OPINIÃO

O Bonsai e a Libélula: uma história de amor, de dor e de superações

Por Cristiano Goldschmidt / Publicado em 16 de novembro de 2021

Foto: Vitor Mesquita

Ana Lúcia Rebout

Foto: Vitor Mesquita

A vida e suas reviravoltas. Quase todo mundo espera viver um romance, seja na primeira juventude, seja no outono da vida. Os amores maduros, em particular, parecem quase invulneráveis, porque a maturidade traz uma maior compreensão que dispensa as discussões tolas e as inseguranças que minam os relacionamentos mais precoces.

Mas, no meio dessa doce placidez, a enfermidade pode cair como um raio ou um castigo de algum deus cruel e desestruturar as vidas completamente, trazendo dor, medo, limitação. No meio dessa tempestade, o amor se revela o único farol; o cuidado, a única direção a dar norte em meio ao caos.

É sobre isso que nos fala Ana Lúcia Rebout em O Bonsai e a Libélula (Pubblicato Editora, 2020). Memórias de amor, de luto, de coragem, de caos. Quando a fragilidade da vida humana se descortina em toda a amplidão e só resta uma luta para perder menos do que a morte nos deseja arrancar.

Ana Lúcia nos narra as pequenas delícias diárias de sua relação com o francês Ghislain, com insuperáveis problemas com a nossa língua, mas cuja paixão o arrancou de sua terra natal para viver esse amor brasileiro por pouco mais de dez anos. De natureza reservada e rotinas regulares, essa condição o tornou especialmente vulnerável quando uma série de AVCs lhe tolheu as faculdades, em especial a da visão, nessa terra estrangeira e no ambiente impessoal que muitas vezes se torna o meio hospitalar.

Para defender seus hábitos, seus gostos, para salvá-lo da falta dos pequenos prazeres cotidianos, preservá-lo dos procedimentos mais invasivos e manter um pouco de sabor em sua vida, Ana Lúcia precisou lutar como uma leoa, muitas vezes sendo julgada, muitas vezes à beira do colapso. Mas sempre reunindo forças para não permitir que esse homem, de vidas, hábitos e vivências tão brilhantes, se sentisse abandonado, nem que fosse obrigado a viver as intervenções que preservam a vida do modo mais desumanizante.

A narrativa de Ana começa com o pressentimento. Esse imponderável das almas sensíveis que capta no ar as menores mudanças de energia. Nada ainda havia ocorrido, mas a opressão no peito se anunciava. Horas depois, o primeiro anúncio da tristeza: Ghislain perde a visão, que volta depois de algumas horas, e se vai novamente no dia seguinte, causando a inevitável busca ao serviço médico. Entre as intercorrências, ela nos joga para dentro daquela relação, a coleção de hábitos e delicadeza que formava a trama da vida de duas pessoas que se construíram tão peculiares.

Gostos, a influência da França, sua cultura e sua língua, em tudo e sempre a ternura e o cuidado das relações de afeto verdadeiro. Tudo nos últimos momentos. Mas raramente sabemos quando estamos desfrutando o último de alguma coisa. Só o olhar retrospectivo nos dá os contornos da tragédia pessoal.

O meu marido não fala português, só francês

Foto: Arquivo Pessoal

Ghislain Rebout

Foto: Arquivo Pessoal

Esse é o mantra que inicia a via crucis do casal pelos caminhos hospitalares. Contingência que a obriga a estar muito perto em todos os momentos, mesmo aqueles em que o protocolo hospitalar a dispensaria. Com uma paixão e uma vontade ferrenhas, Ana se torna voz e escudo desse ser humano fragilizado, cada vez mais limitado, que vai perdendo progressivamente a capacidade de expressão.

Ela era um “corpo estranho” na rotina da CTI, o que não foi nada bem-vindo pelo pessoal da equipe de saúde. A amizade do médico Luís Felipe, que foi seu apoio e seu defensor, permitiu que seguisse firme nessa “missão do coração”. Missão que era uma batalha.

