AMBIENTE

Como a arte, a ciência e os pajés podem salvar o planeta

ENTREVISTA | SIDARTA RIBEIRO
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 14 de julho de 2022

Envio diário

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Foto: Luiza Mugnol/Divulgação

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Para se adaptar com sucesso às novas condições planetárias que o próprio ser humano criou, o neurocientista Sidarta Ribeiro é taxativo: “Precisamos reunir nossos melhores saberes para construir uma visão abrangente e profunda das principais mudanças que a espécie humana precisa realizar”. O professor titular de Neurociência e fundador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) entende que é fundamental lembrar a importância de sonhar coletivamente com o futuro do planeta. É por isso que seu recente livro, Sonho Manifesto (Companhia das Letras), compartilha conhecimentos de cientistas, pajés, xamãs, mestras e mestres de saber popular, artistas e inventores. Assim, mesclando otimismo e generosidade entre os diversos saberes e com uma forte análise sobre os rumos que estão postos à frente, é que o professor também estende a mão para os que produzem sofrimento via acumulação de dinheiro em uma sociedade cada vez mais excludente e prejudicial ao meio ambiente natural. Estão doentes e precisam de ajuda. É um alerta. “Tudo em demasia é tóxico, e com o dinheiro não é diferente”, registra. Sidarta Ribeiro é mestre em Biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor em Comportamento Animal pela Universidade Rockefeller e pós-doutor em Neurofisiologia pela Universidade Duke, ambas nos Estados Unidos

Extra Classe – Em seu mais recente livro, o senhor compartilha desde o conhecimento de pajés, xamãs, artistas, sabedoria popular, em pé de igualdade com o conhecimento de inventores e cientistas. Por que essa mistura entre empírico e teórico?
Sidarta Ribeiro – Porque a urgência e a complexidade da crise planetária exigem que façamos uso não apenas de todo o capital científico e financeiro acumulado pela humanidade, mas também dos saberes tradicionais e da bússola moral que estes saberes oferecem. Se não formos capazes de reunir tudo do bom e do melhor que a cultura humana produziu até aqui, falharemos em contornar a crise socioambiental em curso.

EC – Há ainda muita gente na academia que torce o nariz para isso ou você nota alguma mudança?
Ribeiro – A ciência é muito diversa e existem dentro dela muitas perspectivas diferentes, até porque combustíveis fósseis, pesticidas e explosivos são lucrativas áreas de pesquisa. Por outro lado, as pesquisas ambientais, sociais, econômicas e psicológicas convergem para uma caracterização contundente dos imensos riscos que corremos se não mudarmos nosso jeito de estar no mundo – para usar essa expressão muito esclarecedora do Aílton Krenak.

EC – O resultado que você chegou é que se o atual rumo da vida no planeta continuar, não teremos futuro. Algo que já vem sendo dito há bastante tempo por ambientalistas. Até o Papa Francisco, no início do seu pontificado, lançou uma encíclica sobre isso, citando o que chama de ecologia integral. Em síntese, o que você agrega em sua reflexão no Sonho Manifesto?
Ribeiro – Além de reconhecer a gravidade da crise, argumento no Sonho Manifesto que precisamos reunir nossos melhores saberes para construir uma visão abrangente e profunda das principais mudanças que a espécie humana precisa realizar se quiser se adaptar com sucesso às novas condições planetárias que nós mesmos criamos. O livro mapeia, em linhas gerais, o que essa visão precisa conter. O problema da humanidade não é mais a escassez, e sim a má distribuição dos bens materiais e imateriais, associada à desenfreada destruição social e ambiental promovida pelo capitalismo predatório. O catolicismo corajoso, terno e inclusivo de Francisco é um dos pilares fundamentais da grande síntese que precisamos fazer entre saberes científicos e religiosos de todas as culturas, com destaque para os povos originários que preservam as formas de viver mais antigas e ambientalmente mais bem adaptadas.

