POLÍTICA

Apagão de dados virou estratégia de governo

A fragilidade na coleta e armazenamento de dados oficiais em todas as áreas ficou conveniente para a estratégia do governo de retardar políticas e mobilizar sua base de apoiadores
Por Flavio Ilha / Publicado em 14 de janeiro de 2022
Sonegar informações se tornou uma forma de mobilizar a base de negacionistas que ainda apoiam o Presidente Jair Bolsonaro

Fotos: Alan Santos/PR

Sonegar informações se tornou uma forma de mobilizar a base de negacionistas que ainda apoiam o Presidente Jair Bolsonaro

Fotos: Alan Santos/PR

Foi em dezembro de 2021: um suposto ataque hacker ao Ministério da Saúde, ainda não plenamente elucidado, bagunçou a divulgação de dados sobre a incidência da covid-19 no Brasil e impediu, por várias semanas, o acesso da população ao sistema ConectSUS, que garante certificado eletrônico de vacinação e informações sobre o comportamento do vírus no país. Coincidência ou não, o apagão atingiu o Ministério da Saúde poucos dias antes de uma definição, por parte do governo, sobre a exigência de passaporte vacinal em eventos públicos.

O incidente acendeu um alerta entre especialistas e também na classe política: a queda e posterior instabilidade no sistema, que persiste até hoje, interessam ao governo e fazem parte da campanha de desinformação do presidente Jair Bolsonaro (PL). “O apagão deixou a todos numa situação fragilizada. Com dados confiáveis, conseguimos convencer, negociar e reivindicar o que deve ser feito para enfrentar a pandemia. Quando não se tem isso, temos que tatear no escuro”, diz o diretor científico da Sociedade Brasileira de Infectologia, José David Urbaez Brito.

Para ele, a fragilidade na coleta e armazenamento de dados oficiais é interessante para a estratégia do governo de retardar ao máximo as medidas de controle da pandemia, como forma de mobilizar a base de negacionistas que ainda apoiam Bolsonaro. O infectologista percebe um constante “esforço de minimizar, banalizar e negar a pandemia como um problema”, normalizando a postura de inércia ao tomar decisões que possam comprometer seus interesses políticos. “Se você não tem dados, você consegue fazer a pandemia parecer menor do que ela realmente é”, alerta Brito.

Represamento de dados para retardar ações

Os dados represados de vários estados, nos quais as secretarias de Saúde ainda não conseguem repassar informações ao sistema danificado, alimentam o cenário de subnotificação da Covid-19 no Brasil, que acompanha a população desde o início da pandemia em março de 2020. E reforçam a suspeita de que o ataque hacker à base de dados do Ministério da Saúde não foi um evento isolado: em setembro do ano passado, o ministério modificou as regras para notificação de casos leves de covid ao exigir número de lote e fabricante dos testes de antígeno para inclusão na plataforma e-SUS Notifica.

Em junho de 2020, o então ministro interino Eduardo Pazuello apagou da plataforma oficial da Saúde os números oficiais que revelavam o alcance do coronavírus no Brasil. O site oficial foi republicado dois dias depois, mas apenas com as notificações registradas nas 24 horas anteriores. Não constavam mais o número total de pessoas infectadas pelo vírus desde o início da pandemia nem o acumulado de mortes.

Na época também foram apagadas as tabelas que mostravam a evolução da doença desde o primeiro caso, em fevereiro de 2020. O procedimento levou à formação de um pool de veículos de comunicação para a coleta independente de dados sobre a pandemia junto às secretarias estaduais de saúde. O Ministério Público Federal instaurou um procedimento extrajudicial para apurar a exclusão de informações oficiais, mas a investigação não deu em nada.

Verdades inconvenientes

O deputado Aliel Machado (PSB/PR), presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, estranha a “coincidência” entre o impacto do apagão e os interesses políticos do governo. “Penso que se tratou de um ataque estimulado pela postura do presidente da República, no momento em que ele se insurge contra a ciência, a saúde e a vacina. O posicionamento público do presidente estimulou isso”, diz.  “É impossível no Estado federativo, com a responsabilidade dos municípios, dos estados e do próprio governo federal, ter qualquer estratégia de enfrentamento se não tivermos dados corretos”, completa.

