cabe, porque eles têm justamente a permissão ou a licença de se colocar nesta posição: um centímetro à frente da burguesia. De certa forma, a vanguarda tem a licença de exercer este papel de mexer um pouco com a burguesia e causar um pouco de excitação, de titilação, para que eles não se sintam tão culpados por serem pessoas tão antiquadas. Não precisamos de vanguarda nenhuma. O que precisamos é de uma reinvenção radical do cinema que nos permita colocar de lado todos aqueles modelos de paradigmas de passado.

O que o novo espectador busca no cinema?
Greenaway
– Embora eu faça questão de defender esta tese provocadora de que o cinema está morto, eu também defendo a idéia de que a cultura da tela como tal não está morta. Eu não sei quais são as estatísticas referentes ao Brasil, mas, em 1983, a maioria dos domicílios na Europa tinha aparelho de televisão. Essas pessoas já sabiam, naquela altura, o que era interatividade através da tela. Devemos evitar aquela noção antiga de uma tela de cinema situada num prédio e que tenta se comunicar com uma multidão de estranhos sentados numa sala escura. Embora isso tenha passado, a tela em si vai continuar. Embora as telas tenham abandonado os prédios tradicionais de cinema, elas mudaram, por assim dizer, para uma série de ambientes diferentes: para os shoppings, para os aviões, para as casas. A maioria das pessoas tem telefone celular e relógio de pulso, e estas serão as telas do futuro.

E quanto ao conteúdo e à linguagem que eram veiculados através da forma tradicional do cinema, o que acontece com eles?
Greenaway
– Isso vai continuar, por um lado, essas novas formas de comunicação vão continuar baseadas no interesse e na formação de telespectadores; por outro lado, no propósito e na visão do cineasta e dos produtores. O que vão mudar radicalmente são os meios tecnológicos em que isto tudo vai acontecer. Mas cuidado, porque existem dragões escondidos atrás de cada porta. Como você reagiria à seguinte afirmação: diriam os franceses que não existe mais conteúdo, apenas linguagem, e a implicação dessa afirmação é que, na verdade, a própria linguagem se tornou conteúdo. Como vamos lidar com isto? Há muitos anos Marshall McLuhan propôs que o meio é a mensagem. A forma como recebemos a informação está intimamente associada, ou dependente, à própria comunicação, à própria mensagem.

Como o cinema deve ser no futuro?
Greenaway
– Foram as novas tecnologias que me levaram a perceber a possibilidade de que ainda havia vida naquela velha mídia chamada cinema. Se o cinema começou há 112 anos, se nós aceitamos 1895 como a data do seu início. Existe a percepção de que o ponto de exaustão foi atingido. O que eu gostaria de ver é um cinema que seja uma mídia autônoma, um cinema para o cinema. Dizia-se na década de 20 que ele era uma combinação de teatro e literatura e pintura. E todos nós sabemos que existe uma quantidade enorme de literatura no cinema, uma enorme quantidade de teatro, mas muito pouca pintura. Podemos dar um desconto para os espectadores da década de 20, quando o cinema estava em busca do seu próprio vocabulário. Mas hoje em dia podemos desconstruir qualquer filme e reconduzi-lo aos elementos de literatura, de teatro, que estão por trás deles, por vezes um pouco de pintura, mas não há um vocabulário autônomo do cinema. Fazendo uma analogia com os estudos das ciências naturais, uma espécie só se torna uma espécie quando não pode “foder” com ninguém mais para poder produzir a sua própria cria. E acho que o cinema não pode ser dominado por uma espécie à parte, uma espécie separada, porque ele representa um fenômeno paralelo.

Por que o senhor afirma que existe muito pouca pintura no cinema tradicional?
Greenaway
– Nós na verdade não temos um cinema baseado na imagem, o que temos é um cinema baseado em texto. Quer você se chame Godard, Scorsese, Spielberg ou Almodóvar, o cinema está sempre buscando a livraria, ele volta sempre para a livraria. Não são livros, mas são livros ilustrados. Estou muito pessimista a respeito da situação atual do cinema, mas estou extremamente otimista com aquilo que virá depois dessa crise. Devemos ser caridosos, e acredito que sou extremamente caridoso, mas acho que a última ocasião de uma época em que houve pessoas que tentaram fazer o cinema baseado em imagem, um cinema mais radical, foram os alemães, na década de 70. Foi naquela geração e naquele contexto que surgiu uma tentativa mais ou menos radical de produzir uma cinematografia baseada em imagens, que tomava o seu ponto de partida nas imagens. O que nós vemos depois disso tem a ver, em parte, com advento e a admiração da televisão. As pessoas requentavam, por assim dizer, aquela antiga e clássica tradição de Hollywood.

