MOVIMENTO

A escravidão moderna e o papel da sociedade na luta contra este sistema

A pesquisadora da Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, Paola Massardo Baldino, fala sobre o histórico e a conveniência da escravidão moderna no Brasil e no mundo
Por Douglas Glier Schütz / Publicado em 3 de maio de 2023

Escravidão moderna no Brasil e no mundo

Foto: João Jesus/Pexels

Foto: João Jesus/Pexels

No início de 2023, o Rio Grande do Sul foi destaque nacional por conta de flagrantes de trabalho escravo. O estado bateu recorde de resgates antes do final de fevereiro e em 30 de março já somava 294 casos, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). No Brasil, entre 2019 e 2022, mais de 6 mil pessoas foram resgatadas de condições análogas à escravidão, de acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT). No mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 49,6 milhões de pessoas vivem em condição de escravidão.

O caso ocorrido no Rio Grande do Sul acendeu um alerta e desencadeou uma onda de novos casos de denúncia. Até o final de março, mais de mil pessoas já haviam sido resgatadas de situações análogas ao trabalho escravo em todo o país, de acordo com o MTE. Jovens menores de idade, idosos, mulheres e estrangeiros estão nessa lista.

Para compreender esses números e a chamada “escravidão moderna”, o Extra Classe conversou com a doutoranda do Departamento de Direito Comparado da Escola Doutoral da Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, Paola Massardo Baldino. Paola, em conjunto com Michelle Alves Monteiro, Mestra em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e analista judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, está escrevendo um artigo sobre os traços da colonialidade no Brasil, como isso se reflete nos quadros de escravidão moderna e, sobretudo, nas cores dos escravizados.

Extra Classe – O que é a escravidão moderna e o que a diferencia da escravidão no passado?
Paola Massardo Baldino – A escravidão histórica pode ser explicada como a objetificação de uma pessoa, quando ela passa a ser considerada um bem móvel de outra, sua propriedade. Com os avanços convencionais e jurisprudenciais, hoje, se considera juridicamente que a escravidão moderna ocorre quando o exercício de um ou alguns atributos do direito de propriedade por uma pessoa acarretam na destruição da personalidade jurídica de outra pessoa. É difícil definir o conceito em termos leigos, mas pode-se dizer que escravidão moderna ocorre quando uma pessoa está na órbita de posse da outra sem, ao mesmo tempo, virar sua propriedade; é a demonstração de controle que uma pessoa tem sobre a outra. Isso significa que determinados elementos devem estar presentes: controle dos movimentos de um indivíduo, controle do ambiente físico, controle psicológico, medidas tomadas para prevenir ou desencorajar qualquer tentativa de fuga, uso da força, ameaças de recurso à força ou coerção, duração, reivindicação de direitos exclusivos, tratamento cruel e abusivo, controle da sexualidade e trabalho forçado. Existem ainda práticas consideradas análogas à escravidão como a servidão e o trabalho forçado ou obrigatório. A servidão ocorre quando existe uma forma particularmente grave de negação de liberdade. E o trabalho forçado é um trabalho exigido sob ameaça de qualquer penalidade e contra a vontade da pessoa em questão.

EC – Por que existem indivíduos que ainda insistem em relativizar este tipo de situação?
Paola – A razão de existir uma relativização da existência de trabalho escravo moderno é a persistência de um pensamento elitista e colonialista. Da mesma maneira que o francês ocidental se identifica mais com os refugiados ucranianos do que com os refugiados sírios ou afegãos, o brasileiro de classe média-alta que se considera branco e que vive em um mundo de privilégios não acha um “terreno comum” com a vítima do trabalho escravo. Logo, não presta atenção na recorrência cada vez mais frequente desse tipo de caso e acha um exagero a utilização da expressão “escravidão” sem nem mesmo conhecer o conceito na sua declinação contemporânea. A manutenção do status quo sempre existirá, ainda que inconscientemente, na mente dos que dele se beneficiam; o reconhecimento de problemas sociais e a luta para uma vida boa para todos perturba os que estão acostumados com os privilégios que sempre lhe foram inerentes. A luta pelo fim da escravidão foi e continua sendo uma luta de reconstrução de uma sociedade calcada em classes, privilégios, discriminações e explorações.