Os senadores que compõem o Observatório da Pandemia, criado após a CPI da Covid, vão ouvir especialistas e também o governo sobre o apagão de dados do Ministério da Saúde. A intenção é realizar uma reunião pública, ainda neste mês de janeiro, para expor a apuração.

Ocultação de dados ambientais

O apagão de dados, longe de ser exclusividade da pandemia de covid-19, abrange outras áreas sensíveis do governo e aparece como estratégia de sonegação de dados desfavoráveis ao governo. Segundo a Controladoria Geral da União (CGU), em estudo concluído em outubro, o governo tem mais de 900 bases de dados que deveriam ter sido divulgadas para a sociedade, mas permanecem ocultas por decisão do governo. A área mais defasada, de acordo com o levantamento, é a ambiental.

O painel da CGU lista, por exemplo, 39 bases de dados atrasadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que monitora dados de desmatamento no país. O Ibama tem outras dez bases que já deveriam estar públicas – o instituto não publicou, por exemplo, informações sobre a comercialização e o registro de agrotóxicos no país, tema sensível ao governo e que mobiliza a base de apoio de Bolsonaro.

“Temos duas bases de dados na área de meio ambiente que foram as mais requisitadas pela sociedade nas consultas públicas para a produção do Plano de Dados Abertos, uma exigência da legislação. Nenhuma delas está disponibilizada”, afirma Bruno Grisotto Vello, analista de políticas públicas do Instituto de Manejo e Cerificação Florestal e Agrícola (Imaflora).

Embargos por desmatamento

Em 2021, segundo Vello, houve uma espécie de apagão: os dados de embargos por desmatamento passaram quase um ano sem ser disponibilizados. O sistema concentra informações sobre as propriedades rurais no Brasil e permitiria o cruzamento dos locais em que há infrações na produção pecuária com os locais onde há queimadas e desmatamento. As informações são essenciais para uma efetiva fiscalização dos danos ambientais em regiões vulneráveis.

A dificuldade de acesso a informações públicas aumentou durante o governo Bolsonaro. Neste ano, por exemplo, o Executivo federal impôs um sigilo de cem anos nos registros de entrada e saída dos filhos do presidente no Planalto. Também proibiu a divulgação dos critérios de seleção de sua filha no Colégio Militar de Brasília.

Nesta semana, deixou de registrar no Diário Oficial da União os pedidos de exoneração de cargos de chefia motivados pelo aumento salarial seletivo prometido pelo governo. Com isso, os servidores das altas carreiras de Estado podem ser alvos de inquérito administrativo se não exercerem suas funções. O país também vive um apagão de dados sobre desaparecimentos após abordagem por forças policiais, ao mesmo tempo em que casos do tipo são recorrentes nos estados onde a Polícia mais mata.

No início de janeiro, o governo anunciou que o monitoramento via satélite no Cerrado, o segundo bioma mais importante do país, realizado pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) pode ser interrompido pelo fim de um convênio com o Banco Mundial que garantia recursos à sua execução. O dinheiro dá só até abril. É outro apagão estratégico no radar do governo.

Recursos existem

O monitoramento via satélite do Inpe está em operação desde 1988 para a Floresta Amazônica – o sistema de vigilância no Cerrado começou a ser estruturado apenas em 2016. Para financiar sua manutenção, foi assinado um convênio com o Banco Mundial que garantiu US$ 9,5 milhões até 2021. O projeto permitiu que em 2018 fosse lançado o sistema de alertas de desmatamento para o Cerrado (Deter) e, a partir de 2019, os dados anuais passaram a ser divulgados pelo Prodes-Cerrado.

Entre agosto de 2020 e julho de 2021, o Cerrado perdeu 8,5 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa, uma alta de quase 8% em relação aos 12 meses anteriores. E, embora o levantamento tenha sido finalizado no fim de novembro passado, a informação foi divulgada apenas no último dia de 2021. “O Cerrado é o bioma que perdeu sua vegetação mais rápido por causa do desmatamento”, pontuou Tássio Azevedo, coordenador geral do MapBiomas.

De acordo com Azevedo, há recursos federais que poderiam garantir a manutenção do projeto mesmo sem o convênio. “Não há falta de recursos. Falta é vontade política do governo para manter esses dados. Temos mais de R$ 1 bilhão no Fundo Amazônia, que poderia financiar ações de monitoramento nos biomas brasileiros. Mas o governo federal mudou as regras do fundo e fez ele parar de funcionar”, denuncia.

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