EC – Sonho é um dos sinônimos de utopia. Obviamente, todos têm o direito de sonhar com um estado ideal de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos. Mas como fazer isso em uma sociedade cada vez mais individualista, que prima pela acumulação, em detrimento da partilha?
Ribeiro – A solidão é uma das marcas do nosso tempo. Atualmente, mais pessoas morrem de suicídio do que de homicídio. Nossa gigantesca solidão é o resultado de um abandono irrefletido de diversos hábitos ancestrais altamente benéficos para o corpo e a mente, como o sono de qualidade, o sonho lembrado e compartilhado, os exercícios físicos regulares e a alimentação saudável. Nosso afastamento desses hábitos é deletério para a saúde dos indivíduos, mas também para a saúde da coletividade, na medida em que os laços entre as pessoas vão se tornando cada vez mais tênues, e a busca de sentido vital se desloca das relações humanas para a acumulação de objetos e experiências. Nossa progressiva ciborguização, marcada pela dependência cada vez maior de interfaces computacionais e conexão à internet, arrisca nos robotizar antes mesmo que se complete a chegada triunfal dos robôs. Se não aprendermos logo a amar uns aos outros, como vamos poder ensinar isso aos robôs?

EC – Por falar em qualidade de sono, como priorizar uma qualidade de sono e de sonhos em um Brasil que priva uma imensa maioria de sonhar e de ter noites tranquilas?
Ribeiro – O sono e o sonho estão em risco pois a noite é cada vez mais invadida pelas atividades e preocupações da vigília. Ainda mais neste momento histórico que vivemos, de enorme crise social, econômica e ambiental relacionada às perigosas neuroses da opressão, espoliação, exclusão e abandono dos mais vulneráveis. Diante de tamanho desafio, não podemos negligenciar a importância do sono e dos sonhos para a manutenção da saúde física e mental. Dormir bem e se tornar cada vez mais consciente dos próprios sonhos é um caminho ancestral de transformação interior, que diminui a ansiedade, regula as emoções e assim repercute coletivamente. O grande paradoxo de nosso tempo – termos tantos recursos científicos e tecnológicos, tanto acúmulo de capital, e, ainda assim, tanta desesperança no futuro – reflete a grande insônia planetária das pessoas perigosamente privadas de dormir e sonhar bem.

Sidarta Ribeiro

Foto: Luiza Mugnol/Divulgação

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“Precisamos depurar nossa herança, nutrindo a empatia colaborativa e construindo mecanismos sociais capazes de eliminar a opressão competitiva. No século 21, precisamos desfazer a desigualdade econômica, abolir a devastação ambiental e superar o racismo, o machismo, a homofobia e o especismo”

EC – Seu ponto de partida para a reflexão que culminou no seu novo livro também se deu por um paradoxo: o de que o homem, ao mesmo tempo que é violento, oprime os mais fracos, também é capaz de se preocupar com o outro e defender com garra sua família. Como se construiu essa ambivalência?
Ribeiro – A evolução de todas as espécies animais aconteceu sob escassez intermitente de recursos, o que levou à seleção positiva de comportamentos de competição e predação mediados por diversos mecanismos moleculares, celulares e sistêmicos. Ao mesmo tempo, entretanto, evoluíram comportamentos de cooperação e cuidado mútuo entre parentes e aliados, da mesma espécie ou não, com base em mecanismos biológicos igualmente ancestrais. O hormônio ocitocina, por exemplo, pode atuar na produção de comportamentos diametralmente opostos, amor e empatia versus medo e agressão, dependendo do contexto social. Nossa dupla capacidade de amar as pessoas no interior do círculo íntimo, ao mesmo tempo em que tememos ou odiamos pessoas fora desse círculo, tem uma inércia evolutiva perigosa. Precisamos depurar nossa herança, nutrindo a empatia colaborativa e construindo mecanismos sociais capazes de eliminar a opressão competitiva. No século 21, precisamos desfazer a desigualdade econômica, abolir a devastação ambiental e superar o racismo, o machismo, a homofobia e o especismo.