EC – Existe alguma explicação para o aumento nos casos de escravidão? É um padrão se repetindo em âmbito mundial?
Paola – Eu pesquiso escravidão moderna há quase seis anos e acredito que apesar de estarmos vendo um aumento dos números, estamos, na verdade, nos deparando com a publicização de situações que existem há muito mais tempo do que pensamos. É um fenômeno que acontece no mundo inteiro; países europeus, como a França e a Inglaterra, já foram condenados pela Corte Europeia de Direitos Humanos por casos de escravidão moderna. O número de pessoas resgatadas e a quantidade de casos tende a ser menor, mas isso se deve a inúmeros fatores como tamanho da população, tamanho do país, desenvolvimento sociocultural (grande parte da evolução dos países latino-americanos se deu em um contexto escravocrata), sistemas de inspeção, desenvolvimento do aparato legislativo, etc. Outros países são notórios pela existência de trabalho escravo, países do sudeste asiático, Índia, China. Esses dois últimos são responsáveis pela produção de produtos de grandes marcas estadunidenses e europeias que terceirizam as suas produções de maneira a reduzir os custos e aumentar os lucros, logo os países que tanto se denominam defensores dos direitos humanos são coniventes com a exploração dos nacionais de outros.

Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

A tese de Paola é sobre “A eficácia da proibição da escravidão moderna: uma análise comparada entre Austrália, Brasil, França e Inglaterra”

Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

EC – Faltam políticas públicas ou fiscalização?
Paola – Na maioria dos países existe uma falta de estrutura legal, jurídica e fiscalizadora que seja realmente eficaz para combater a escravidão moderna. Mas o principal problema é que essa prática se enquadra perfeitamente no sistema de capitalismo selvagem no qual as empresas fazem de tudo para maximizar o lucro. Infelizmente, esse “tudo” inclui reduzir uma pessoa à condição de escravo. No Brasil, o enquadramento jurídico relativo à escravidão deveria ser atualizado e expandido, apenas um artigo no código penal não é o suficiente para impedir nem dissuadir aqueles que estão perpetrando o crime. Também é necessário um maior investimento nas inspeções, afinal o território nacional é enorme, e uma centralização judiciária para tratar esse tema pois atualmente os casos se dividem entre Justiça do Trabalho e Justiça comum, com atuações concomitantes do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Federal.

EC – Sobre a uberização do trabalho, o desmonte das políticas públicas que protegem o trabalhador pode estar relacionado aos casos como o das vinícolas no Rio Grande do Sul e das lavouras de café em Minas Gerais?
Paola – O desmonte de políticas públicas que protegem o trabalhador está com certeza relacionado aos casos que temos visto nos últimos meses/anos. Há quanto tempo existe trabalho escravo, na sua concepção moderna, no Brasil é algo que não é fácil de se determinar porque os dados só começaram a ser coletados durante o primeiro ano de governo do Fernando Henrique Cardoso. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, em 1995, o governo brasileiro reconheceu a existência de trabalho forçado no seu território . Desde essa época, o Ministério Público do Trabalho combate casos de escravidão moderna. Em 2016, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Fazenda Brasil Verde pelo fato de 85 trabalhadores terem sido reduzidos à condição de escravidão. Segundo a decisão da Corte Interamericana, medidas legislativas deveriam ter sido tomadas de maneira a tornar o ordenamento legal brasileiro mais eficiente nesse tema, mas nada foi mudado. A Corte não disse o motivo dessa falta de adequação legal, eu suspeito que seja por causa das complicações do cenário político na época. No ano seguinte à condenação, a reforma trabalhista foi aprovada e ela nada mais fez do que fragilizar as relações de trabalho e, sobretudo, a proteção dos trabalhadores. A expansão e facilitação das possibilidades de terceirização e a retirada da responsabilidade das “empresas mãe” colocaram o trabalhador em uma posição de extrema vulnerabilidade. E tudo isso foi se desenvolvendo em um período de declínio econômico, então as pessoas acabaram se submetendo a condições cada vez piores para pagar as suas contas. A reforma de 2017 destruiu o pouco de proteção que existia, pois nada existe que possa dissuadir uma empresa mãe de contratar uma terceirizada que escraviza os trabalhadores, porque no final elas não serão responsabilizadas, elas não precisam mais se preocupar com a inspeção, com o respeito das boas condições no ambiente de trabalho.

EC – Os casos Zara (2011) e Renner (2014) já traziam as questões das empresas terceirizadas e a não fiscalização dessas contratadas. A repetição dessa situação, mais de dez anos depois, com o caso Salton, Aurora e Garibaldi mostra um despreparo, ou até conivência, dos governos para lidar com a questão do trabalho escravo?
Paola – É uma conivência. Antes da reforma trabalhista o Brasil já havia sido condenado pela Corte Interamericana no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde e a decisão proferida dizia que a legislação brasileira não estava à altura do necessário para combater a escravidão moderna e que, portanto, deveria ser melhorada. Não só isso não aconteceu, como a reforma flexibilizou os casos de terceirização abrindo as portas para uma exploração desenfreada. Infelizmente, apesar de vivermos em um estado democrático de direito, nós vivemos em um mundo no qual o dinheiro dita as normas; e se o enquadramento legislativo não for suficientemente dissuasório, as grandes empresas irão preferir explorar as pessoas, reduzindo-as à condição de escravas, visando a obtenção de lucro máximo, pois sabem que as consequências não serão contundentes. As consequências do crime devem ser superiores aos benefícios que ele gera e, atualmente, não é o que vem acontecendo.

