OPINIÃO

O mito do professor beija-flor

Por Cristiano Fretta / Publicado em 23 de maio de 2022

Foto: Frank Cone/ Pexels

“E apenas aos loucos e às crianças é dado o pleno direito de não serem máquinas”

Foto: Frank Cone/ Pexels

A rotina de trabalho tem a inevitável capacidade de distorcer nossa visão de mundo em direção a darmos valor somente àquilo que é relevante à lógica da produtividade.

Em um sistema baseado na noção de que a dignidade se constrói por meio do que se produz, o espaço para a contemplação do inútil e o exercício do lúdico ganham status de algo improdutivo e, portanto, marginal. Nasce-se na cidade, cresce-se na cidade, trabalha-se na cidade e morre-se na cidade. E apenas aos loucos e às crianças é dado o pleno direito de não serem máquinas.

Há alguns dias, enquanto levava minha cadela para passear, peguei-me durante alguns instantes observando um beija-flor. Sua coloração era algo entre o verde-escuro e o roxo. Eu, mesmo cansado em uma sexta-feira repleta de aulas, mesmo estressado por uma semana inteira de altíssimas demandas burocráticas nas escolas, fiquei um bom tempo observando aquele pássaro, para a insatisfação da minha vira-lata Paçoca, que tinha lá suas necessidades fisiológicas.

Deixei-me, na verdade, seduzir não só por sua cor brilhante, mas sobretudo pela incrível velocidade do bater de suas asas, que de tão rápidas faziam parecer com que o bicho, na sua cintilante fragilidade, estivesse histericamente flutuando no ar. A sua única verdade era extrair o néctar das estrelícias do meu vizinho.

Eu, no entanto, trazia, na minha dor nas pernas e na minha estafa mental, verdades múltiplas, diferentes e muito mais complexas. Enquanto a Paçoca puxava a coleira em direção à grama do outro lado da rua, eu percebi que a oposição entre o meu estresse e a simplicidade do beija-flor renderia uma metáfora e, mais do que isso, um texto. O nome: o professor beija-flor.

Toda metáfora é sempre uma comparação que introduz sentidos figurados. Dessa forma, comparar os professores a um pássaro me pareceu algo muito simpático. Veio-me à mente frases soltas de Rubens Alves, com ilustrações de girassóis, livros coloridos e, claro, beija-flores.

Vista de longe e de forma idealizada, a profissão de professor pode ser algo muito belo e ameno: é comum que ela seja vista como uma espécie de sacerdócio, um dom quase divino do qual o indivíduo não pode fugir e, portanto, deve aceitá-lo como um “chamado” em sua vida, sem questionar.

Enquanto a Paçoca procurava algum lugar para fazer xixi, eu comecei a elaborar a metáfora – e procurava no Google curiosidades sobre os beija-flores.

Aceleração

Esses pássaros batem as asas cerca de 200 vezes por segundo, movidas por um coração que pulsa mais ou menos 1,2 mil vezes por minuto. Era impossível imaginar a velocidade que esse bater de asas representava. Em apenas cinco segundos – tempo que minha cadela demorava para dar uma breve coçada na orelha –, o bicho já havia batido as asas por inacreditáveis mil vezes.

A comparação veio natural: assim como o beija-flor, o professor tem sempre o talento de ser acelerado tanto física quanto mentalmente, para nunca perder a capacidade de, no seu voo, retirar o néctar dos seus estudantes.

Ou seja, o professor se alimenta daquilo que cada aluno-flor guarda dentro de si. A docência é um eterno aprendizado, pensei comigo, chegando a enxergar essa frase ao lado de um beija-flor, em alguma ilustração recebida por mim no WhatsApp no dia do professor.

Também descobri que um beija-flor pode voar cerca de 20 horas seguidas. Sim, claro, isso era como o professor que mesmo depois de três turnos de aula sabe que seu trabalho foi feito em prol da humanidade. Afinal de contas, os voos de um professor em sala de aula nunca poderiam ser rápidos, pois voos rápidos não levam a grandes distâncias, pensei comigo, triunfante.

Além dessas duas incríveis capacidades, o beija-flor também possui um bico mais longo que o corpo, que combinava com o incrível talento que o professor precisa ter para se comunicar e para atingir as partes mais escondidas de suas flores.

Mas, subitamente, a Paçoca me deu um puxão. Um gato preto havia pulado o muro de uma casa vizinha, irritando-a. Eu e ela nos aproximamos do bichano, que nos olhava imóvel e desconfiado, como se estivesse a julgar os meus pensamentos.

A necessidade de um ritmo acelerado para se cumprir inúmeras demandas ao mesmo tempo faz, na verdade, com que a saúde mental da imensa maioria dos docentes seja prejudicada por doenças como depressão e ansiedade.

Sobrecarga

As mais de 1,2 mil vezes que um professor precisa bater suas asas é apenas um sintoma de sua sobrecarga de trabalho, alicerçada em ausência de tempo de planejamento e correção de provas e atividades em geral.

As 20h de tempo de voo mais tinham a ver com a necessidade que muitos docentes têm em trabalhar três turnos do que em algum tipo de metáfora repleta de amenidades.

Como todos sabemos, para que muitos professores tenham uma renda minimamente confortável é necessário que às vezes se faça jornada tripla de trabalho. O direito ao descanso e a manutenção da saúde mental não combinam com isso. Além disso, a capacidade de se comunicar amplamente pode esconder o fato de que, além de sua voz, muitas vezes os professores têm poucos recursos para se lidar com públicos os mais diversos possíveis. Dessa forma, é triste precisar ter o bico mais comprido que o corpo.

Estratégia

A Paçoca finalmente havia achado um pedaço de grama adequado para fazer o seu xixi. Olhei para aquela cena repleta de prosaísmo e me dei conta de que mesmo o ato de urinar poderia virar uma metáfora, como algo de um rio fluindo de dentro da gente ou coisa do tipo. As metáforas, no entanto, possuem também um poder eufemístico de atenuar a dura realidade do trabalho docente por meio de comparações bem-intencionadas. Afinal de contas, não perceber o problema é parte estratégica que o sistema usa para que o problema não seja solucionado.

A verdade é que muitas vezes simplesmente não damos conta de cumprir todas as demandas de trabalho, que se entrecruzam em um emaranhado de obrigações pedagógicas, emocionais e disciplinares.

Por isso, a eterna sensação de incompletude, na medida em que, ao não produzir adequadamente dentro do sistema, o professor se sente de pouca valia, pois no modelo de sociedade atual o meu valor como indivíduo tem como base aquilo que produzo e as demandas de que dou conta. Não, professores não são beija-flores: são profissionais que precisam se despir de idealizações para que sejam considerados plenamente respeitáveis social e financeiramente.

Fazendo o caminho de volta para casa, sempre puxado pela Paçoca, pude perceber que o beija-flor continuava seu voo, retirando néctar das flores do meu vizinho.

Seu coração e suas asas continuavam a bater em um ritmo frenético. Eu, no entanto, ainda sentia o mesmo cansaço de antes e mal podia esperar o momento de me atirar na cama e dormir, como uma espécie de anti-beija-flor.

Talvez, pensei comigo enquanto abria a porta de casa, a minha cadela rendesse uma metáfora melhor com a atividade docente do que o pássaro.

Afinal de contas, a Paçoca é um misto de amor e reclamação, convicta de que sua função no mundo é latir para as motos que continuarão a passar, distribuindo lambidas de afeto gratuitas quando tem para si toda a atenção e descansando sempre que um canto do sofá é desocupado. Um dia ainda escreverei esse texto.

Cristiano Fretta é professor de Português e Literatura.

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