Como chegar a uma nova linguagem cinematográfica?
Greenaway
– Gostaria de propor duas citações. Picasso e Eisenstein foram os dois maiores visualistas do século 20. Picasso disse que não pintava o que via e sim o que pensava. Eisenstein – talvez o único que mereça ser chamado de cineasta e ser colocado ao lado de nomes como Shakespeare – fez uma vez uma viagem ao México e, quando passou pela Califórnia, teve um encontro com Walt Disney. Surpreendentemente, Eisenstein, o maior cineasta de todos os tempos, disse que Walt Disney era o único verdadeiro cineasta, porque estava fazendo aquilo que todo cineasta devia fazer: produzir cinema a partir da chamada linha zero. A ligação entre essas duas citações é a criação de um cinema que parte da criação de um mundo da imaginação através de imagens, baseado em imagens, que parte da chamada linha zero. Esta é a oportunidade que temos dentro de nós, usando as novas tecnologias à nossa disposição. Sendo caridoso, o que nós tivemos até agora nesses 112 anos da história oficial do cinema foi apenas um prólogo ao cinema. Apesar de todo o estilo provocador de todas as minhas afirmações, o que eu pretendo é uma forma de cinema e uma forma de arte sofisticada que envolva todos os sentidos do espectador, oferecendo a eles uma comunicação inteligente, que se comunique e com a qual seja possível se comunicar.

Sexo e morte são temas recorrentes em sua obra.
Greenaway
– Eu sempre afirmei que, na verdade, só existem dois assuntos, dois temas, um é o sexo e o outro é a morte. Existe algum outro assunto sobre o qual se possa falar? Houve quem dissesse que existe, que é o dinheiro, só que o dinheiro pode ser facilmente subsumido em um dos dois, na morte ou para pagar o outro assunto interessante. Na verdade o dinheiro acaba sendo irrelevante. Qualquer que seja a cultura em que uma pessoa viva, ou que tenha vivido em termos históricos e geográficos, quer seja um puritano ou metodista, estes dois assuntos – a morte e o sexo – sempre mexeram com as pessoas. Para botar um pouco mais de lenha na fogueira, gostaria de falar que, no ano que vem, nós vamos realizar uma pornografia em São Paulo. Essa produção está baseada na vida e na obra de um escritor que viveu no final do século 16, início do século 17. A pornografia produzida por este autor se baseava em texto de livro e não na possibilidade de imagem que nós temos hoje em dia. O início de qualquer mídia, basta pensar no início do cinema, basta pensar no início da fotografia, e certamente no início da Internet, sempre implicou em grande quantidade de elementos eróticos associados ao surgimento dessa nova mídia. Essa prevalência do erotismo causa tal impacto que acaba impulsionando o desenvolvimento das novas tecnologias e acaba fazendo parte integrante da psique humana e da psique social.

Parece paradoxal o senhor dizer que o cinema está morto e, ao mesmo tempo, salientar a importância de olharmos para produções antigas para fazermos o novo cinema.
Greenaway
– Tem toda razão este tipo de paradoxo, mas a memória é sempre essencial, ela tem a ver com a história e esta, por sua vez, tem a ver com a mitologia, porque a maioria das pessoas não aprende história pelos livros de História e sim a partir da mitologia. E mais, a recapitulação da história é simplesmente imprescindível, como inevitável para qualquer tipo de projeção para o futuro. A gente pode tomar a ficção científica como exemplo. Não é por acaso, nem poderia ser de outra forma, que todas as produções de ficção científica são profundamente enraizadas no passado.

E já existe algum projeto seu que se ancore neste passado?
Greenaway
– Estou planejando uma obra de ficção científica com uma proposta bastante interessante que vou descrever brevemente. “Existe uma interessante história da tradição platônica, situada em Atenas, do ano 100 antes de Cristo, que sugere que o ser humano, naquela época, era hermafrodita e auto-suficiente. E esse ser humano hermafrodita e auto-suficiente começou a ficar muito orgulhoso e muito arrogante. Então, os deuses para castigá-lo o dividiram ao meio, criando assim o homem e a mulher. O que impedia o ser humano de continuar sendo arrogante, porque ele tinha que gastar todo o seu tempo e toda a sua energia buscando a sua outra metade. E este é o estado atual das coisas. Prestem atenção, o ser humano está se tornando arrogante de novo. Os deuses para punir essa arrogância decidiram intervir e, mais uma vez, dividiram esses dois seres em quatro, de forma que agora quatro seres precisam “foder” para produzir um quinto. Se agora é difícil encontrar uma outra metade, imaginem o que vai ser a dificuldade de encontrar quatro pessoas que cheguem a um consenso. Essa é a proposta básica do filme de ficção científica que estou prestes a realizar, cujo título vai ser O fruto quádruplo. Vocês hão de concordar que eu ainda tenho algum futuro pela frente”.

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