EC – Em janeiro tivemos uma paralisação dos entregadores de aplicativos por melhores condições de trabalho. Como compreender que esse modelo não é simplesmente “trabalho autônomo”, mas sim uma forma de exploração? O que falta para essa compreensão?
Paola – Falta conhecimento socioeconômico. O Brasil era uma colônia extrativista e a população brasileira, mesmo após a Independência, seguiu marcada pelo pensamento colonial de exploração. Passamos do estado de exploração pela metrópole, para exploração das classes economicamente carentes pelas classes abastadas. Nós temos uma cultura de prestação de serviços que não existe em outros países, sobretudo países do norte global. A classe média-alta brasileira está acostumada a ter porteiro no prédio, segurança no condomínio privado, empregada doméstica (que às vezes mora no mesmo apartamento, ou seja, está sempre disponível), pedir tele-entrega de quase qualquer coisa a qualquer hora. O problema é que muitos de nós não se questionam sobre a posição que esse prestador de serviços ocupa na sociedade, se ele tem carteira assinada, plano de saúde, acesso à uma boa educação, possibilidade de mudar de profissão, de trabalhar com algo que queira e não algo que coloque comida na mesa. As pessoas que não enfrentam essas dificuldades às vezes vivem em uma bolha e não se dão conta que a maior parte da população brasileira não vive na mesma situação econômica que elas. Muitos ainda criticam políticas sociais e falam que as pessoas devem trabalhar, quem realmente quer vai atrás e citam a falácia da meritocracia, como se meritocracia existisse em qualquer lugar e sobretudo em um país socialmente desigual e sistemicamente racista como o Brasil.

EC – Como a população pode atuar para que situações como a das vinícolas e das lavouras de café não se repitam e para que o debate acerca do trabalho escravo gere resultados positivos?
Paola – 1º. acredito que a população deve pedir a revogação da reforma trabalhista de 2017, pois o objetivo pelo qual ela foi criada é, primeiramente, falacioso; segundamente, precariza em demasia a posição do trabalhador; e, terceiramente, aumenta a possibilidade de fraude e exploração em casos de terceirização;
2º. Boicotar as empresas que reconhecidamente utilizam mão-de-obra escrava é sempre uma boa mensagem, deixa claro que a população prefere gastar o seu dinheiro com produtos que não sejam provenientes de empresas que desrespeitam os direitos humanos;
3º. Não esquecer dos acontecimentos depois de algumas semanas, ir atrás do desenrolar da história, como os perpetradores foram responsabilizados, quais as consequências para as empresas, verificar que os trabalhadores tenham sido indenizados;
4º. Não permitir que outros diminuam o peso dos casos de escravidão (como o que aconteceu no jantar dos Sirotsky). A indignação com esse tipo de exploração não pode passar;
5º. Consultar a “lista suja” do trabalho escravo;
6º. Difusão de programas de conscientização do trabalho escravo e suas formas análogas;
7º. Analisar a sua própria conduta, de nada adianta criticar as vinícolas se você tem, por exemplo, uma empregada doméstica que não recebe o devido salário. As mudanças começam através de uma maior conscientização interna.

EC – Também sobre a situação dos entregadores e outras classes que são exploradas com a ideia de “trabalho autônomo”, existe um papel social para fazer crescer o debate sobre essas questões?
Paola – Acredito que o principal é a educação. Temos que exigir que os currículos escolares abranjam uma análise mais aprofundada da escravidão histórica, da sua abolição e dos decorrentes desdobramentos socioculturais que levaram à situação atual que vemos no país (número crescente de casos de escravidão moderna). A redução de pessoas a condições subumanas é algo tristemente comum no nosso país e precisamos ter acesso a mais conhecimento para reconhecer essas situações e para que pessoas vulneráveis não sejam cooptadas por esse “mercado” exploratório. Devemos ainda usar nosso dever cívico de voto para eleger representantes que se importem com o tema de proteção trabalhista e proteção dos direitos humanos, que tenha como plano de governo a implementação de políticas sociais que ajudem as pessoas das classes economicamente vulneráveis a terem acesso à uma boa educação e se tornando, dessa maneira, integrantes competitivos do mercado de trabalho. Não é possível continuar relegando parte da sociedade às margens socioeconômicas sem que isso tenha consequências como a exploração da mão-de-obra através da escravidão moderna e de suas formas análogas.

 

Douglas Glier Schütz é estagiário de jornalismo. Matéria elaborada com supervisão de Gilson Camargo.

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