OPINIÃO

A ideologia de gênero faz mal para as crianças

Por Carmen de Oliveira / Publicado em 14 de janeiro de 2019

Wilson Dias/Agência Brasil

Wilson Dias/Agência Brasil

Este título é uma afirmação da ministra Damares Alves, em vídeo de 2013 disponibilizado no Youtube . Por motivos diferentes e com algumas ressalvas, concordo com este enunciado.

Começamos com a retórica de Damares sobre a ideologia de gênero. Seus argumentos vão no sentido de que estamos no campo das ideias e não da ciência: “E aí começa o primeiro problema. Quando alguém for falar de gênero pra vocês, qual a comprovação científica? Eles não têm”. Segundo a ministra, o Brasil teria sido escolhido para a validação desta doutrina: “A ideologia foi banida de algumas nações e eles precisavam de uma grande nação pra fazer este experimento e eles escolheram um país tupiniquim pra fazer isto. E qual a nação que eles escolheram? O Brasil. ”

Embora tentada a problematizar a sua percepção depreciativa sobre o Brasil, focalizo aqui o núcleo de sua argumentação. Damares refere que estão sendo produzidas ideias que vão em direção contrária à ciência biológica, a exemplo da diversidade sexual e de gênero. A sua tese central é de que a sexualidade e os papéis sociais a ela relacionados são decorrentes de uma base estritamente biológica: “Neste planeta Terra só se nasce macho e fêmea. Macho nasce com pênis e fêmea nasce com ovário, peito e útero e vagina. Se quiser outra coisa, vai nascer em outro planeta. Aqui, é macho e fêmea”.  Não existiriam, portanto, diferenças culturais: “Eu vou na aldeia e as minhas meninas indígenas não têm boneca, estão tudo com espiga de milho, brincando de mamãe porque é instintivo pra menina indígena. O menininho lindinho tá todo pelado em cima da árvore, brincando de flecha. É instintivo”.

Nesse jogo argumentativo se confundem duas ideias distintas: a noção de sexo (“macho e fêmea”), que se refere às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino e os caracteres sexuais secundários decorrentes dos hormônios; e a noção de gênero, que é um empreendimento que a sociedade realiza (através da igreja, família, escola e mídia, por exemplo) para transformar um bebê em “mulher” ou “homem”, tais como a influência para que a indiazinha brinque com a boneca/espiga de milho e o indiozinho com a flecha.

Desta forma, é correta a afirmação de Dalmares de que as questões de gênero são valorativas, ou seja, construídas socialmente. Assim sendo, deveria se admitir que não se trata de valores imutáveis ou de conceitos fechados, mas passíveis de serem ajustados em diferentes culturas e tempos. Para muitos, o problema é quando esta (r)evolução de valores problematiza a ordem social dominante, enquanto para a ministra, contudo, a ideologia de gênero coloca em questão a ordem divina, produzindo “afrontas ao Criador”.

O que parece inaceitável, em ambos os casos, é admitir a natureza diversa da experiência humana. Como referiu o filósofo francês Deleuze, em sua clássica leitura sobre o mito platônico, o raciocínio binário não apenas quer demarcar territórios e controlar suas fronteiras, como também estabelecer um padrão de normalidade, que sirva como referência identitária e mantenha sob vigilância e punição aqueles que escapam destas modelagens.

Isso nos leva ao segundo ponto desta defrontação. A ideologia de gênero faz mal para as crianças? Damares afirma que sim, fundamentada na ideia de que esta ausência de parâmetros fixos sobre o exercício da sexualidade humana concorreria não apenas para ambiguidades e confusão mas para uma série de perversões. No caso, manifesta uma preocupação com o fato de que a pansexualidade, justificaria, por exemplo a pedofilia e o incesto.

Não se trata, é claro, de legitimar tais práticas de violações de direitos na infância e adolescência, consideradas formas de violência sexual no marco legal brasileiro e passíveis de severas punições. Para melhor enfrentamento destes riscos, os especialistas apontam com unanimidade a educação sexual como uma imperiosa necessidade para a proteção integral das novas gerações.

Todavia, o que se faz necessário não é combater a flexibilização dos papéis como sugere Dalmares, mas a sua rigidez. Esta é a conclusão principal   e um estudo recente, Global Early Adolescent Study, realizado em quinze países pela Organização Mundial de Saúde em parceria com a Universidade John Hopkins. A pesquisa buscou compreender como se dá a construção de expectativas de gêneros no início da adolescência. Os resultados indicam que, desde muito cedo, meninas e meninos estão enredados em estereótipos de gênero, que produzem adversidades no seu desenvolvimento.

As meninas são consideradas mais vulneráveis e necessitam ter um universo restrito à vida doméstica ou de serem vigiadas e terem o corpo como forma de reconhecimento, enquanto os meninos são vistos como mais fortes e independentes e, por isto, são encorajados a sair de casa e ter um comportamento aventureiro. Tais construções sociais produzem diferenças no desenvolvimento cognitivo e socioemocional, bem como distintos comportamentos de riscos na área de saúde: maior vulnerabilidade das meninas à gravidez, violência sexual e doenças sexualmente transmissíveis e nos meninos maior exposição a drogas, práticas violentas e acidentes. Diante disto, os pesquisadores apontaram uma principal recomendação: pautar a igualdade de gênero na infância e não esperar a adolescência.

Esperamos que a ministra Damares leve em conta tais achados científicos na implementação de políticas públicas de direitos humanos junto às novas gerações.

*Carmen Silveira de Oliveira é psicóloga e escreve mensalmente para o site do jornal Extra Classe.

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