EC – Agora, temos os casos dos psicopatas que, entre outras questões, apresentam ausência de empatia, remorso e uma vontade, muitas vezes, não só de manipular, mas também de eliminar o outro. Sobre a psicopatia, há pesquisas que não a classificam como uma doença mental, mas como uma estratégia de adaptação de vida. Algo que foi promovido pela seleção natural ao longo da evolução humana. Como você vê isso?
Ribeiro – A falta de empatia é um problema social. Quando é excessiva, a falta de empatia se transforma numa doença mental individual, com péssimas consequências para a coletividade. Infelizmente, quando as relações de competição prevalecem sobre as relações de cooperação, a falta de empatia é premiada socialmente. Que tipo de mentalidade têm os bilionários que enriqueceram ainda mais durante a pandemia, enquanto a maior parte da população mundial sofreu empobrecimento? O que dizer das pessoas que acumulam muito mais dinheiro do que precisam e, mesmo assim, sofrem e produzem sofrimento porque querem mais dinheiro? Eu diria que essas pessoas estão doentes e precisam de ajuda.

Sidarta Ribeiro

Foto: Luiza Mugnol/Divulgação

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“A solidão é uma das marcas do nosso tempo. Atualmente, mais pessoas morrem de suicídio do que de homicídio. Nossa gigantesca solidão é o resultado de um abandono irrefletido de diversos hábitos ancestrais altamente benéficos para o corpo e a mente, como o sono de qualidade, o sonho lembrado e compartilhado, os exercícios físicos regulares e a alimentação saudável”

EC – Quando esse comportamento de eliminar o outro ou de calar o outro é coletivo, praticado por grupos sociais contra outros grupos sociais a partir de uma identidade comum, como resistir a isso, tanto no sentido de não cair fácil no alinhamento automático e participar dessas práticas, como de resistir a esses ataques?Ribeiro – Massacrar o diferente é coisa muito antiga, temos uma inércia evolutiva enorme a superar. Precisamos garantir, em primeiro lugar, que o dissenso seja resolvido com palavras e não armas. Apelar para a violência é uma expressão de falta de ideias válidas e de argumentos convincentes. Se queremos viver em paz no planeta globalizado, precisamos compreender que a riqueza étnica e cultural, nosso maior tesouro para construir o futuro, está ameaçado pelas diferenças injustas entre classes, gêneros, raças e outros recortes sociais. Nossa espécie viverá conflitos terríveis até uma extinção lamentável se não formos capazes de diálogo, se não formos capazes de sonhar e construir um futuro que valha a pena ser vivido por todas as pessoas.

EC – Você falou de pessoas que produzem sofrimento porque querem mais dinheiro, que elas precisam de ajuda. Mas me parece que isso, por elas, não é bem encarado. Como ajudar quem não quer essa “ajuda”?
Ribeiro – Realmente, é um desafio grande convencer as pessoas de que seu modo de vida produz sofrimento e precisa mudar. Creio que é útil trazer a discussão para o âmbito dos valores morais professados por essas mesmas pessoas. No Brasil, mais de 80% da população declara algum tipo de fé cristã. Podemos então abordar o problema da má distribuição de bens materiais e imateriais pelos conceitos cristãos de partilha, tolerância e amor ao próximo. É preciso também ter em mente que, mesmo entre as pessoas materialmente mais ricas, isto é, bilionárias, existe enorme sofrimento psíquico associado à dependência de dinheiro.

EC – Mas tem aquela velha piada que diz que dinheiro não traz a felicidade, mas faz sofrer em Paris.
Ribeiro – Tudo em demasia é tóxico, e com o dinheiro não é diferente. Estudos mostram que o dinheiro é muito viciante e facilita o uso problemático de substâncias. Além disso, a mera exposição a palavras relacionadas a dinheiro pode aumentar a propensão a mentir ou a se comportar de forma imoral. Entre as pessoas materialmente mais ricas, existem ansiedade, inveja, ódio, medo, depressão e suicídio. Existe a frustração de não ser mais rico do que outras pessoas, a paranoia dos falsos amigos e a neurose das heranças a receber ou transmitir. E, por fim, o pânico da morte inexorável. No dinheiro em excesso não há nenhuma transcendência, apenas uma dependência que faz mal a si e aos outros.

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