Contra a própria tristeza, sim. Contra o cansaço físico. Mas também com profissionais de saúde menos empáticos e sensíveis, contra a prescrição “inexorável” de procedimentos invasivos para os quais havia alternativa, sim, se buscada com o coração. Com a responsabilidade imputada caso a alternativa trouxesse alguma complicação… Vale a pena o risco para manter para um indivíduo o prazer do paladar, quando tantos outros já lhe foram roubados?

E os pequenos prazeres ganham novas dimensões em tais circunstâncias. A mensagem ou visita de um amigo. Uma taça de vinho. No hospital, a vista de uma sacada se torna para Ana o contato possível com o mundo fora da dor, com o resto do mundo, com um passado recente de tranquilidade.

Toda decisão nesse momento tem um peso. E cuidar de si mesma, permitir-se os pequenos prazeres também se torna um encargo, uma responsabilidade. Enfrentar a insensibilidade de alguns profissionais em seu território sagrado, o hospital, é uma imersão de dor que traz a tudo um peso inédito à vida.

Mudar toda uma vida para uma rotina estranha, horários que você não determina, a incerteza. E a incômoda sensação de que, mesmo retornando ao lar, nada nunca será como antes.

Lar, doce lar. O mesmo lar?

Nesse contexto, voltar para o lar do amor e da tranquilidade não é uma tarefa tão simples. Além dos ajustes para receber uma pessoa constantemente acamada e a equipe de cuidados que passa a acompanhá-lo, existem os ajustes do coração, o cuidado em apagar memórias dolorosas, em diminuir o impacto das mudanças de realidade. Em conviver com o de sempre que jamais voltará a ser o como antes.

Com uma pequena equipe de saúde de auxílio, Ana consegue devolver vários pequenos prazeres a Ghislain, consegue restabelecer algum tipo de rotina no próprio trabalho, recupera algo da privacidade e da normalidade. Mas a tranquilidade parece distante.

Episódios de pneumonia infecciosa, escaras… Dentro do novo cotidiano, a enfermidade segue realizando seu trabalho, silenciosa, mas implacável. Surda e muda a todos os constantes cuidados. O leitor vai se envolvendo nesse turbilhão de acontecimentos e emoções na medida em que vai tomando conhecimento dos pequenos mágicos detalhes da história nunca perfeita, mas sempre tão peculiar e encantadora quando construída entre dois seres humanos.

A morte lança o seu véu negro sobre tudo

Mas todo o cuidado e toda a luta não podem vencer o curso inexorável do fim de uma existência. O falecimento de Ghislain traz a fase mais negra para Ana.

Começa com os trajes, passa a se desanimar de outras cores além do negro. Cada momento é sentir seu peso, sofrer e rememorar. O luto e suas batalhas são um mistério que só se desvela a partir da vivência de cada um, da química particular do sentimento. Ana decide “aprender a ser triste”. Expresso mais ou menos efusivamente, é uma dor em que os profissionais da área reconhecem a intensidade do estresse de uma dor física. E é muito comum que provoque algum sintoma físico, se dura muito tempo.

E passado algum tempo, Ana pressentiu que algo estava errado. Era preciso tocar o fundo do poço para renascer. “O câncer como tatuagem do luto.” A doença trouxe o impacto necessário para que ela pudesse fazer as pazes com a vida outra vez. Pessoa de natureza frontal, enfrentou a doença novamente, dessa vez em seu corpo, com a mesma coragem com que o fizera em relação ao homem que amava.

Duas cirurgias, tratamento radioterápico. Mas outra maneira de ver a vida. A trajetória contou com muitos encontros, dos amigos sempre presentes, de gente com muita história de superação. Ana retomou o corpo e a vida. E permitiu-se, outra vez, não saber mais ser triste.

Contada de maneira sensível, em alguma parte, a história dessa mulher de vontade férrea vai encontrar nossa identificação. E vai nos ensinar coisas. Sobre os afetos. Sobre as peculiaridades. Sobre a individualidade. Sobre a dor. E sobre a coragem para enfrentar e superar o que venha.

 

Cristiano Goldschmidt é jornalista e pedagogo, doutorando e mestre em Artes Cênicas (Ufrgs). Conselheiro de Estado da Cultura do RS

Comentários