JUSTIÇA

STF retoma julgamento de marco temporal sob pressão de povos indígenas

Votação do marco temporal, que desconsidera demarcações de terras anteriores à Constituição de 1988, será acompanhada por lideranças dos povos indígenas
Por Gilson Camargo / Publicado em 7 de junho de 2023

Foto: Fábio Rodrigues Pozzebon/ Agência Brasil

Acampamento da Mobilização Nacional Contra o Marco Temporal reúne cercca de 2 mil lideranças indígenas em Brasília para acompanhar o julgamento

Foto: Fábio Rodrigues Pozzebon/ Agência Brasil

Nesta quarta-feira, 7, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) terá 50 cadeiras reservadas para que indígenas assistam aos debates sobre o marco temporal para demarcação de territórios no país. A sessão está marcada para começar às 14h.

Um telão também será montado na lateral do STF, onde será permitida a permanência de 250 indígenas. A autorização para a presença de representantes dos povos originários foi dada pela ministra Rosa Weber, presidente da Corte, que recebeu lideranças em seu gabinete na véspera do julgamento.

Assim como nas outras oportunidades em que o recurso sobre o assunto foi pautado, centenas de indígenas foram à Brasília acompanhar o julgamento de perto.

Na terça-feira, 6, segundo dia do Acampamento da Mobilização Nacional Contra o Marco Temporal, véspera da retomada do julgamento do caso de repercussão geral sobre direitos originários, cerca de 2 mil lideranças indígenas acompanharam, na tenda principal do acampamento, debates sobre questões territoriais, garantia de direitos e proposições que tramitam nos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) organizou manifestações em todo o país pela derrubada do marco temporal pelo STF.

O julgamento no STJ será retomado com o voto do ministro Alexandre de Moraes, que pediu vista (mais tempo para análise) ainda em 2021, quando se iniciou o julgamento. Até o momento, votaram o relator Edson Fachin, que foi contrário à tese de um marco temporal, e o ministro Nunes Marques, favorável à tese.

“O marco temporal é uma tese política que vem para barrar as questões de demarcações dos nossos territórios, uma tese trazida pela bancada ruralista, pelo agronegócio, pelos fazendeiros para tentar legalizar a entrada nos territórios indígenas, uma tese de genocídio para as populações indígenas”, afirmou Cristiane Baré, assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Controvérsia

A disputa está ligada ao julgamento de 2009, em que o STF decidiu a favor da demarcação da Terra Indígena Raposa Terra do Sol, em Roraima.

À época, fez parte do entendimento favorável à medida o fato de que os povos indígenas ocupavam a área no momento da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.

A partir daí, tal entendimento deu vazão a dezenas de processos contra a demarcação de terras indígenas. Com base nessa tese, alguns proprietários rurais conseguiram decisões favoráveis nas primeiras instâncias da Justiça.

O caso que chegou ao plenário do Supremo é um recurso contra decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que, valendo-se do marco temporal, deu razão ao estado de Santa Catarina na disputa com o povo Xokleng pela posse da Terra Indígena Ibirama.

O recurso que discute o tema tem repercussão geral, o que significa que o desfecho do julgamento servirá de parâmetro para analisar a legitimidade de todas as demarcações de terras indígenas no país.

Insegurança jurídica

O debate contrapõe povos indígenas e entidades representantes do agronegócio, que alegam ser necessário, em nome da segurança jurídica, estabelecer que somente terras ocupadas por indígenas na data da promulgação da Constituição de 1988 podem ser demarcadas.

Nessa perspectiva, o argumento é de que proprietários que ocupavam e produziam em suas terras antes de 1988 não poderiam ser obrigados a sair somente com base em indícios da existência de indígenas no local em tempos longínquos.

Isso colocaria em risco de desapropriação boa parte das terras produtivas do país, alegam os representantes de diversos setores agropecuários.

Em nome da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o advogado Rudy Ferraz argumentou que o marco temporal é “importante instrumento de conciliação” para a resolução de conflitos agrários.

“Não podemos viver numa insegurança completa, com a possibilidade de qualquer título, daqui a 10 ou 20 anos, ser anulado porque alguém no passado falou que havia possibilidade de ter terra indígena ali”, acrescentou o defensor, em sustentação oral, no início do julgamento.

Esbulhos e perseguições

Por sua vez, organizações como Apib e o Cimi defendem que a Constituição não faz nenhuma menção a marco temporal, e que a tese desconsidera centenas de anos de esbulhos e perseguições aos povos originários.

“Impor sobre nós o ônus de estar ocupando nossas terras em 5 de outubro de 1988 é desconsiderar esse passado muito recente, no qual sequer tínhamos direito de definir nossos destinos”, disse a advogada Samara Pataxó, coordenadora jurídica da Apib.

Ao todo, falaram no julgamento representantes de 21 entidades favoráveis aos povos indígenas e 13 favoráveis aos produtores rurais.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, se posicionou contra o marco temporal, frisando que os direitos originários dos povos indígenas já existiam em leis e normas anteriores à Constituição de 1988.

A Apib lançou uma cartilha contra a tese do marco temporal. O documento Máquina de Moer produzido em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais Brasil (Flasco), tem objetivo de ser um material explicativo e didático sobre o marco temporal para lideranças indígenas, organizações parceiras e imprensa.

As mobilizações reforçam os impactos do marco temporal na vida dos povos originários e no futuro do planeta com o tema “Pela justiça climática, pelo futuro do planeta, pelas vidas indígenas, pela democracia, pelo direito originário/ancestral, pelo fim do genocídio, pelo direito à vida, por demarcação já: Não ao Marco Temporal”.

Cláusula pétrea

Em seu voto, o ministro Edson Fachin afirmou que os direitos originários dos povos indígenas são fundamentais, portanto, têm o status de cláusula pétrea na Constituição, não podendo ser alterados ou relativizados. Acrescentou que esses direitos já existiam antes da Carta de 1988.

“A data da promulgação da Constituição de 1988 não constitui marco temporal para a aferição dos direitos possessórios indígenas, sob pena de desconsideração desses direitos enquanto fundamentais, bem como de todo o arcabouço normativo-constitucional da tutela da posse indígena ao longo do tempo”, disse o relator.

Soberania

Já o ministro Nunes Marques, conduzido ao STF por Jair Bolsonaro, abriu divergência. Para ele, a soberania nacional poderia estar em risco caso não seja estabelecido um marco temporal, diante da possibilidade de uma “expansão ilimitada” das áreas passíveis de reivindicação pelos indígenas.

“Posses posteriores [a 5 de outubro de 1988] não podem ser consideradas tradicionais, porque implicariam não apenas o reconhecimento dos indígenas a suas terras, como o direito de expandi-las ilimitadamente para outras áreas já incorporadas ao mercado imobiliário nacional”, disse Marques.

Lobby do agronegócio

Paralelamente à discussão no Supremo, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei de 2007 que institui o marco temporal. A tramitação do PL 490/2007 foi acelerada depois que Rosa Weber, presidente do Supremo, marcou a retomada do julgamento sobre o assunto. A ministra fez o anúncio em abril.

O PL do Marco Temporal foi aprovado na Câmara em regime de urgência, na semana passada, e encaminhado ao Senado. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já declarou, contudo, que o assunto não tramitará em caráter de urgência na casa, devendo seguir o rito normal de discussão nas comissões temáticas.

Com isso, há possibilidade de o projeto acabar no limbo, caso o Supremo considere que a ideia de um marco temporal para a demarcação de terras indígenas fere cláusula pétrea da Constituição.

*Com informações do Cimi, Apib e Agência Brasil.

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