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Invasão de privacidade na telefonia inferniza usuários (parte 1)

Vazamentos de dados do Serasa, ligações indesejadas, privacidades violadas: usuários de telefonia estão sujeitos diariamente aos mais diversos abusos cometidos por empresas que têm acesso a dados pessoais
Por Cristina Ávila / Publicado em 26 de fevereiro de 2021

Foto: Igor Sperotto/Arquivo Extra Classe

Foto: Igor Sperotto/Arquivo Extra Classe

“Meus telefones são meus e de uma galera que dispõe deles da maneira que melhor lhes convier”, exclama Maria dos Prazeres Diniz, 67 anos, moradora da zona rural de Brasília, assistente social aposentada do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. “Como moro sozinha numa chácara, decidi comprar um segundo celular e não dei o número pra ninguém, pra falar só com os filhos. Infelizmente, não posso sequer deixá-lo ligado, senão, toca toda hora. Vendedores de cartões de crédito, seguros, planos de saúde. Já no meu número principal, criei uma resposta padrão. Digo que estou negativada, endividada em todos os cartões. Desde que passei a me identificar como má pagadora, as chamadas diminuíram. Contudo, restam as tentativas de golpe, sobrinhos em apuros numa estrada, doações pra caridade, pedidos pra ajudar uma família necessitada, construção de casa paroquial ou uma feijoada solidária. Domingo bem cedo me acordam. Um inferno”.

Maria dos Prazeres: “A gente se sente impotente. Não sei o que fazer”

Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução

Maria dos Prazeres: “a gente se sente impotente. Não sei o que fazer”

Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução

Maria dos Prazeres resume o que a maioria dos brasileiros sente diante da mesma situação: “A gente se sente impotente. Não sei o que fazer”. Mesmo os órgãos públicos são desafiados diante o drible que levam de artilheiros invisíveis. As razões foram escancaradas pelo Procon-SP (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor, de São Paulo, personalidade jurídica de direito público) em ações que impactaram as operadoras de telefonia Claro, Oi, Tim, Vivo, a empresa de segurança digital Psafe e a Serasa Experian, marca de análises e informações para decisões de crédito e apoio a negócios.

Vazamento de dados do Serasa

O Procon-SP notificou a Serasa Experian pedindo explicações sobre o megavazamento de informações sobre 223 milhões de brasileiros, incluindo Cadastro de Pessoa Física (CPF), Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), nome, sexo, data de nascimento, dados de veículos e outros. O escândalo é ainda maior quando se compara à população estimada hoje no Brasil, que é de aproximadamente 212 milhões – a explicação é que foram agregadas informações de mortos. Por isso, a probabilidade é de que tenham sido vazados, pelo menos, os dados básicos de todos os cidadãos e cidadãs. Inclusive de autoridades importantes do país. Ninguém escapa da trama.

Às teles e à Psafe, o órgão paulista de defesa do consumidor pediu explicações sobre suposto vazamento de mais de 100 milhões de celulares. A empresa de segurança digital confirmou o vazamento de 103 milhões de registros de contas na dark web, local obscuro de navegação restrita que atrai tipos como pedófilos e traficantes. O Procon ressalta a declaração feita pela cibersegurança de que foi contatada por um hacker que se encontra fora do Brasil e está vendendo os dados vazados. A instituição quer saber como se deu esse contato, quais as informações e onde foram vazadas. As respostas da Serasa estão em análise na diretoria de fiscalização e as outras empresas pediram dilação de prazo, que foi concedida até 1º de março (ler box ao final desta matéria).

Consumidor perdeu força

“O Código de Defesa do Consumidor, como todos os demais direitos, perdeu muito a força”, adverte a gaúcha Vera Remedi, que hoje mora em Porto Alegre, mas foi assessora da diretoria executiva do Procon-SP durante cinco anos, até 2014. “Mesmo lá em São Paulo, havia um temor maior das empresas de fazerem parte do cadastro de prestadores de serviços e produtos que eram os piores, com mais reclamações. As empresas tentavam melhorar, a partir dessas denúncias. Só mediante muita incomodação se consegue reverter certas questões, há reclamações que chegam ao Procon e são atendidas, mas as empresas continuam lesando os demais”.

“O Código de Defesa do Consumidor, como todos os demais direitos, perdeu muito a força”, adverte a gaúcha Vera Remedi, que hoje mora em Porto Alegre, mas foi assessora da diretoria executiva do Procon-SP durante cinco anos

Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução

“O Código de Defesa do Consumidor, como todos os demais direitos, perdeu muito a força”, adverte a gaúcha Vera Remedi, que hoje mora em Porto Alegre, mas foi assessora da diretoria executiva do Procon-SP durante cinco anos

Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução

Formada em Ciências Jurídicas, com mestrado em direito, Vera Remedi é também vítima: “Tenho recebido ligações em que só dizem… tem alguém aí? Desligam na minha cara. Pode ser que não seja nem relação de consumo. Pode ser interesse de grandes corporações que desejem dominar nossos dados. Outro dia recebi uma oferta de serviço de identificação de chamadas justamente no momento em que eu estava recebendo uma ligação atrás da outra. Uma coisa é o telemarketing, agora essas que te importunam e não dizem nada, com um número diferente a cada vez, é difícil saber a quem recorrer. O Procon não tem como resolver isso, pois não é uma relação de consumo. Já desliguei meu fixo, é um inferno. Ligações no fixo, no celular, no telefone dos meus filhos. Azucrinam a vida das pessoas. Quando vivi em São Paulo me inscrevi no programa “Não Me Ligue” do Procon, e melhorou um pouco, mas não fiz isso em Porto Alegre. Talvez eu faça pra ver se resolve este tipo de situação que estou passando…”, lamenta a especialista em direito.

Lei de Bloqueio

Em São Paulo, a Lei de Bloqueio do Recebimento de Ligações de Telemarketing é a 13.226/08 regulamentada pelo Decreto Estadual 53.921/08. O consumidor do estado cadastra telefones fixos e móveis a serem bloqueados, mas pode autorizar empresas das quais deseja ligações. Após 30 dias, as chamadas devem ser suspensas. O cadastro para bloqueio é restrito para ligações telefônicas realizadas por empresas de telemarketing ou fornecedores que se utilizam desse serviço, mas entidades filantrópicas podem continuar pedindo doações por esse meio. E as empresas estão livres para encaminhar mensagens de texto. Nesse caso, o consumidor deve requerer a suspensão ao serviço de atendimento (SAC) das próprias telefônicas, com base em seu direito de usuário, garantido pelo artigo 6º, inciso XXIV da Resolução 477 da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Com nome bastante parecido com o do Procon, “Não Me Perturbe”, a partir de uma iniciativa da Anatel, as prestadoras de serviço de telecomunicações criaram e têm operado um site próprio para bloqueio de ligações abusivas e recentemente incorporaram a possibilidade de incluir denúncias contra operações de empréstimo consignado e cartão de crédito consignado. A iniciativa é de autorregulação.

Leia a continuação dessa reportagem:
Invasão de privacidade na telefonia inferniza usuários (parte 2)

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